Introdução
A participação de alimentos ultraprocessados vem crescendo ao longo dos anos, nos domicílios das famílias brasileiras.1 A oferta desses alimentos não é recomendada nos primeiros dois anos de vida, por eles causarem impactos negativos à saúde no curto ou longo prazo.2 Entretanto, sua introdução ocorre de maneira precoce, ainda no primeiro semestre de vida, período para o qual se recomenda o aleitamento materno exclusivo.2-4
Os ultraprocessados são produzidos industrialmente, em várias etapas de processamento, e contam com elevada quantidade de ingredientes como sal, açúcares, gorduras, conservantes e aditivos, entre outros.2,5 Ademais, são altamente palatáveis, produzidos para oferecer sabores agradáveis e atraentes, o que pode gerar vícios e influenciar hábitos alimentares por toda a vida.2,6 O consumo de ultraprocessados se relaciona com o aumento do sobrepeso/obesidade, dislipidemias, hipertensão, diabetes mellitus e alergias em crianças, adolescentes e adultos.6-11
A alimentação adequada e saudável, ao contrário, é importante fator de promoção da saúde, fundamental para um crescimento e um desenvolvimento infantil satisfatórios, sobretudo nos dois primeiros anos de vida. Por isso, recomenda-se o aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses, e complementado com outros alimentos - in natura ou minimamente processados - até os dois anos ou mais.2 Os impactos positivos do aleitamento materno incluem a redução de indicadores de mortalidade infantil, proteção contra infecções, diminuição do risco de doenças crônicas, melhora do desempenho da cavidade oral e dos níveis de inteligência.2,12-14
Um estudo realizado na região Sudeste do Brasil observou que a interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo se associou ao maior consumo de alimentos ultraprocessados em pré-escolares.15 O aleitamento materno inferior a seis meses foi associado a maiores escores de inadequação na alimentação complementar em crianças atendidas na Atenção Básica à Saúde de um município do interior de São Paulo.16 Ademais, a literatura aponta elevada oferta de alimentos ultraprocessados a lactentes no Brasil, especialmente bolacha, gelatina e queijo de tipo petit suisse.3,4
Não foram encontrados estudos que avaliassem a influência do aleitamento materno exclusivo na introdução de alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida, não obstante a importância da nutrição infantil adequada nesse primeiro período e suas repercussões, mais além da infância, na vida adulta.2
O objetivo do presente estudo foi analisar a associação entre aleitamento materno exclusivo e a introdução de alimentos ultraprocessados em crianças menores de 12 meses.
Métodos
Estudo de coorte prospectivo, vinculado a um projeto maior intitulado ‘Acompanhamento das práticas de aleitamento materno e alimentação complementar em crianças menores de 1 ano residentes no município de Vitória da Conquista - Bahia’,17 realizado com mães/crianças da zona urbana do município, no período de fevereiro de 2017 a outubro de 2018. A coleta de dados da coorte, realizada em todas as maternidades do município (fevereiro a outubro de 2017), prosseguiu em posteriores visitas aos domicílios dos participantes, por ocasião dos 30 dias (março a dezembro de 2017), 6 meses (julho de 2017 a maio de 2018) e 12 meses de vida das crianças (fevereiro a outubro de 2018). Para o estudo, foram utilizados dados coletados nas maternidades e aos 6 e 12 meses de vida das crianças.
Vitória da Conquista, um município do sudoeste da Bahia, terceiro maior do estado em extensão territorial e quinto maior do interior do Nordeste, possuía 3.705,838km2 de extensão territorial e índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,678 em 2010; sua população estimada para 2020 era de 341.128 habitantes.18 No município, existem quatro maternidades: uma delas presta serviços exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS); outra, apenas serviços de caráter privado; e duas atendem a ambos os sistemas de saúde, público e privado. No ano de 2016, as quatro maternidades do município realizaram 5.541 partos.
Participaram do estudo mães e seus recém-nascidos vivos saudáveis da zona urbana de Vitória da Conquista que não precisaram de internação em unidade de terapia intensiva (UTI), não gemelares e com idade gestacional igual ou superior a 37 semanas. Foram consideradas não elegíveis as mães portadoras do vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency vírus [HIV]) e as crianças nascidas com má formação que comprometesse a amamentação, como fissura palatina.
A seleção da amostra aconteceu nas maternidades do município, em visitas feitas por estudantes de graduação e pós-graduação responsáveis pela coleta de dados. Em cada dia de visita, eram sorteados três binômios ‘mãe/nascidos vivos’ com 24 horas pós-parto. Se, no dia do sorteio, houvesse apenas três ou menos binômios de mães/nascidos vivos com 24 horas pós-parto, todos eram convidados a participar, caso atendessem aos critérios de inclusão. Optou-se por selecionar três duplas de mães/nascidos vivos por dia de visita em cada maternidade, para viabilizar o acompanhamento dos participantes ao longo do tempo.
Após seleção da amostra, prosseguiu-se com a coleta de informações, tanto disponibilizadas nos prontuários das maternidades como levantadas de entrevistas com aplicação de questionário. Posteriormente, realizaram-se três visitas domiciliares após as crianças completarem 30 dias, 6 meses e 12 meses de vida. Nos três momentos, questionários foram aplicados. Os dados obtidos na maternidade e selecionados para esse estudo constituíram-se de: informações socioeconômicas, demográficas, maternas, paternas, gestacionais e sobre aleitamento materno na primeira hora de vida. Na entrevista aos 6 meses de vida incluiu-se a informação sobre a duração do aleitamento materno exclusivo e, aos 12 meses, variáveis maternas, como trabalho e situação conjugal e sobre a criança, incluindo orientação sobre alimentação complementar, pessoa responsável pela alimentação da criança, aleitamento materno total, introdução de alimentos ultraprocessados, a idade em que estes foram ofertados pela primeira vez e frequência a creche ou escola.
A variável-desfecho do estudo foi a introdução de quatro ou mais tipos de alimentos ultraprocessados, polarizada entre ‘Não’ e ‘Sim’. Para a definição dos itens dessa variável, as mães foram questionadas, no momento da entrevista, sobre a oferta de 11 ultraprocessados - suco artificial, refrigerante, iogurte/bebida láctea, queijo petit suisse, achocolatado, bolacha/biscoito, bolacha recheada, doce, salgadinho, macarrão instantâneo e embutido - antes dos 12 meses de vida da criança.5,19
A variável independente estudada foi o aleitamento materno exclusivo (AME), questionada na entrevista aos 6 meses de vida das crianças, a partir da resposta da mãe à seguinte pergunta:
“Até quando a criança amamentou exclusivamente?”
A resposta a essa pergunta foi categorizada em dias: <120; 120-179; e ≥180. Esta categorização baseou-se na mediana de AME de 120 dias e na recomendação para AME até os 180 dias.2 Considerou-se AME quando o lactente recebia somente leite materno, diretamente do peito ou ordenhado, sem nenhuma oferta de outro líquido ou sólido - à exceção de medicamentos, vitaminas e suplementos minerais.2
As covariáveis de interesse corresponderam a características socioeconômicas, da mãe, do pai e da criança:
renda familiar (em salários mínimos: <1; ≥1);
escolaridade materna e paterna (em anos de estudos: <8; ≥8);
idade materna e paterna (em anos: <20; 20- 34; ≥35);
raça/cor da pele materna (branca/amarela; preta/parda);
trabalho materno (não; sim);
situação conjugal materna (sem companheiro; com companheiro);
paridade (primípara; multípara);
número de consultas de pré-natal (<6; ≥6);
orientação de profissional de saúde sobre alimentação complementar (não; sim);
frequenta ou frequentou creche ou escola (não; sim);
pessoa responsável pela alimentação da criança (mãe ou pai; outro); e
aleitamento materno na primeira hora (não; sim).
Para o cálculo do tamanho da amostra da coorte, tomou-se como referência a seguinte prevalência do aleitamento materno exclusivo aos 30 dias de vida: 59,3%. Trata-se de um achado de estudo de coorte realizado com mães/bebês no primeiro mês de lactação, em Feira de Santana, BA,20 a um risco relativo de 1,2, poder de 80% e nível de confiança de 95%. O número mínimo da amostra do estudo foi de 252, valor a que se acrescentou 30% de compensação para eventuais perdas, resultando em uma amostra de 328 mães/crianças. O número de mães/nascidos vivos selecionados em cada maternidade foi proporcional ao número de partos realizados em cada uma dessas unidades. O cálculo do poder da amostra foi de 98,6%, considerando-se um intervalo de confiança de 95% e a incidência de introdução de alimentos ultraprocessados segundo o aleitamento materno exclusivo obtida neste estudo.
Para caracterizar a amostra, as variáveis categóricas foram apresentadas como frequências absolutas (n) e relativas (%), e as variáveis contínuas, como médias e desvios-padrão ou medianas. Para avaliar as diferenças entre as proporções de mães/crianças que permaneceram no estudo e as perdas, foram utilizados o teste qui-quadrado de Pearson e o teste exato de Fisher. As diferenças entre as proporções de introdução dos alimentos ultraprocessados estudados, segundo as categorias de duração do aleitamento materno exclusivo, foram avaliadas pelo teste de tendência linear. A regressão de Poisson com variância robusta serviu para analisar a influência do aleitamento materno exclusivo sobre a introdução de alimentos ultraprocessados, estimando-se os riscos relativos (RR) bruto e ajustado e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%).
Para o ajuste estatístico, utilizou-se o método stepwise-forward, segundo o qual as variáveis são inseridas, uma a uma, no modelo de regressão múltipla, de maneira hierárquica e em ordem decrescente de significância estatística com o desfecho, adotando-se como critério de entrada p<0,20. As variáveis utilizadas como fatores de ajuste foram incluídas utilizando-se três modelos hierárquicos:
no modelo 1, renda familiar, escolaridade materna, escolaridade paterna e trabalho materno;
no modelo 2, foram acrescentadas idade materna, idade paterna, situação conjugal materna, paridade e nº de consultas de pré-natal; e
no modelo 3, incorporou-se orientação por profissionais de saúde sobre alimentação complementar e a criança frequentar ou ter frequentado creche ou escola.
Foi considerada associação estatisticamente significativa quando p≤0,05. Para avaliação da qualidade do ajuste, utilizou-se o critério de Akaike (AIC). Os dados foram analisados com uso do programa Stata em sua versão 15.0 (Stata Corporation, College Station, USA).
O projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (CEP-Seres Humanos/IMS/UFBA), e aprovado: Protocolo nº 1.861.163 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 62807516.2.0000.5556, ambos emitidos em 12 de dezembro de 2016. As mães participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A linha de base da coorte nas maternidades foi composta por 388 mães/crianças. Após perdas, a amostra final deste estudo foi de 286 mães/crianças acompanhadas até os 12 meses de vida (Figura 1). As perdas ocorreram por mudança de número telefônico, endereço ou cidade, e por desistência. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre a amostra do estudo e as perdas de seguimento (desde a maternidade até os 12 meses), de acordo com as variáveis ‘renda familiar’ (p=0,297), ‘escolaridade paterna’ (p=0,060), ‘idade materna’ (p=0,842) e ‘paridade’ (p=0,285) (dados não apresentados em tabela).
Do total de entrevistadas, a maioria das mães vivia com renda familiar acima de 1 salário mínimo (74,0%), possuía mais de 8 anos de estudos (77,3%), tinha entre 20 e 34 anos de idade (70,3%) (mediana: 28 anos) e 50,7% delas eram multíparas. A maioria dos pais possuía mais de 8 anos de estudos (71,7%) e estava com idade entre 20 e 34 anos (64,8%) (mediana: 31 anos). Em relação à alimentação das crianças, 67,1% das mães relataram que receberam orientação de profissionais de saúde sobre alimentação complementar. Entre as crianças, 40,2% receberam quatro ou mais tipos de alimentos ultraprocessados; e quase metade delas receberam exclusivamente leite materno por menos de 120 dias (48,9%) (Tabela 1). A mediana de introdução dos ultraprocessados foi de 180 dias (mínimo de 90 dias; máximo de 330 dias).
Incidências significativamente maiores de introdução do queijo petit suisse (75,7%), bolacha recheada (32,9%), salgadinho (25,7%), macarrão instantâneo (25,7%), achocolatado (22,9%), suco artificial (17,9%), refrigerante (17,9%) e embutido (15,7%) no primeiro ano de vida, foram observadas entre as crianças que receberam aleitamento materno exclusivo por menos de 120 dias. Observou-se que quanto menor a duração do aleitamento materno exclusivo, maiores foram as proporções de introdução dos alimentos ultraprocessados (Tabela 2).
Na análise bruta, o aleitamento materno exclusivo por <120 dias aumentou o risco de introdução de quatro ou mais ultraprocessados. Na análise ajustada, o aleitamento materno exclusivo por menos de 120 (RR=2,94 - IC95% 1,51;5,71) e de 120 a 179 dias de vida (RR=2,17 - IC95% 1,09;4,30) aumentou o risco de introdução de quatro ou mais ultraprocessados no primeiro ano de vida, quando comparado ao aleitamento materno exclusivo por 180 dias ou mais. Observou-se que o poder de associação entre a explicativa principal e o desfecho aumentava conforme os modelos eram ajustados (Tabela 3). A duração do aleitamento materno exclusivo influenciou a introdução de quatro ou mais alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida, independentemente das covariáveis de ajuste.
Características | n | % | IC95% a |
---|---|---|---|
Socioeconômicas | |||
Renda familiarb (em salários mínimos) | |||
≤1 | 70 | 26,0 | 21,1;31,6 |
>1 | 199 | 74,0 | 68,4;78,9 |
Escolaridade materna (em anos de estudo) | |||
≤8 | 65 | 22,7 | 18,2;28,0 |
>8 | 221 | 77,3 | 72,0;81,8 |
Escolaridade paternab (em anos de estudo) | |||
≤8 | 76 | 28,3 | 23,2;34,0 |
>8 | 193 | 71,7 | 66,0;76,8 |
Maternas e gestacionais, e paternas | |||
Idade materna (em anos) | |||
<20 | 34 | 11,9 | 8,6;16,2 |
20-34 | 201 | 70,3 | 64,7;75,3 |
≥35 | 51 | 17,8 | 13,8;22,7 |
Idade paternab (em anos) | |||
<20 | 5 | 1,8 | 0,7;4,2 |
20-34 | 184 | 64,8 | 59,0;70,2 |
≥35 | 95 | 33,4 | 28,2;39,2 |
Raça/cor da pele materna | |||
Branca/amarela | 69 | 24,1 | 19,5;29,5 |
Preta/parda | 217 | 75,9 | 70,5;80,5 |
Trabalho materno | |||
Não | 126 | 44,1 | 38,4;49,9 |
Sim | 160 | 55,9 | 50,1;61,6 |
Situação conjugal materna | |||
Sem companheiro | 37 | 13,0 | 9,5;17,4 |
Com companheiro | 248 | 87,0 | 82,6;90,5 |
Paridade | |||
Primípara | 141 | 49,3 | 43,5;55,1 |
Multípara | 145 | 50,7 | 44,9;56,5 |
Número de consultas de pré-natal | |||
<6 | 50 | 17,5 | 13,5;22,4 |
≥6 | 236 | 82,5 | 77,6;86,5 |
Relacionadas à criança | |||
Orientação de profissional de saúde sobre alimentação complementar | |||
Não | 94 | 32,9 | 27,6;38,6 |
Sim | 192 | 67,1 | 61,4;72,4 |
Frequenta ou frequentou creche ou escola | |||
Não | 273 | 95,5 | 92,3;97,3 |
Sim | 13 | 4,5 | 2,6;7,7 |
Pessoa responsável pela alimentação da criança | |||
Mãe ou pai | 216 | 75,5 | 70,2;80,2 |
Outro | 70 | 24,5 | 19,8;29,8 |
Quantidade de alimentos ultraprocessados | |||
<4 | 171 | 59,8 | 54,0;65,3 |
≥4 | 115 | 40,2 | 34,6;46,0 |
Aleitamento materno na primeira hora de vida | |||
Não | 148 | 51,7 | 45,9;57,5 |
Sim | 138 | 48,3 | 42,5;54,1 |
Aleitamento materno exclusivo (em dias) | |||
<120 | 140 | 48,9 | 43,2;54,8 |
120-179 | 99 | 34,6 | 29,3;40,3 |
≥180 | 47 | 16,4 | 12,5;21,2 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%; b) Renda familiar (n=17), escolaridade paterna (n=17) e idade paterna (n=12) apresentaram n inferior a 286 - dados ignorados.
Alimentos ultraprocessados | Percentual de introdução dos alimentos ultraprocessados | |||
---|---|---|---|---|
Aleitamento materno exclusivo <120 dias n (%) | Aleitamento materno exclusivo 120-179 dias n (%) | Aleitamento materno exclusivo ≥180 dias n (%) | p-valora | |
Bolacha/Biscoito | 128 (91,4) | 89 (89,9) | 42 (89,4) | 0,627 |
Queijo petit suisse | 106 (75,7) | 66 (66,7) | 22 (46,8) | <0,001 |
Doce | 67 (47,9) | 38 (38,4) | 18 (38,3) | 0,147 |
Bolacha recheada | 46 (32,9) | 24 (24,2) | 7 (14,9) | 0,012 |
Salgadinho | 36 (25,7) | 14 (14,1) | 4 (8,5) | 0,003 |
Macarrão instantâneo | 36 (25,7) | 12 (12,1) | 4 (8,5) | 0,002 |
Achocolatado | 32 (22,9) | 11 (11,1) | 4 (8,5) | 0,006 |
Iogurte/bebida láctea | 32 (22,9) | 22 (22,2) | 9 (19,1) | 0,629 |
Refrigerante | 25 (17,9) | 11 (11,1) | 1 (2,1) | 0,004 |
Suco artificial | 25 (17,9) | 9 (9,1) | 2 (4,3) | 0,007 |
Embutido | 22 (15,7) | 10 (10,1) | 2 (4,3) | 0,028 |
a) Teste de tendência linear.
Aleitamento materno exclusivo (em dias) | Introdução de quatro ou mais alimentos ultraprocessados | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Análise bruta | Modelo 1 | Modelo 2 | Modelo 3 | |||||
RRa (IC95% b) | p-valorc | RRa (IC95% b) | p-valorc | RRa (IC95% b) | p-valorc | RRa (IC95% b) | p-valorc | |
<0,001 | <0,001 | <0,001 | <0,001 | |||||
<120 | 2,76 (1,50;5,07) | 3,05 (1,51; 6,14) | 2,86 (1,44;5,67) | 2,94 (1,51;5,71) | ||||
120-179 | 1,69 (0,88;3,25) | 2,01 (0,97;4,17) | 2,07 (1,02;4,22) | 2,17 (1,09;4,30) | ||||
≥180 | Ref | Ref | Ref | Ref | ||||
Critério de Akaike | 432,39 | 356,93 | 351,70 | 349,58 |
a) RR: risco relativo; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) Regressão de Poisson com estimador de variância robusto.
Notas:
Modelo 1: ajustado pelas variáveis ‘renda familiar’, ‘escolaridade materna’, ‘escolaridade paterna’ e ‘trabalho materno’.
Modelo 2: modelo 1 + ‘idade materna’, ‘idade paterna’, ‘situação conjugal materna’, ‘paridade’ e ‘número de consultas de pré-natal’.
Modelo 3: modelo 2 + ‘orientação de profissional de saúde sobre alimentação complementar’ e ‘frequenta ou frequentou creche ou escola’.
Discussão
Os achados do presente estudo mostram que as frequências de introdução de quatro ou mais alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida e de aleitamento materno exclusivo por menos de 120 dias foram elevadas. Crianças que receberam aleitamento materno exclusivo por um período inferior a 180 dias apresentaram maior risco de introdução de ultraprocessados (quatro ou mais) no primeiro ano de vida. Os achados vão de encontro às orientações do Ministério da Saúde, que recomenda o AME até os 6 meses e não introdução de ultraprocessados antes dos 2 anos de vida.2
Tendo em vista que os alimentos introduzidos nos primeiros anos de vida influenciam nos hábitos alimentares da criança, este estudo foi importante por abordar o AME enquanto fator determinante da posterior introdução alimentar. Entre as limitações da pesquisa, encontra-se o fato de não levar em consideração a frequência e quantidade dos ultraprocessados consumidos, e sim, se já foram ofertados alguma vez e a que idade. Não foi aplicado um instrumento específico para avaliar os alimentos separadamente, de acordo com o grau de processamento, o que pode afetar o número de ultraprocessados consumidos. O ponto de corte de quatro produtos foi definido com base na mediana da distribuição na amostra, considerando-se que apenas 12 crianças não haviam recebido qualquer produto ultraprocessado no primeiro ano de vida. Esta análise incluiu alimentos que são consumidos mais frequentemente, pela população estudada. Por fim, apesar de ser um ultraprocessado, a fórmula infantil não foi incluída no estudo por ser um alimento recomendado para crianças que não estão em aleitamento materno.
Elevada frequência de introdução de alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida também foi encontrada em outros estudos, realizados no Sul do Brasil.3,4 Um desses estudos, ao avaliar a introdução de alimentos não recomendados para menores de 1 ano de idade, residentes em municípios de baixa renda da região Sul do país, constatou que 78,9% dessas crianças haviam recebido biscoito doce/salgado, 73,8% queijo petit suisse e 41,9% bala/pirulito antes dos 12 meses de vida.3 O outro estudo, realizado com crianças de 4 a 24 meses internadas em um hospital terciário, também do Sul, observou: 21% das crianças internadas não haviam recebido qualquer tipo/qualidade de alimento ultraprocessado; e entre as restantes, a quantidade mediana de introdução desses alimentos foi de cinco tipos/qualidades.4
Alimentos ultraprocessados não devem ser ofertados às crianças nos dois primeiros anos de vida, porque são pobres em nutrientes, contêm elevado teor energético, irritam a mucosa gástrica e prejudicam a digestão e absorção de nutrientes.2,21 Entretanto, esses alimentos são produzidos com sabores agradáveis e atraentes, pelo que acarretam vícios e influenciam as preferências alimentares da criança e, consequentemente, seus hábitos de consumo por toda a vida.2,6 É importante que os sabores originais sejam apresentados à criança, a partir da oferta de alimentos in natura ou minimamente processados.2 Ademais, os ultraprocessados constituem fatores de risco para morbimortalidades, tanto na infância como na vida adulta: aumento de colesterol total e colesterol LDL,9 aumento da circunferência da cintura,8 sobrepeso/obesidade7, hipertensão arterial10 e asma11, por exemplo.
Sobre o aleitamento materno, dados globais revelaram que 2 em cada 5 crianças menores de 6 meses foram exclusivamente amamentadas em 2018.22 Boccolini et al.,23 ao avaliarem a tendência de aleitamento materno no Brasil, observaram uma prevalência de AME de 36,6% em crianças com menos de 6 meses, no ano de 2013. Uma revisão sistemática e metanálise de estudos brasileiros, publicados entre 2000 e 2015, encontrou uma prevalência de 25% de AME nos seis primeiros meses de vida da criança.24 Os achados dessa revisão mostraram-se superiores ao deste trabalho, segundo o qual 16,4% das crianças foram amamentadas exclusivamente por 180 dias ou mais. É possível que tais diferenças decorram da categorização do tempo de AME: o presente estudo considerou a interrupção em três períodos, antes dos 120, de 120 a 179 e aos 180 dias ou mais, enquanto os demais estudos avaliaram a prevalência de amamentação exclusiva em menores de 6 meses.
Maiores incidências de introdução de alimentação ultraprocessada em menores de 12 meses (e.g., suco artificial, refrigerante, queijo petit suisse, achocolatado, bolacha recheada, salgadinho e macarrão instantâneo), foram encontradas em crianças que receberam AME por menos de 120 dias de vida. O risco de introdução de quatro ou mais ultraprocessados entre as crianças sob amamentação exclusiva por menos de 120 dias de vida foi 194% maior quando comparado ao mesmo risco para as que mamaram, exclusivamente, por 180 dias ou mais. Entre as que mamaram, exclusivamente, de 120 a 179 dias, esse risco foi 117% maior.
A oferta de ultraprocessados associada à amamentação exclusiva por menos tempo, encontrada neste estudo, corrobora os achados de outros, realizados com pré-escolares.15,25 Um estudo de coorte de nascimento, realizado em Pelotas, Rio Grande do Sul, analisou padrões alimentares de crianças com 6 anos de idade e encontrou um elevado consumo de lanches e guloseimas associado ao aleitamento materno exclusivo por menos de um mês.25 Um estudo que avaliou a associação entre a duração do AME e o consumo de ultraprocessados, frutas e verduras em crianças de 4 a 7 anos, nascidas em Viçosa, Minas Gerais, observou que, para cada aumento de 1% na duração do AME, correspondia uma diminuição de 0,7% no consumo de ultraprocessados; e que o AME por menos de quatro meses aumentava em 70% a chance de estar no maior tercil de energia de consumo desses alimentos.15
A amamentação aumenta a aceitação da criança a uma maior variedade de alimentos, especialmente vegetais.26 Os sabores dos alimentos consumidos pelas mães durante o período da amamentação são transmitidos aos filhos pelo leite materno, o que influencia a introdução da alimentação complementar - que deve ocorrer a partir dos 6 meses.2 Além disso, mães que amamentam por mais tempo podem apresentar um estilo de vida mais saudável e serem mais conscientes da importância desse hábito, passando a ofertar mais frutas e legumes aos filhos.27 O consumo alimentar de mães e cuidadores também influencia a alimentação dos filhos, sendo comum a oferta às crianças de alimentos de sua preferência, independentemente de esses alimentos serem ou não recomendados para menores de 2 anos.12 Por sua vez, pais que consomem mais frutas e vegetais fornecem mais desses alimentos aos filhos.28
A partir da dependência do lactente para o consumo de alimentos, destaca-se a necessidade de as mães e cuidadores receberem orientações adequadas sobre alimentação saudável,2 incluindo aleitamento materno e alimentação complementar. Essas orientações devem ter em conta não apenas as necessidades nutricionais, mas também o contexto social e estrutural em que a criança está inserida.29
Assim sendo, a interrupção do AME e a oferta de ultraprocessados precocemente podem estar relacionadas tanto à deficiência de informação de mães e cuidadores sobre alimentação saudável como às estratégias de comunicação utilizadas por profissionais de saúde, enquanto entraves para adesão às orientações prestadas.4,30
Diante dos resultados do estudo, conclui-se que as frequências de introdução de alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida e de interrupção precoce do aleitamento materno exclusivo - AME - foram elevadas. E que a menor duração do aleitamento materno exclusivo exerce influência sobre a oferta de alimentos ultraprocessados em menores de 12 meses de vida. Assim, o estudo pode contribuir para o planejamento, implementação e execução de ações, sobretudo nos serviços de Atenção Primária à Saúde, como a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Essas ações devem se pautar na Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), noutras políticas de atenção à saúde materno-infantil e em diretrizes atualizadas, a exemplo do ‘Guia alimentar para crianças menores de dois anos’2 publicado pelo Ministério da Saúde do Brasil.