Apresentação
O presente artigo está relacionado ao capítulo sobre infecção pelo HIV que compõe o “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis” (PCDT-IST) e o “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos” (PCDT-HIV), publicados pela Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde do Brasil. Para a elaboração do PCDT, são realizadas a seleção e a análise das evidências disponíveis na literatura e discussão em um painel de especialistas para elaboração das recomendações. Os referidos documentos foram aprovados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e atualizados pelos grupos de especialistas do PCDT-IST 20201 e do PCDT-HIV.2
Aspectos epidemiológicos
O vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus - HIV) é um lentivírus que causa a síndrome da imunodeficiência adquirida (acquired immunodeficiency syndrome - aids), responsável por uma deterioração progressiva do sistema imunológico e que infecta principalmente os linfócitos T (LT) CD4+, os macrófagos e as células dendríticas.3 A infecção provoca a diminuição do número de LT-CD4+ por meio de diversos mecanismos, entre os quais a apoptose de células espectadoras, a morte viral de células infectadas e a morte de LT-CD4+ por meio de linfócitos T citotóxicos CD8+ que reconhecem as células infectadas. Quando o número de LT-CD4+ desce abaixo do limiar aceitável, o corpo perde a imunidade mediada por células e torna-se progressivamente mais suscetível a infecções oportunistas.4
A infecção pelo HIV pode ser transmitida por sangue, sêmen, lubrificação vaginal ou leite materno. O HIV está presente nesses fluidos corporais tanto na forma de partículas livres como em células imunitárias infectadas.5 As principais vias de transmissão são as relações sexuais desprotegidas, o compartilhamento de seringas contaminadas e a transmissão entre mãe e filho durante a gravidez ou amamentação.6 Pela saliva o risco de transmissão é mínimo.5
A epidemia de HIV/Aids no Brasil é considerada estável em nível nacional. A prevalência de HIV na população em geral é de 0,4%.7 Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2018 foram diagnosticados 43.941 novos casos de HIV e 37.161 casos de aids no Brasil, com uma taxa de detecção de 17,8/100.000 habitantes. Desde o ano de 2012 observa-se uma diminuição da taxa de detecção de aids no Brasil, que passou de 21,4/100.000 habitantes (2012) para 17,8/100.000 habitantes em 2018, configurando um decréscimo de 16,8%. Essa redução da taxa de detecção tem sido mais acentuada desde a recomendação de tratamento para todos os casos, independentemente dos níveis de LT-CD4+, implementada em dezembro de 2013.8 Os casos de HIV estão concentrados em grupos populacionais específicos, como profissionais do sexo (5%),9 homens que fazem sexo com homens (18%),10 pessoas transexuais (17%-37%),11 pessoas que usam álcool e outras drogas (5%)12 e aquelas em situações de vulnerabilidade, como pessoas de cor negra, população de rua e pessoas privadas de liberdade.13
Estima-se que, ao final de 2018, havia aproximadamente 900 mil pessoas vivendo com HIV (PVHIV) no país, das quais 85% estavam diagnosticadas; 81% estavam vinculadas a algum serviço de saúde; e 71% estavam retidas nos serviços, ou seja, contavam com acompanhamento sistemático de sua condição de saúde em um mesmo serviço de saúde. No mesmo período, a cobertura de terapia antirretroviral (TARV) foi de 66% e a supressão viral (carga viral inferior a 1.000 cópias/mL) foi de 62% entre todos os indivíduos infectados pelo HIV.7 A profilaxia pré-exposição (PrEP) está disponível desde janeiro de 2018 no Sistema Único de Saúde (SUS), com mais de 11.000 pessoas cadastradas até 2019.7 O estudo PrEP Brasil, desenvolvido com a finalidade de avaliar a aceitação, a viabilidade e a melhor forma de oferecer a PrEP à população brasileira como prevenção ao HIV, mostrou a eficácia e a viabilidade dessa estratégia em um cenário do mundo real.14 A oferta de PrEP em clínicas públicas de saúde em um ambiente de renda média pode reter um grande número de participantes e alcançar altos níveis de adesão, sem compensação de risco, nas populações investigadas.15 O uso de profilaxia pós-exposição (PEP) também vem aumentando no país; o número de dispensações de PEP passou de 15.540, em 2009, para 107.345, em 2018.7
Aspectos clínicos
As manifestações clínicas decorrentes da infecção pelo HIV abrangem um grande espectro de sinais e sintomas, com diversas fases, que dependem da resposta imunológica individual e da intensidade de replicação viral.16 Frequentemente ocorre um quadro agudo de infecção nas primeiras semanas, seguido de uma fase assintomática, que pode durar anos, antes de surgir a aids. No caso de indivíduos não tratados, o tempo médio entre o contágio pelo HIV e o aparecimento da aids situa-se em torno de dez anos.17 18 A infecção pelo HIV pode ser classificada em três fases.
Infecção aguda pelo HIV: a infecção aguda pelo HIV assemelha-se à de outras infecções virais. A síndrome retroviral aguda ocorre entre a primeira e a terceira semanas de infecção e caracteriza-se por sintomas inespecíficos como febre, cefaleia, astenia, adenopatia, faringite, exantema e mialgia. A linfadenomegalia acomete principalmente as cadeias cervicais anterior e posterior, submandibular, occipital e axilar. A síndrome retroviral aguda é autolimitada, com resolução espontânea em três a quatro semanas. Diante de um quadro viral agudo, em pessoa sexualmente ativa, o médico deve considerar a possibilidade de síndrome retroviral aguda entre os diagnósticos diferenciais.19 20
Latência clínica: caracteriza-se por ser em geral assintomática, com duração de anos. É possível encontrar linfadenomegalia e alterações inespecíficas em exames laboratoriais, de pouca importância clínica, como plaquetopenia, anemia (normocrômica e normocítica) e leucopenia. Enquanto a infecção progride, ocorre queda gradual de LT-CD4+, com aparecimento intermitente de infecções, que podem ter apresentações atípicas, ou reativação de infecções antigas, como tuberculose e herpes-zóster. Além disso, podem surgir sinais e sintomas como febre baixa, perda de peso, sudorese noturna e fadiga, além de diarreia, cefalia e leucoplasia e candidíase orais. As manifestações de imunodeficiência moderada podem surgir nessa fase (Figura 1).21 22
Manifestações clínicas de imunodeficiência moderada |
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Perda de peso inexplicada (>10% do peso) |
Diarreia crônica por mais de um mês |
Febre persistente inexplicada por mais de um mês (>37,6°C, intermitente ou constante) |
Candidíase oral persistente |
Candidíase vulvovaginal persistente, frequente ou não responsiva à terapia |
Leucoplasia pilosa oral |
Infecções bacterianas graves (por exemplo: pneumonia, empiema, meningite, piomiosite, infecções osteoarticulares, bacteremia, doença inflamatória pélvica grave) |
Estomatite, gengivite ou periodontite aguda necrosante |
Anemia inexplicada |
Angiomatose bacilar |
Displasia cervical (moderada ou grave)/carcinoma cervical in situ |
Herpes-zóster (≥2 episódios ou ≥2 dermátomos) |
Listeriose |
Neuropatia periférica |
Púrpura trombocitopênica idiopática |
Fonte: adaptado do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos, 2018.22
Aids: caracteriza-se pelo surgimento de manifestações de imunodeficiência avançada (Figura 2).22 O aparecimento de infecções oportunistas ou neoplasias é indicativo de aids. Dependendo do grau de imunossupressão e especificidades de cada caso, podem ocorrer uma ou várias infecções oportunistas ao mesmo tempo.
Doenças definidoras de aids |
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Síndrome consumptiva associada ao HIV (perda involuntária de mais de 10% do peso habitual), associada a diarreia crônica (dois ou mais episódios por dia com duração ≥1 mês) ou fadiga crônica e febre ≥1 mês |
Pneumonia por Pneumocystis jirovecii |
Pneumonia bacteriana recorrente (dois ou mais episódios em um ano) |
Herpes simples com úlceras mucocutâneas (duração >1 mês) ou visceral, em qualquer localização |
Candidíase esofágica ou de traqueia, brônquios ou pulmões |
Tuberculose pulmonar e extrapulmonar |
Sarcoma de Kaposi |
Doença por citomegalovírus (retinite ou outros órgãos, exceto fígado, baço ou linfonodos) |
Neurotoxoplasmose |
Encefalopatia pelo HIV |
Criptococose extrapulmonar |
Infecção disseminada por micobactérias não Mycobacterium tuberculosis |
Leucoencefalopatia multifocal progressiva |
Criptosporidiose intestinal crônica (duração >1 mês) |
Isosporíase intestinal crônica (duração >1 mês) |
Micoses disseminadas (histoplasmose, coccidioidomicose) |
Septicemia recorrente por Salmonella não thyphi |
Linfoma não Hodgkin de células B ou primário do sistema nervoso central |
Carcinoma cervical invasivo |
Reativação de doença de Chagas (meningoencefalite ou miocardite) |
Fonte: adaptado do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos, 2018.22
Diagnóstico
O controle adequado da epidemia de HIV pressupõe ampla e ágil testagem, sem coerção ou discriminação. São especialmente indicadas para testagem as pessoas com alto risco de infecção pelo HIV, incluindo aquelas com sintomas de infecção aguda ou crônica, pessoas com infecções sexualmente transmissíveis (IST), gestantes e pessoas pertencentes a populações vulneráveis, como homens que fazem sexo com homens com status de infecção desconhecido, usuários de drogas e profissionais do sexo. Recomenda-se testar qualquer pessoa sexualmente ativa, em especial aquelas sob risco substancial para infecção pelo HIV.22-24
Considera-se caso de infecção pelo HIV aquele que apresenta resultados positivos em dois testes, com metodologias diferentes,25 de qualquer uma das quatro combinações descritas na Figura 3. Em quaisquer das combinações de testes, quando a primeira amostra é negativa, a pessoa é considerada não infectada e não há necessidade de testes adicionais.25 Os testes rápidos de terceira geração, amplamente disponíveis no SUS, possuem janela imunológica de 30 dias.25
Primeiro teste | Segundo teste | Diagnóstico |
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ELISAa quarta geração (+) | Carga viral HIV (PCRb) (+) | Infecção pelo HIV |
ELISAa terceira geração (+) | Carga viral HIV (PCRb) (+) | Infecção pelo HIV |
ELISAa terceira geração (+) | WesternBlot HIV (+) | Infecção pelo HIV |
TRc 1(+) + TRc 2 (+) | Carga viral (PCRb) (+) | Infecção pelo HIV |
Fonte: adaptado do Manual Técnico para o Diagnóstico da Infecção pelo HIV, 2018.25
Notas: a) ELISA: enzyme-linked immunossorbent assay; b) PCR: polymerase chain reaction; c) TR: testes rápidos 1 e 2 de fabricantes diferentes.
O diagnóstico de infecção pelo HIV representa um momento ímpar na vida das PVHIV, cujas reações tendem a variar conforme as experiências e conhecimentos prévios de cada indivíduo. Um dos objetivos primordiais no cuidado é o estabelecimento de uma relação de confiança e respeito entre o profissional de saúde e a PVHIV.
Tratamento
Os objetivos do tratamento antirretroviral são reduzir a morbidade e mortalidade e prevenir a transmissão do HIV para outras pessoas.26 27 Para atingir esses objetivos, o tratamento deve resultar em supressão máxima do HIV. Desse modo, a adesão ao tratamento é condição essencial para o seu sucesso e deve ser discutida desde a primeira consulta.22
Abordagem inicial do adolescente e adulto infectado pelo HIV: é necessário estabelecer uma relação de empatia e acolhimento com a pessoa infectada. A anamnese cuidadosa deve detectar situações de risco, antecedentes de IST, doenças crônicas e imunizações. O exame físico deve ser completo e incluir exame detalhado da pele e da cavidade oral, aferição da pressão arterial, cálculo do índice de massa corpórea e medida da circunferência abdominal. Exames complementares iniciais e de seguimento clínico estão descritos no “Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos” (Figura 4).22
Exame | Pré-TARVa | Seguimento | Observação |
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Hemograma completo | Sim | 6-12 meses | Repetir em 2-8 semanas se início ou troca de TARVa com AZTb. |
Creatinina sérica e TFGec | Sim | Anual | Intervalo de 3-6 meses se uso de TDFd ou outras drogas nefrotóxicas, TFGec<60ml/min ou risco aumentado para doença renal (ex.: diabetes, hipertensão). |
Exame básico de urina | Sim | Anual | Intervalo de 3-6 meses se uso de TDFd ou outras drogas nefrotóxicas, TFGec<60ml/min, proteinúria ou risco aumentado para doença renal (ex.: diabetes, hipertensão). |
ASTe, ALTf, FAg, BTh e frações | Sim | Anual | Intervalos mais frequentes em caso de uso de drogas hepatotóxicas, doença hepática ou coinfecções com HCVi ou HBVj. |
CTk, LDLl, HDLm e TGLn | Sim | Anual | Intervalo de 6 meses se alterado na última análise. |
Glicemia de jejum | Sim | Anual | Considerar teste de tolerância à glicose caso o resultado da glicemia de jejum esteja entre 100 e 125mg/dL. |
PT/PPDo | Sim | Anual se LTp-CD4+ ≥350 céls/mm3 | Se LTp-CD4+<350 células/mm3 e excluída tuberculose (TB) ativa, iniciar tratamento para infecção latente (ILTB) sem necessidade de realização de PT/PPDo. |
Se tratamento prévio para TB ou ILTB, não há indicação de repetição; raio-X de tórax recomendado na consulta pré-TARVa. | |||
Teste imunológico para sífilis | Sim | Semestral/conforme indicação | Considerar maior frequência de triagem se risco ou exposição. |
Anti-HCVi | Sim | Anual/conforme indicação | Considerar maior frequência de triagem se risco ou exposição. |
Solicitar carga viral de HCVi se anti-HCVi positivo ou suspeita de infecção aguda. | |||
Triagem HBVj (HBsAgq, antiHBsr, anti-HBc totals) | Sim | Anual/conforme indicação | Considerar maior frequência de triagem se risco ou exposição. |
Vacinar pessoas não imunizadas. | |||
Pessoas imunizadas (anti-HBSr positivo) não necessitam nova triagem para HBVj. | |||
IgG para toxoplasmose, sorologia para HTLV1t e Chagas | Sim | - | Recomendado IgG toxoplasmose em todos. Sorologia para HTLV-1t e Chagas em áreas endêmicas. |
Rastreamento das alterações ósseas | Não | 2-3 anos | >40 anos ou fatores de risco. Avaliar pela “Ferramenta de avaliação de risco de fratura" - FRAX Brasilu. |
Avaliação cardiovascular (escala de risco de Framingham) | Sim | Anual | Frequências maiores conforme risco inicial e TARVa em uso. |
Rastreamento de neoplasias | - | - | Abordar no diagnóstico e conforme indicação específica. |
Imunizações | - | - | Abordar no diagnóstico e conforme indicação específica. |
Contagem LTp-CD4+/CD8+ | Sim | 6/6 meses | Com carga viral de HIV (CV-HIV) indetectável em 2 exames e LTp-CD4+ ≥350, não há necessidade de monitorar. |
Carga viral de HIV | Sim | 4-8 semanas após início ou troca e 6/6 meses | Repetir se falha virológica. |
Genotipagem de HIV | - | - | Indicada para gestantes, crianças e adolescentes, casos de HIV-tuberculose (HIV-TB), pessoas infectadas por parceiros em uso de TARVa e falha virológica confirmada. |
Fonte: adaptado do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos, 2018.22
Notas: a) TARV: terapia antirretroviral; b) AZT: zidovudina; c) TFGe: taxa de filtração glomerular estimada; d) TDF: tenofovir; e) AST: aspartato aminotransferase; f) ALT: alanina aminotransferase; g) FA: fosfatase alcalina; h) BT: bilirrubina total; i) HCV: vírus da hepatite C; j) HBV: vírus da hepatite B; k) CT: colesterol total; l) LDL: low density lipoprotein; m) HDL: high density lipoprotein; n) TGL: triglicerídeos; o) PT/PPD: teste tuberculínico; p) LT: linfócitos T; q) HBsAg: antígeno de superfície da hepatite B; r) Anti-HBs: anticorpos contra antígeno de superfície da hepatite B; s) Anti-HBc total: anticorpos totais contra o antígeno do núcleo da hepatite B; t) HTLV: vírus T-linfotrópico humano; u) Acessível pelo link: https://www.sheffield.ac.uk/FRAX/tool.aspx?country=55. Ao usar a calculadora FRAX, deve-se clicar na caixa de causa secundária de osteoporose (campo “10. Osteoporose secundária”).
Terapia antirretroviral: o início imediato da TARV está recomendado para todas as PVHIV, mesmo assintomáticas, independentemente do seu estágio clínico e imunológico. A terapia inicial deve sempre incluir combinações de três antirretrovirais, sendo dois da classe de inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos ou nucleotídeo, associados a um antirretroviral de outra classe.22 Essa outra classe pode ser de inibidores da transcriptase reversa não análogos de nucleosídeos, ou inibidores da protease, reforçado com ritonavir ou inibidores de integrase. Em cenário nacional, o esquema preferencial indicado para início de tratamento é a lamivudina + tenofovir + dolutegravir.22 Esse esquema envolve o uso diário de duas pílulas e é extremamente bem tolerado, com poucos casos de relatos de insônia e cefaleia.28 Além de boa tolerância e eficácia, são raros os casos de resistência primária a inibidores da integrase, e poucas interações medicamentosas podem ocorrer. Os antirretrovirais devem ser utilizados com cautela em pessoas que fazem tratamento com anticonvulsivantes como fenitoína, fenobarbital e carbamazepina e para os casos de coinfecção tuberculose-HIV, em razão da interação com a rifampicina.29 30 Além disso, o dolutegravir não deve ser coadministrado com oxicarbamazepina, dofetilida ou pilsicainida, sempre se avaliando a possibilidade de troca dessas medicações a fim de viabilizar o uso do dolutegravir.29 Outra exceção é representada por mulheres em idade fértil que pretendam engravidar, em razão do risco potencial de defeito na formação do tubo neural ocasionado pelo dolutegravir nas primeiras 12 semanas de gestação, apesar de esse risco ser muito baixo (0,19%).31 Nesse caso, o dolutegravir deve ser substituído pelo efavirenz, da classe de inibidores da transcriptase reversa não análogos de nucleosídeos, com genotipagem prévia, em razão do risco de resistência primária.32
Falha ao tratamento antirretroviral: a falha virológica é caracterizada pela carga viral do HIV detectável após seis meses do início do tratamento ou troca da terapia, ou carga viral detectável, em indivíduos em tratamento, que eram previamente indetectáveis. Diante da falha virológica, é necessário investigar a possível baixa adesão ao tratamento, bem como a presença de cepas de HIV com mutações de resistência aos antirretrovirais. Nesse caso, o exame de genotipagem é útil para escolha de esquema de resgate com maior eficácia de supressão viral.22
Comorbidades em PVHIV em uso de terapia antirretroviral: como a infecção pelo HIV se tornou uma doença crônica, doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes, síndrome metabólica e outras comorbidades se tornaram prevalentes entre as PVHIV.33-35 Tabagismo, dislipidemia e alterações renais, hepáticas, osteoarticulares e cognitivas também precisam ser manejadas.33 36 37 Assim, deve-se realizar uma abordagem integral essas pessoas, alinhada aos princípios da atenção primária à saúde.22
Monitoramento laboratorial da infecção pelo HIV utilizando contagem de LT-CD4+ e carga viral: a contagem de LT-CD4+ é um dos exames de maior importância para avaliar a indicação das imunizações e das profilaxias para infecções oportunistas.22 Por meio dele, é possível avaliar o grau de comprometimento do sistema imune, verificar a recuperação da resposta imunológica ao tratamento e definir o momento de interromper as profilaxias. Para casos estáveis, em TARV, com carga viral indetectável e contagem de LT-CD4+ acima de 350 céls/mm3, a realização do exame de LT-CD4+ não traz benefício ao monitoramento clínico-laboratorial. Flutuações laboratoriais e fisiológicas de LT-CD4+ não têm relevância clínica e podem inclusive levar a erros de conduta, como a troca precoce de esquemas de TARV ou a manutenção de esquemas em falha virológica.38-41 A carga viral deve ser o foco principal do monitoramento laboratorial nas PVHIV em uso de terapia antirretroviral, o que possibilita a detecção precoce de falha virológica. No Brasil, os profissionais de saúde podem consultar o Sistema Laudo, que disponibiliza informações para o monitoramento clínico das pessoas vivendo com HIV, como o histórico de exames de LT-CD4+ e carga viral, histórico de dispensação de TARV e resultados de genotipagens.42
Exames complementares e avaliações de seguimento clínico: além dos exames de contagem de LT-CD4+ e carga viral, outros parâmetros devem ser monitorados nas PVHIV. O seguimento clínico com exames complementares é necessário. A frequência de exames realizados depende da condição clínica e do uso de terapia antirretroviral pela PVHIV (Figura 4).22 Destaca-se a importância da investigação das IST, tuberculose ativa, risco cardiovascular e rastreamento de neoplasias (em especial o câncer de colo de útero em mulheres cis e homens trans).43
O seguimento clínico deve adequar-se às condições clínicas da PVHIV e à fase do tratamento. O primeiro retorno após o início ou alteração da TARV deve ocorrer em torno de sete a 15 dias, com avaliação de eventos adversos e problemas relacionados à adesão medicamentosa. A adaptação ao uso da TARV deve ser avaliada individualmente e podem ser necessários retornos mensais até se alcançar maior adesão. A determinação de um exame de carga viral é recomendada entre quatro e oito semanas de tratamento para avaliar eficácia. Sugere-se a periodicidade mínima de consultas médicas de seis em seis meses para casos de quadros clínicos estáveis em uso de TARV. Nesses casos, exames de controle serão realizados semestralmente, ou conforme avaliação e indicação. Nos intervalos entre as consultas médicas, o reforço à adesão deve ser estimulado nos momentos da dispensação dos medicamentos ou da realização de exames.22
Imunizações: todas as vacinas do calendário nacional são recomendadas para adultos e adolescentes vivendo com HIV, desde que estes não apresentem deficiência imunológica importante. Em caso de sintomas ou imunodeficiência grave (LT-CD4+ abaixo de 200 céls/mm3), sugere-se adiar a administração de vacinas, se possível. Vacinas de bactérias ou vírus vivos atenuados não devem ser realizadas naqueles com LT-CD4+ abaixo de 200 céls/mm3; para aqueles com LT-CD4+ entre 200 e 350 céls/mm3, os riscos e benefícios dessas vacinas devem ser avaliados (Figura 5).22 44
Vacina | Recomendação |
---|---|
Tríplice viral | Duas doses nos suscetíveis até 29 anos com LTa-CD+ >200 céls/mm3. |
Uma dose nos suscetíveis entre 30 e 49 anos com LT-CD+ >200 céls/mm3. | |
Varicelab | Duas doses com intervalo de três meses nos suscetíveis com LT-CD4+ >200 céls/mm3. |
Febre amarelab | Individualizar o risco/benefício conforme a situação imunológica, bem como a situação epidemiológica da região. Vacinar quando LT-CD4+ >200 céls/mm3. |
Dupla do tipo adulto (dT) | Três doses (0, 2, 4 meses) e reforço a cada 10 anos. |
Haemophilus influenzae tipo b (Hib) | Duas doses com intervalo de dois meses nos menores de 19 anos não vacinados. |
Hepatite A | Duas doses com intervalo de 6 a 12 meses em indivíduos suscetíveis à hepatite A (anti-HAVc negativo), portadores de hepatopatia crônica, incluindo portadores crônicos do vírus da hepatite B e C. |
Hepatite B | Dose dobrada recomendada pelo fabricante, administrada em quatro doses (0, 1, 2 e 6 a 12 meses) em todos os indivíduos suscetíveis à hepatite B (anti-HBcd negativo, anti-HBse negativo). |
Pneumocócica 23-valente | Se esquema de vacinação iniciado com pneumocócica 23-valente: fazer uma dose pneumo-13 após 1 ano da pneumo-23. Revacinação com pneumo-23 após 5 anos da primeira dose pneumo-23. |
Pneumocócica 13-valente | Se esquema de vacinação iniciado com pneumocócica 13-valente: após a pneumo 13, fazer uma dose pneumo-23 após 8 semanas. Revacinação com pneumo-23 após 5 anos. |
Meningocócica C conjugada | Uma dose e repetir a cada 5 anos. |
Influenza | Uma dose anual da vacina inativada contra o vírus influenza. |
Vacina papilomavírus humano 6, 11, 16 e 18 (recombinante) - HPV quadrivalente | Indivíduo entre 9 e 26 anos, desde que tenha a contagem de LT-CD4+ >200 céls/mm3. Administrar dose 1, agendar dose 2 com intervalo de dois meses após a dose 1 e realizar dose 3 com intervalo de seis meses após a dose 1 (0, 2 e 6 meses). |
Fonte: adaptado do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para manejo da infecção pelo HIV em adultos, 2018.22
Notas: a) LT: linfócitos T; b) Contraindicada em gestantes; c) Anti-HAV: anticorpos contra hepatite A; d) Anti-HBc: anticorpos contra o antígeno do núcleo da hepatite B; e) Anti-HBs: anticorpos contra antígeno de superfície da hepatite B.
Vigilância, prevenção e controle
O uso de linguagem acessível pelos profissionais de saúde é fundamental para a compreensão das PVHIV sobre aspectos relacionados à infecção, transmissibilidade, rotina da avaliação clínico-laboratorial, adesão ao tratamento e enfrentamento ao estigma e à discriminação.22 O diálogo permite o esclarecimento de dúvidas e auxilia a superação de dificuldades clínicas, sociais e comportamentais.
Outros aspectos a serem abordados rotineiramente pelo profissional são a saúde sexual da pessoa e suas parcerias, bem como o desejo de reprodução. Orientações objetivas sobre as estratégias atuais de prevenção combinada auxiliam na redução do risco de transmissão do HIV e das IST e permitem que a decisão sobre a concepção seja feita no melhor cenário clínico, com as menores chances de transmissão vertical e sexual.45 46
As parcerias sexuais das PVHIV devem ter acesso, de forma ética, a diagnóstico e tratamento oportunos. Para parceiros soronegativos, é importante oferecer estratégias de prevenção combinada, como o uso de preservativos, além de investigar outras IST e avaliar a indicação de profilaxia pré-exposição.47
A notificação da infecção pelo HIV segue os mesmos critérios de sigilo definidos na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011).48 Os profissionais de saúde devem notificar todos os casos de portadores de HIV e de pessoas que vivem com aids, mesmo que tenham sido comunicados anteriormente como infecção pelo HIV. Segundo a Portaria do Ministério da Saúde49 que define a Lista Nacional de Notificação Compulsória, publicada em 6 de junho de 2014, pessoas com infecção pelo HIV em acompanhamento clínico-laboratorial e diagnosticadas em data anterior devem ser notificadas à medida que comparecerem à rede de serviços de saúde. Os laboratórios da rede privada deverão informar, periodicamente, todos os casos diagnosticados de infecção pelo HIV à vigilância epidemiológica.
Populações e situações especiais
Coinfecção tuberculose-HIV: as PVHIV devem ser triadas para tuberculose em todas as consultas. Em casos de imunossupressão grave, é necessário investigar também as formas extrapulmonares e disseminadas da tuberculose. Em casos de terapia antirretroviral ainda não iniciada, com contagem de LT-CD4+ inferior a 50 céls/mm3, recomenda-se iniciar primeiro o tratamento para tuberculose e, em até duas semanas, introduzir a TARV. Nos casos com LT-CD4+ igual ou superior a 50 céls/mm3, a terapia antirretroviral pode ser iniciada até a oitava semana, próximo ao começo da fase de manutenção do tratamento da TB.50
A TARV inicial para pessoas coinfectadas TB-HIV é tenofovir +lamivudina + efavirenz, mediante realização de genotipagem pré-tratamento. Na impossibilidade de sua realização ou resultado não disponível em até duas semanas, deve-se utilizar o dolutegravir no lugar do efavirenz. Durante o tratamento da tuberculose e até 15 dias após o seu término, deve-se utilizar o dobro da dose habitual de dolutegravir. Caso a tuberculose ativa seja descartada, deve-se avaliar iniciar o tratamento da infecção latente pelo M. tuberculosis.22
Coinfecção sífilis e HIV: o diagnóstico e o tratamento da sífilis em PVHIV devem ser realizados da mesma forma que em pessoas não infectadas pelo HIV. Contudo, em PVHIV, pode ocorrer maior frequência de sobreposição de estágios da sífilis, sintomas mais exuberantes e lesões mais agressivas.51 52 É muito importante investigar neurossífilis por meio de punção lombar, na presença de sintomas neurológicos ou oftalmológicos, em casos de sífilis terciária ativa ou após falha do tratamento clínico. Caso a pessoa apresente sinais ou sintomas oculares e neurológicos, deve-se encaminhá-la com urgência para o especialista.51 53
Populações com maior urgência para início de terapia antirretroviral: a TARV deve ser iniciada uma vez estabelecido o diagnóstico da infecção pelo HIV, independentemente de critérios clínicos e imunológicos. Muitas pessoas têm evolução fatal sem nunca terem sequer iniciado o tratamento, apesar do acesso universal à terapia no país.54 Contudo, há situações que exigem maior urgência para o início da TARV, como gestantes, devido ao impacto na transmissão vertical do HIV; pessoas com comorbidades graves, como tuberculose ativa, hepatites B ou C e pessoas com risco cardiovascular elevado; e casos com LT-CD4+ inferior a 350céls/mm3 e sintomáticos, devido ao importante impacto na morbimortalidade.22