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Epidemiologia e Serviços de Saúde
Print version ISSN 1679-4974On-line version ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.13 no.1 Brasília Mar. 2004
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742004000100003
Por um processo de descentralização que consolide os princípios do Sistema Único de Saúde*
In search of a decentralization process which consolidates the principles of the Unified Health System (SUS) in Brazil
Luiz Roberto Barradas BarataI; Oswaldo Yoshimi TanakaII; José Dínio Vaz MendesIII
ISecretário de Estado da Saúde de São Paulo
IISecretário Adjunto de Estado da Saúde de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP
IIISecretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo-SP
RESUMO
A descentralização, desde a Constituição Federal de 1988, tem sido uma das diretrizes organizacionais mais enfatizadas no processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. A implantação da descentralização opõe-se à tradição centralizadora da assistência à saúde no Brasil e vem promovendo a noção de que o município é o melhor gestor para a questão da saúde, por estar mais próximo da realidade da população do que as esferas estadual e federal. Embora a municipalização tenha avançado bastante no Estado de São Paulo nos últimos anos, o processo suscita novas questões acerca do sistema público de saúde. A consecução de alguns dos princípios do SUS, tais como a universalidade do sistema, a integralidade e a eqüidade da assistência, também dependem da implementação, hoje ainda precária, dos princípios de regionalização e hierarquização, bem como de uma melhor definição do papel do gestor estadual e da divisão de responsabilidades entre ele e os gestores municipais no atendimento às demandas do sistema de saúde.
Palavras-chave: política de saúde; Sistema Único de Saúde; descentralização; municipalização;diretrizes do SUS.
SUMMARY
The decentralization strategy, initiated by the Federal Constitution of 1988, is one of the public organizational directives mostly focused on the process of construction of the Unified Health System (SUS) in Brazil. This decentralization process differs from the tradition of centralized health care in Brazil, and has promoted the concept that local levels (municipalities) are the best managers of public health matters, because of their close proximity to the population compared to the state or federal levels. Although the municipalization process has made substantial progress in São Paulo State in recent years, this process results in new questions about public health. These questions about SUS relate to principles such as the universality and integrality of the system, and the equity of care. In addition, other important considerations are the evolution of SUS (still precarious in some areas), regionalization and hierarchizing principles, as well as a better definition of the state role as a manager of SUS and the responsibilities shared by the state and local levels of the Brazilian federation related to public health policy.
Key words: health policy; Brazilian Health System; decentralization; municipalization; directives for the Unified Health System (SUS)
A descentralização entre os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)
Os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), fixados na Constituição Federal (CF) de 1988 e detalhados na Lei Orgânica da Saúde (Lei no 8.080/90) e na Lei no 8.142/90, foram o resultado de um longo processo histórico-social que buscava interferir nas condições de saúde e na assistência prestada à população brasileira.
Suas principais diretrizes, discutidas e desenvolvidas no movimento de reforma sanitária, foram consagradas pela VIIIa Conferência Nacional de Saúde de 1986, sendo hoje consideradas conquistas sociais definitivas.
Diversos autores1-3 propõem a divisão dos princípios fundamentais do SUS em dois grandes grupos:
• doutrinários (ou éticos), que se referem aos objetivos finalísticos do sistema e incluiriam:
- o direito universal à saúde, entendido não só como a oferta de serviços e ações de saúde, mas abrangendo também, em seu conceito, "políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos" (CF), incluindo como "fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País" (Lei no 8.080/90);
- a eqüidade, compreendida como o reconhecimento das diferenças existentes nas necessidades de saúde, quer regionais ou individuais, com o desenvolvimento de ações objetivando a justiça social, isto é, que reduzam a exclusão e beneficiem, prioritariamente, aqueles que possuem piores condições de saúde; e
- o atendimento integral à saúde, mediante a articulação de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, necessários à efetiva melhoria dos níveis de saúde da população.
• organizacionais (ou operativos), referentes aos processos que permitirão o cumprimento das principais diretrizes do SUS:
- a descentralização de ações e serviços de saúde, com direção única em cada esfera de governo e ênfase na municipalização;
- a regionalização e a hierarquização da rede de serviços assistenciais; e
- a participação da população na formulação e acompanhamento das políticas do sistema.
Entretanto, para ambos os grupos, podemos destacar situações históricas que condicionaram a oportunidade e a importância política de implementação dessas diretrizes.
Com relação à universalidade do direito à saúde, sabemos que, durante grande parte do século passado, os serviços de assistência médica e odontológica só eram garantidos aos beneficiários da previdência social e provisionados pelo Ministério da Previdência Social, que gerenciava recursos financeiros muito superiores aos da área de Saúde Pública, privilegiando a assistência médica curativa e os produtores privados de serviços de saúde.
Certamente, esse tipo de desenvolvimento da rede assistencial ocasionou grandes disparidades regionais. No que se refere aos recursos de saúde existentes, a concentração dos serviços em grandes centros urbanos, especialmente nos Estados com economias mais avançadas, gerou desigualdades no acesso da população aos serviços, com carências acentuadas justamente nos locais com os piores indicadores de saúde, justificando amplamente a preocupação com a eqüidade no SUS.
Da mesma forma, a separação entre os serviços previdenciários e as demais ações de Saúde Pública fragmentavam o setor Saúde e impediam avanços no sentido da integralidade do sistema. O Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde não dispunham, entre as suas principais atribuições, a de garantir assistência médica integral à população. Ao setor público competia, tão-somente, a realização dos serviços tradicionais: vigilância sanitária, controle de endemias, vacinação, puericultura, atendimento pré-natal e assistência médica aos doentes mentais, hansenianos e tuberculosos. E com dificuldade, é bom lembrar, pois os orçamentos eram sempre mínimos.
Com relação aos princípios organizacionais, a descentralização foi impulsionada na vertente da municipalização.4 Entre as principais razões que fundamentavam essas propostas, podemos salientar:
• A descentralização era uma resposta à estrutura anterior da assistência à saúde, extremamente concentradora e autoritária nas decisões, obviamente inadequada para um país do tamanho e complexidade do Brasil.
• Somente em um sistema descentralizado, seria possível a maior participação de todos os interessados na formulação da política e na implantação de serviços e ações de saúde, adaptados às diferentes regiões e realidades de saúde.
• A noção de que o município é o mais adequado âmbito para tratar a questão da saúde de maneira direta, uma vez que é o ente federado mais próximo da população, capaz, portanto, de identificar as peculiaridades e as diversidades locais e adaptar as estratégias para a superação dos problemas de saúde, de forma integral.
• A associação dessas duas razões implica e evidencia a responsabilidade do gestor municipal, mais acessível à participação, avaliação e fiscalização dos cidadãos, usuários diretos do sistema.
• Nesses moldes, a descentralização também seria uma solução para outro problema herdado do sistema de saúde anterior ao SUS: direções múltiplas e desintegradas, cuja situação exemplar era o duplo comando decorrente da divisão de funções e recursos entre os serviços do Ministério da Previdência Social, de um lado, e do Ministério da Saúde, de outro.
• Daí, a ênfase do texto constitucional, como na Lei no 8.080,5 sobre a "descentralização, com direção única em cada esfera de governo".
O princípio da participação popular surge nesse contexto, como reação às práticas tecnocráticas e excludentes do período autoritário e ferramenta fundamental para a adequação do SUS às verdadeiras necessidades coletivas de saúde. Somente com a democratização e maior participação social no setor, seria possível romper, gradativamente, com o modelo anterior, cujas políticas eram determinadas pelo poder econômico e pelos serviços existentes, não pelo perfil de problemas de saúde da população.
Os princípios organizacionais da regionalização e da hierarquização de serviços, imprescindíveis para a racionalização do sistema, também visam modificar a situação anterior. Até então, os serviços de saúde, públicos ou privados, não trabalhavam de maneira integrada mas isoladamente, sem o estabelecimento de referências formais e exigindo da própria população o exercício de descobrir onde obter o atendimento de que necessitasse.
Um breve histórico do desenvolvimento da descentralização do SUS no Estado de São Paulo
No Estado de São Paulo, o processo de descentralização e municipalização vem de longa data, anterior à Constituição Federal de 1988. Entre as suas primeiras realizações, podemos apontar o Programa Metropolitano de Saúde (PMS), cuja elaboração teve início em 1982. O PMS foi um projeto de reestruturação da rede de serviços de saúde da Região Metropolitana de São Paulo, abrangendo, principalmente, as áreas mais carentes. O programa implementou, entre outros pontos, a construção de unidades básicas de saúde (UBS) e de hospitais, muitos dos quais, após concluídos, tiveram sua gestão transferida para os municípios.
Logo a seguir, em 1983, surgiu o programa AIS, ou Ações Integradas de Saúde, destinado a promover a integração dos serviços públicos acompanhada de discussões e movimentos sociais, desencadeados no período de redemocratização do país, que passavam a exigir saúde como direito do cidadão. Tais fatos propiciaram o surgimento de propostas mais amplas de descentralização das ações de saúde e mudanças na sua operacionalização, como foi o caso do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), em 1987.
Àquela época, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo passava a dirigir a superintendência estadual do Inamps, iniciava a municipalização de UBS estaduais no interior e recebia a gerência – estadualização – dos serviços hospitalares e ambulatoriais próprios da Previdência.
No período de 1987 a 1994, a maioria das unidades de saúde estaduais que prestavam serviços de atenção primária, como as UBS e os laboratórios locais, foi repassada à gerência dos municípios do interior do Estado e da Grande São Paulo, com exceção da Capital.
O Município de São Paulo, contrariamente ao ocorrido durante a implementação do PMS, não apresentou avanços no processo de municipalização, exceto pela transferência de 51 UBS estaduais para a prefeitura da cidade, entre 1990 e 1992.
Em 1996, o governo paulistano optou pelo desenvolvimento do Plano de Atendimento à Saúde (PAS), um sistema desvinculado do SUS. Por esse motivo, a Secretaria de Estado de Saúde manteve com ela a gerência e gestão das UBS, ambulatórios e hospitais gerais próprios, situados na Capital, bem como deu início ao Programa de Saúde da Família (Qualis/PSF) na suas regiões periféricas.
Até então, apesar dos avanços institucionais, principalmente políticos, alcançados na área da Saúde no país, os municípios ainda tinham um papel restrito, limitando-se à gerência de alguns serviços de atenção primária. A rede de serviços da previdência não havia sofrido modificações importantes em sua organização, pois as Secretarias Estaduais davam continuidade aos contratos e convênios existentes, sem alterar significativamente a gestão do sistema.
Embora o processo de municipalização dos serviços de atenção primária estadual já tivesse ocorrido na maior parte do Estado, o desenvolvimento da gestão municipal de saúde chegou mais tarde e de forma mais lenta, iniciando-se apenas em 1993, quando o Ministério da Saúde editou a Norma Operacional Básica.
A NOB-SUS 19936 criou as formas alternativas de gestão: incipiente, parcial e semiplena. Apenas neste último nível, os municípios assumiam responsabilidades e tinham maior controle da gestão do sistema. A norma também estabeleceu as comissões intergestoras (tripartite e bipartite) e previu as transferências de recursos fundo a fundo, conforme o tipo de gestão.
No início de 1995, São Paulo tinha apenas 11 municípios habilitados na gestão semiplena em saúde, 23 com gestão parcial e 123 com gestão incipiente, permanecendo 398 municípios sem nenhuma forma de habilitação nas gestões previstas.
A política de descentralização foi reforçada após a edição, em 1996, de uma nova norma operacional básica, a NOB-SUS 1996,7 que atribuia ao gestor municipal responsabilização pela situação de saúde de sua população e pela organização e desenvolvimento das ações no sistema municipal de saúde, estabelecendo a Gestão Plena de Sistema de Saúde Municipal (GPSM) e a Gestão Plena de Atenção Básica de Saúde para os municípios.
No Estado de São Paulo, desde 1995, foi grande o avanço do processo de descentralização coordenado pela Secretaria de Estado da Saúde em parceria com o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS). Em 2003, já eram 161 municípios gestores plenos de saúde e 482 gestores plenos de atenção básica, restando apenas dois municípios não habilitados.
A Capital permaneceu sem habilitação até o final de 2000. Em 2001, pleiteou e conseguiu a sua classificação na Gestão Plena de Atenção Básica em Saúde, após comprovar as condições de acesso a essa categoria, marcando seu pleno retorno ao SUS. Até meados de 2002, todas as unidades de atenção primária, inclusive as do Qualis/PSF, foram transferidas para a gestão municipal. Hoje, podemos afirmar que, no Estado, a atenção primária é totalmente gerida pela esfera municipal.
Por uma visão crítica das propostas de comando único municipal – a conciliação entre a descentralização e os demais princípios do SUS
A implementação da NOB-SUS 1996, ao criar as categorias de gestão municipal, permitiu inegáveis avanços no processo de descentralização, como é o caso do financiamento per capita do sistema, decorrente da implementação do Piso da Atenção Básica (PAB) para as ações de atenção primária desenvolvidas pelos municípios. A mesma NOB ainda introduziu incentivos específicos para áreas estratégicas do sistema, aumentando a transferência de recursos fundo a fundo.
Por outro lado, os municípios que se habilitaram na gestão plena de sistema passaram a assumir o controle de todos os serviços de saúde que atendiam a sua população, recebendo, diretamente para o Fundo Municipal de Saúde, os recursos federais (tetos financeiros) destinados a esses serviços, rompendo com a lógica de pagamento por serviços prestados.
Porém, a descentralização traz novos desafios, a serem levados em conta, para que o desenvolvimento do sistema possa atingir o seu objetivo de garantir o acesso universal e eqüitativo da população à saúde.
De fato, no próprio texto da NOB-SUS 1996, menciona- se, ao lado das vantagens da responsabilização dos gestores municipais, "o elevado risco de atomização desordenada dessas partes do SUS, permitindo que um sistema municipal se desenvolva em detrimento de outro, ameaçando, até mesmo, a unicidade do SUS."
Mendes8 aponta problemas reais ocorridos no processo de municipalização em diversas regiões do Brasil, em que os municípios expandem a atenção médica sem nenhuma articulação regional, o que gera desperdício de recursos públicos por ineficiência assistencial, com serviços de saúde (hospitais) apresentando baixa taxa de ocupação, aparelhos de apoio laboratorial (ultra-som, por exemplo) trabalhando com ociosidade, entre outros problemas.
A descentralização não tem conseguido, por si só, determinar transformações significativas no modelo assistencial adotado nas regiões, repetindo, na escala municipal, erros anteriores.
Os conflitos do gestores municipais entre si e com o gestor estadual, muitas vezes limitados à discussão sobre a divisão de tetos financeiros do SUS(insuficientes para o Estado de São Paulo), refletem, entre outros pontos, a imprecisão na definição do papel do gestor estadual9 e a ausência de um desenho de regionalização do sistema. Tais fatos dificultam a atribuição de responsabilidades sobre as ações de saúde regionais, inclusive aquelas prestadas por um município com gestão plena, destinadas não só a seus munícipes, mas, também, aos cidadãos de municípios vizinhos.
Assim, pode-se dizer que o avanço na regionalização e na hierarquização da rede de serviços do SUS não acompanhou, adequadamente, o processo de municipalização no Estado, tal como ocorreu no país.
O problema foi reconhecido pelo Ministério da Saúde e tornou-se objeto principal da Norma Operacional da Assistência a Saúde, a NOAS-SUS 2001,10 republicada em 2002,11 que propôs, para o aprimoramento do processo de descentralização, uma estratégia de regionalização mediante a elaboração e implementação de um Plano Diretor de Regionalização. Esse plano define as áreas geográficas (módulos), os fluxos e pactuações entre os gestores – Programação Pactuada Integrada, ou PPI –, para organizar, efetivamente, uma rede hierarquizada e regionalizada.
Se, por um lado, o processo de planejamento desencadeado em 2002 pela NOAS-SUS no Estado de São Paulo representou um avanço, ao situar o plano regional como unidade de planejamento assistencial, a efetivação de seu desenvolvimento e o sucesso de suas premissas ainda dependem da definição mais clara de papéis e mecanismos para o acompanhamento e aperfeiçoamento do novo desenho organizacional e funcional da assistência à saúde.
Quando da edição da primeira versão da NOAS, em 2001, a importante questão do comando único já se destacava e continua sendo objeto de mal-entendidos e interpretações variadas entre os gestores e técnicos que participam do debate do planejamento da Saúde.
Entre as estratégias propostas pela NOAS-SUS 2001, conforme vemos descrito em sua introdução, "cabe aos municípios o planejamento no âmbito municipal e a relação direta com os prestadores em seu território, visando ao comando único sobre o sistema de saúde em cada esfera." Na explicitação do seu desenho, vemos que, no caso de municípios habilitados em gestão plena de sistema de saúde municipal (GPSM), todos os serviços, independentemente da complexidade, devem estar sob gestão municipal, "...exercendo o mando único, ressalvando as unidades estatais de hemonúcleos/hemocentros e os laboratórios de saúde pública..."
O próprio Ministério da Saúde detectou problemas no desenho de regionalização proposto pela NOAS-SUS 2001. Tanto é que, quando da publicação da NOAS-SUS 2002, essa questão foi revista no item referente à Política de Atenção de Alta Complexidade/Custo no SUS, possibilitando que o comando único fosse municipal ou estadual.
Sem pretender aprofundar-se em interpretações legais ou jurídicas sobre as disposições de Comando Único da NOAS, pois este não é o objetivo do presente trabalho, lembre-se, entretanto, que a norma do Ministério da Saúde não pode se sobrepor à Constituição Federal ou à Lei no 8.080/90, cujo texto estabelece "descentralização, com direção única em cada esfera de governo", não havendo qualquer determinação, naqueles diplomas legais, que obrigue o comando único de todos os serviços e ações de saúde, na área geográfica de um município, por uma das esferas de governo.
Notamos, ainda, que a Lei no 8.080, diferentemente da NOAS, estabelece, como competência da direção estadual (art. 17o), não só "coordenar a rede estadual de laboratórios de saúde pública e hemocentros, e gerir as unidades que permaneçam em sua organização administrativa" (inciso X), mas "identificar estabelecimentos hospitalares de referência e gerir sistemas públicos de alta complexidade, de referência estadual e regional" (inciso IX).
A princípio, a forma como a questão foi apresentada pela NOAS-SUS 2001, com ênfase no comando único municipal, permitiu, infelizmente, o surgimento de posições que representam uma "disputa" pela gestão de serviços de alta complexidade entre o gestor estadual e os municípios em GPSM. Tal abordagem é inadequada, pois não leva em consideração a importância dos diferentes papéis dos gestores no SUS, da racionalidade na organização do sistema e das condições objetivas para a definição da melhor gestão desses serviços.
Vários aspectos devem ser ponderados, antes de se alcançar uma solução acertada para a questão. Deve-se ter sempre, como horizonte, que a descentralização – com ênfase na municipalização – é uma estratégia de organização do sistema de saúde que busca, em última análise, a garantia do acesso da população aos serviços, sem prejuízo para a consecução dos demais princípios da universalidade, integralidade e eqüidade preconizados para o SUS.
Assim, se a gestão municipal deve ser responsável pela atenção à saúde de seus próprios cidadãos, pelas razões já apontadas neste documento, outras propostas podem ser discutidas para a gestão dos serviços de abrangência regional, metropolitana ou estadual.
Os municípios não são obrigados a contar com equipe técnica para o planejamento e gestão da atenção à saúde de alta complexidade/custo, que transcende, geograficamente, os limites e as necessidades municipais. Também não há garantia de que a municipalização da gestão de serviços de saúde mais complexos desencadeie, no poder municipal, interesse em atender às demandas de cidadãos de outros municípios e regiões ou mesmo facilite a sua participação na formulação ou no controle da política regional de saúde.
Essa situação é evidente nas regiões metropolitanas do Estado, que possuem grandes hospitais universitários estaduais dotados de serviços de abrangência não apenas regional, como estadual e, em alguns setores, até nacional. Também são dignos desse exemplo outros hospitais especializados sob gestão estadual, que compõem a rede hierarquizada do Estado, para atendimento de câncer, transplantes, cirurgias cardíacas, etc.
É por essas razões que a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo tem procurado desenvolver um processo de descentralização gradativo e consensual no Estado, com a participação de todos os gestores municipais interessados. Em municípios como Campinas, sede de uma região metropolitana, o processo de descentralização, feito de comum acordo entre os gestores, manteve, até o presente momento, a gestão estadual conjunta com a municipal, com resultados satisfatórios para o SUS.
O gestor estadual também já recebeu manifestação de inúmeros representantes dos municípios da região metropolitana da Capital, expressando a necessidade de planejar e discutir, com maior detalhamento e cuidado, a questão da possível municipalização da gestão de serviços estaduais, decorrente da proposta de gestão plena de sistema de saúde municipal da cidade de São Paulo.
Tal como ocorrera em Campinas, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo iniciou discussões com a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo em 2003, conseguindo chegar a um consenso sobre as propostas de gestão plena municipal, tendo, como pano de fundo, a preocupação com a garantia de acesso aos serviços para todos os cidadãos dos municípios da Região Metropolitana.
Pactuou-se, entre o Estado e a prefeitura, que os hospitais estaduais localizados na área do Município de São Paulo não teriam a sua gerência municipalizada, tal como já ocorrera com as unidades básicas de saúde, permanecendo sob gerência estadual.
Entretanto, a gestão dos hospitais (sejam próprios do Estado, sejam filantrópicos) seria municipalizada sempre que mais de 90% das internações e atendimentos fossem de munícipes da Capital; assim, suas vagas passariam a ser geridas por uma Central de Vagas Municipal, integrando-os completamente ao sistema municipal de saúde.
Aqueles hospitais que atendessem a munícipes da Capital em um percentual inferior ao citado, permaneceriam sob gestão estadual e com seus leitos inscritos na Central de Vagas Metropolitana da Secretaria de Estado da Saúde.
A Secretaria de Estado da Saúde extinguiu o sistema de agendamento direto por telefone para pacientes nos ambulatórios de especialidade estaduais, vigente até a habilitação do município na gestão plena. Pactuou-se que somente os distritos de saúde municipais poderiam marcar consultas nos ambulatórios estaduais, tendo como porta de entrada as UBS municipais, que encaminhariam os pacientes, quando necessário, após o atendimento médico na rede de atenção primária.
Dessa forma, considerando a experiência adquirida no processo de descentralização desenvolvido no Estado e em respeito às necessidades de maiores estudos e discussões, entendemos que o comando único, recomendado pela NOAS-SUS 2002, não deve ser aplicado imediatamente, apenas no sentido de obedecer ao texto da norma. Ainda há situações não equacionadas, do ponto de vista da divisão das responsabilidades assistenciais entre os gestores estadual e municipais, que podem ocasionar prejuízo à população no acesso aos serviços de saúde.
Isso não significa qualquer oposição à estratégia de descentralização e municipalização do sistema. Entendemos que esses princípios eram e continuam a ser fundamentais para garantir a ampliação do acesso da população a serviços de saúde de qualidade, a democratização e a participação dos usuários no legítimo exercício da cidadania na área da Saúde.
Antes, pretendemos sugerir que a municipalização somente atingirá os seus objetivos plenamente se for acompanhada da aplicação dos demais princípios do SUS, principalmente os doutrinários, sem que dela se exija, isoladamente, a solução de todos os problemas de saúde da população.
Como é do conhecimento de todos, existem grandes diferenças de desenvolvimento econômico e social entre os municípios e as regiões, exigindo, ao lado da municipalização da gestão, medidas que implementem os serviços de saúde nas áreas menos privilegiadas. Fazer progredir a eqüidade entre os municípios é uma das funções do gestor estadual, tal como a eqüidade entre os Estados deve ser preocupação do gestor federal do sistema.
É necessário impulsionar os princípios organizacionais do SUS menos desenvolvidos até o momento: a regionalização e a hierarquização. A ampliação de acesso da população das diferentes regiões do Estado somente será possível se os serviços e ações de saúde estiverem integrados em uma verdadeira "rede de saúde", tendo em conta, principalmente, a estrutura municipal existente no Estado, em que a maioria dos municípios contam com população pequena e escassos recursos para a Saúde.
Por um lado, a coordenação desse planejamento regional é papel indiscutível da Secretaria de Estado da Saúde, que não se encontra completamente preparada para a tarefa e necessita reorganizar a sua estrutura, reciclar e capacitar o seu pessoal para tanto. Por outro, não será possível obter sucesso sem a participação ativa de todos os municípios, que poderão contribuir para o planejamento e a construção do SUS em suas respectivas regiões.
Assim, a participação municipal no SUS não pode se limitar à melhoria de atendimento no âmbito local, embora tal fato seja fundamental. Também deve abranger uma área mais ampla, incorporando a questão regional no horizonte de suas preocupações e buscando contribuir, decididamente, para a evolução do sistema. Afinal, o estabelecimento da rede hierarquizada e regionalizada de serviços beneficiará a totalidade dos cidadãos do Estado.
Podemos citar, como exemplo de medidas que abordaram o problema de regionalização e hierarquização da atenção médica, a experiência da região de Ribeirão Preto na implantação, bem sucedida, de um sistema de referência e contra-referência entre o hospital universitário e demais serviços do SUS, para o atendimento às urgências e emergências em âmbito regional.
Tal como ocorria – e ainda ocorre – em outros serviços de saúde universitários do Estado, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP/USP) apresentava excessiva demanda de pacientes da cidade e de outros municípios da região, que buscavam diretamente o seu pronto-socorro como porta de entrada para consultas ambulatoriais ou internações.
Na sua maioria, esses casos não supunham doenças de maior complexidade e poderiam ser atendidos em outras unidades do SUS na região; entretanto, provocavam filas no HCFMRP/USP, dificultando o atendimento daqueles pacientes que realmente necessitavam do hospital terciário.
Com o objetivo de organizar a atenção às urgências, em 1998, iniciaram-se entendimentos entre o HCFMRP/USP, a Direção Regional de Saúde de Ribeirão Preto da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto e demais entidades envolvidas com a Saúde. Preliminarmente, foram mapeados os recursos assistenciais de urgência, com a definição da hierarquização, do acesso e da capacidade assistencial oferecida pelos prestadores de serviço. Ficou pactuado entre os gestores, os prestadores e a população, que as unidades básicas e os centros de saúde passariam a ser a porta de entrada para o sistema de urgência.
Ademais, com os recursos já existentes, organizou-se a Central Única de Regulação Médica (CURM), que assumiu a função de ordenar o fluxo de pacientes e garantir o acesso à rede hospitalar. O Sistema de Atendimento Médico de Urgência (SAMU) foi agregado à CURM e suas viaturas dotadas de recursos tecnológicos e pessoal preparado para oferecer suporte avançado de vida, bem como garantir a transferência de pacientes graves das unidades de saúde e do domicílio para os hospitais.
A equipe técnica da CURM passou a racionalizar a utilização dos recursos hospitalares, preservando os espaços aptos a atender a alta complexidade e garantindo o atendimento imediato às situações que colocam a vida em perigo iminente. Assim, pacientes que não demandam investigação e procedimentos especializados, em geral, não são mais encaminhados ao Hospital das Clínicas. A Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas (UE/HC) assumiu, perante o sistema, a referência para os cuidados aos casos mais complexos de uma região que abrange cerca de 4 milhões de pessoas.
A redução do número de consultas médicas na UE/HC foi significativa, passando de 114 mil no ano de 1999 para 50 mil em 2001.
A percentagem de ocupação de leitos na Unidade de Emergência, antes do início das atividades da Central Única de Regulação Médica, era inaceitável: em 1999, atingiu 113%. Havia pacientes mal acolhidos, subavaliados e subtratados, ocupando macas e cadeiras de roda pelos corredores do hospital. No ano 2000, a taxa média de ocupação foi de 97,1%; e no ano de 2001, de 88,4%. O número de internações na UE/HC reduziu-se, de 14 mil em 1999 para 11 mil em 2001.
Os ajustes realizados, além de resgatarem o papel do Hospital Universitário no atendimento de urgências/emergências, beneficiando toda a população da região, contribuíram para o início, há dois anos, do processo de humanização no atendimento de urgência da UE/HC. Com a redução da superlotação na Sala de Urgência, foi organizado um espaço de acolhimento social e psicológico dos pacientes e familiares afetados por agravos agudos à saúde.
Essa experiência somente foi possível pela adequada adesão dos demais serviços de saúde locais, municipais ou filantrópicos. Já foram iniciadas e encontram-se em andamento discussões com os demais hospitais universitários sob gestão estadual, para que estudos e propostas semelhantes possam ser aplicadas, racionalizando o uso dos escassos recursos públicos do SUS.
Contudo, o planejamento regional não pode ser entendido como a simples reorganização dos fluxos de referência e contra-referência entre os serviços de saúde, embora essa questão seja importante. A regionalização e a hierarquização devem avançar com o estudo e a reestruturação do próprio sistema existente nas regiões, modificando o papel e as funções dos serviços de saúde, inclusive verificando a sua viabilidade e funcionalidade. Ainda mais, quando sabemos que os serviços regionais e de referência são, geralmente, os de maior complexidade e custo para o sistema: terapia renal substitutiva, quimioterapia e radioterapia, exames especializados (tomografia, ressonância, etc.), atendimento de urgências e emergências, unidades de terapia intensiva, atendimento à gestação e aos neonatos de alto risco, cirurgias de maior complexidade, entre outros procedimentos.
As necessidades epidemiológicas regionais devem ser utilizadas como parâmetros de reorganização, no lugar da simples oferta de serviços que, historicamente, orientou o estabelecimento da rede de assistência à saúde. Somente com a utilização de outra lógica organizadora para a rede, que incorpore os aspectos epidemiológicos, a racionalidade e a otimização do uso dos recursos, será possível aproximarmo-nos do objetivo de garantir a universalidade e a integralidade da atenção à saúde oferecidas aos pacientes.
Atualmente, encontramo-nos na oportunidade de conciliar a descentralização e a municipalização com a universalidade, a integralidade e a eqüidade no SUS. Para isso, devemos buscar a construção efetiva da rede regionalizada e hierarquizada, prevista pela Constituição Federal de 1988.
O desenvolvimento do sistema descentralizado comporta o perigo de atingir a universalidade sem a integralidade: é aquela situação que poderia ser denominada de "SUS para pobres", em que temos apenas o atendimento básico universal, sem conseguir estruturar serviços de média e alta complexidade que dêem cobertura suficiente e adequada para todos. Fenômeno que, de fato, ocorre na maioria das regiões do país, obrigando pessoas a longas peregrinações – até para outros Estados –, em busca do tratamento de que necessitam, na maioria das vezes enfrentando filas e exagerado tempo de espera por atendimento.
Por sua vez, o desenvolvimento do sistema sem a aplicação criteriosa da eqüidade pode resultar na garantia da integralidade sem a universalidade, como é o caso de municípios e regiões com grande concentração de serviços que beneficiam, prioritariamente, sua população, ao lado de outros sem acesso aos recursos mais complexos.
Ou em condição ainda mais injusta: freqüentemente, o SUS tem sido obrigado, por mandatos judiciais, a atender necessidades terapêuticas especiais, muitas vezes com medicamentos de efeito duvidoso do ponto de vista científico, por evidente influência da indústria farmacêutica interessada em comercializar novos e caros produtos; e para pouquíssimos pacientes que têm facilidade de acesso às medidas legais, justamente por possuírem melhores condições socioeconômicas. Tal prática resulta em alto custo financeiro para o sistema e prejudica a grande maioria dos cidadãos, que não conseguem ou não podem pagar por serviços judiciais equivalentes.
Entre os demais problemas que permeiam o sucesso efetivo do processo de descentralização e municipalização, destacamos aqueles relativos aos recursos humanos, indiscutivelmente, o mais importante "insumo" da Saúde.
Esse setor apresenta diversas questões ainda não solucionadas, como a dos funcionários "municipalizados", que podem sofrer prejuízos salariais e na carreira pública. É o caso daqueles que não recebem sequer a substituição de prêmios, assegurada aos demais profissionais da Secretaria de Estado da Saúde, como o prêmio de incentivo, por exemplo.
Outros pontos a serem enfrentados são: a existência em um mesmo serviço ou função para profissionais com diferentes remunerações e regimes de trabalho, o que dificulta, sobremaneira, a administração do serviço; a necessidade de soluções mais adequadas à legislação existente no setor público, para a contratação de agentes de saúde do Programa Saúde da Família (PSF), bem como para os demais profissionais da equipe; a Lei da Responsabilidade Fiscal e suas limitações para o gasto com pessoal, uma vez que a maior parte das despesas do setor Saúde envolve recursos humanos.
Todos esses obstáculos evidenciam as dificuldades e contradições entre os princípios do SUS e a realidade vivida no país. Sabemos que, mesmo com o cumprimento integral, pelos governos municipal, estadual e federal, das determinações da Emenda Constitucional no 29/00, os recursos financeiros do SUS serão sempre insuficientes diante das demandas de saúde. A racionalização no uso dos recursos do sistema também deve levar em conta a impossibilidade de o SUS realizar tudo para todos. É necessário estabelecer prioridades.
Portanto, a conquista da universalidade, da integralidade e da eqüidade não depende apenas da descentralização e da municipalização, mas da integração de esforços que otimize e racionalize os recursos existentes, construindo uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços que atenda as questões de saúde, relevantes de um ponto de vista epidemiológico, em cada região. A regionalização e hierarquização desses serviços exige a discussão, o esclarecimento e o fortalecimento do papel do gestor estadual, sem o qual se torna difícil visualizar a continuidade de desenvolvimento do SUS e a viabilização integral de suas premissas.
Muito já foi conseguido no Estado, nos últimos anos, com a construção do SUS. Modificações significativas são evidentes nas funções e relações das esferas públicas envolvidas. Com a mesma perseverança que tem caracterizado aqueles que lutam na área de Saúde Pública, cremos que estamos no caminho correto e que o sistema, que já é um dos maiores e mais complexos do mundo, conseguirá atingir os seus objetivos últimos, garantindo plenamente os direitos de cidadania na Saúde.
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Endereço para correspondência:
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 188,
Cerqueira César, São Paulo-SP.
CEP: 04403-000
E-mail:lbarradas@saude.sp.gov.br
*Texto elaborado para o XIX Congresso Nacional de Secretários Municipais de Saúde, realizado em Belo Horizonte-MG, entre 26 e 30 de abril de 2003, sob o tema "Saúde: Direito de Todos e Dever do Estado - 15 Anos"