SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 issue3Investigation of Congenital Syphilis in Sumaré Micro-region, State of São Paulo, Brazil - Unveiling the Fragile Points in Pregnant Women and Newborn CareRisk factors for neonatal mortality in hospital coort of live births author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Epidemiologia e Serviços de Saúde

Print version ISSN 1679-4974On-line version ISSN 2337-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.16 no.3 Brasília Sept. 2007

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742007000300004 

ARTIGO ORIGINAL

 

Dengue hemorrágica em unidade de referência como indicador de sub-registro de casos no Município de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, 1998*

 

Hemorrhagic dengue in a reference unit as an indicator of underreporting cases in the Municipality of Belo Horizonte, State of Minas Gerais, Brazil, 1998

 

 

Paulo Roberto Lopes CorrêaI; Elizabeth FrançaII

IDistrito Sanitário Norte, Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Belo Horizonte-MG, Brasil
IIDepartamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo avalia o sub-registro de dengue hemorrágica (DH) comparando sua ocorrência entre dois Distritos Sanitários (DS) de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, entre março e junho de 1998. Registros médicos e dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)/Ministério da Saúde, referentes aos casos suspeitos de DH acompanhados, clínica e laboratorialmente, na unidade ambulatorial de referência (UAR) implantada no DS Leste, foram comparados aos casos notificados pelas unidades básicas de saúde do DS Noroeste do Município. Entre 201 casos suspeitos de DH com sangramentos espontâneos atendidos na UAR, oito (4%) casos foram classificados como DH Grau II, conforme critério da Organização Mundial da Saúde (OMS). No DS Noroeste, foram notificados, no mesmo período, 545 casos suspeitos de DH com sangramentos espontâneos, sendo esperada a ocorrência de 22 casos de DH Grau II. Apenas um caso de DH foi notificado. Conclui-se que a estratégia de implantação da UAR no DS Leste deve ser adotada pelos demais DS do Município, minimizando o sub-registro e o impacto da doença na população.

Palavras-chave: avaliação em saúde; assistência à saúde; serviços de vigilância epidemiológica; coleta de dados; sistemas de registros.


SUMMARY

This study analyses the underreporting cases of hemorrhagic dengue (HD) comparing its occurrence in two Sanitary Districts (DS) of the Municipality of Belo Horizonte, State of Minas Gerais, Brazil, between March and June of 1998. Medical records and registers of Notifying Diseases Information System (Sinan)/Ministry of Health, referring to suspect HD assisted at the reference unit (UAR) implemented in the Eastern DS, for clinical and laboratorial follow up, were compared to reported cases of HD by the health units of the Northwestern DS of Belo Horizonte. Two hundred and one assisted at the UAR were classified as suspected cases of dengue with spontaneous hemorrhage, of which eight (4%) were classified as HD Degree II, according to World Health Organization (WHO) criteria. In the same period, 545 suspected cases of dengue with spontaneous hemorrhage were registered at the Northwestern DS, for which an occurrence of 22 cases of HD Degree II was expected. The results of this study demonstrate that the strategy adopted at the Eastern DS should be adopted in other DSs of the city so to decrease underreporting as the impact of the disease on the population.

Key words: health evaluation; health care; epidemiologic surveillance services; data collection; registries.


 

 

Introdução

No Brasil, a co-circulação de três sorotipos do vírus da dengue – DEN-1, DEN-2 e DEN-3 – a partir de 2000, associada à dispersão de seu principal vetor (Aedes aegypti) em mais de dois terços dos Municípios do País, tem contribuído para o agravamento da situação epidemiológica da doença, com ocorrência crescente da dengue hemorrágica (DH), sua forma mais grave.1,2

Sabe-se que a presença de infecção secundária heterotípica (por sorotipo viral diferente do ocorrido na infecção primária) tem sido considerada como principal fator de risco para o surgimento de epidemias de DH, estimando-se a ocorrência de um a sete casos de DH para cada caso de dengue registrado na presença de infecções seqüenciais.3-6

O Ministério da Saúde do Brasil aponta como estratégias importantes para reduzir a letalidade da doença, entre outras ações, a organização da vigilância epidemiológica, a capacitação, a organização e disponibilidade de protocolo assistencial e, especialmente, a definição de unidades de saúde de referência, com acompanhamento clínico e laboratorial sistemático para casos suspeitos da doença.7

Nos últimos anos, chama a atenção uma grande variação na letalidade da DH observada no Brasil: 2,9% em 1990; 44,0% em 1994; 4,3% em 2001; e 0,02% em 2002.8 Como principais fatores atribuídos a essa irregularidade, destacam-se as diversas formas de expressão clínica da doença, a fragilidade dos serviços de vigilância epidemiológica na detecção precoce da circulação viral, a rigidez dos critérios de diagnóstico estabelecidos para confirmação de casos e o desconhecimento sobre a doença por parte dos profissionais de saúde.9,10

A avaliação da qualidade dos serviços de saúde é tarefa complexa, que depende de uma gama de fatores interrelacionados.11 Talvez por isso, estudos que abordem o desempenho de serviços de vigilância epidemiológica no Brasil ainda sejam pouco freqüentes.12,13 Em relação à DH, um aspecto pouco abordado na literatura – que merece atenção – refere-se ao sub-registro da doença, cuja estimativa é importante para a avaliação da vigilância epidemiológica e, também, para a orientação, planejamento e operacionalização das ações de controle, além do desenvolvimento de planos de contingência.

O Município de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, detectou epidemias de dengue em 1996 e 1997, atribuídas à circulação do sorotipo DEN-1. Em 1998, com a co-circulação dos sorotipos DEN-1 e DEN-2, uma nova epidemia atingiu todas as regiões do Município, sendo notificados à vigilância epidemiológica mais de 80 mil casos da doença;14 apesar dessa magnitude, foram confirmados, oficialmente, apenas 27 casos de DH, com três óbitos registrados.

No mesmo ano de 1998, implementaram-se várias medidas de controle da doença no Município, entre elas a elaboração de protocolo assistencial para atendimento aos casos suspeitos de dengue atendidos nas unidades de saúde, preconizando acompanhamento clínico e laboratorial sistemático para pacientes com manifestações hemorrágicas.15 Outra medida, esta adotada em apenas um dos nove distritos sanitários (DS) do Município – o DS Leste –, foi a implantação de uma unidade ambulatorial de referência (UAR) para acompanhamento clínico e laboratorial dos casos suspeitos de DH referenciados pelas unidades básicas de saúde localizadas nesse distrito.

Também foi digna de observação, além do pequeno número de casos de DH confirmados em relação ao total de casos de dengue registrados em 1998, a distribuição dos casos da doença segundo local (DS) de residência. Ao contrário do esperado, os casos de DH ocorreram, principalmente, no DS Leste, região onde não havia sido detectada circulação do vírus da dengue em anos anteriores.

Com o objetivo de avaliar o impacto na detecção da DH determinado pela implantação da UAR do DS Leste, este estudo compara a ocorrência da dengue em duas regiões do Município com sistemas diferenciados de vigilância da doença.

 

Metodologia

Foram selecionados casos autóctones de dengue, registrados entre os meses de março e junho de 1998, em residentes nos Distritos Sanitários (DS) Leste e Noroeste do Município de Belo Horizonte.

O DS Leste (população de 247.118 habitantes) registrou os primeiros casos autóctones de dengue em janeiro de 1998 e implantou, em março, uma UAR para os casos suspeitos de DH atendidos nas 13 unidades básicas de saúde existentes nesse Distrito. Na UAR, os casos suspeitos de DH atendidos eram acompanhados sistematicamente, durante todo o curso clínico da doença. A UAR funcionou somente no período de março a junho de 1998: o exame de hemograma completo era realizado na própria unidade, enquanto o exame para confirmação de infecção pelo vírus da dengue era encaminhado aos laboratórios de referência do Município.

O DS Noroeste foi selecionado para comparação por ser o DS mais populoso de Belo Horizonte (341.504 habitantes) e por ter registro de casos autóctones de dengue desde 1996, sugerindo maior risco de ocorrência de DH em 1998. Os casos suspeitos da doença eram atendidos nas 19 unidades básicas de saúde do DS Noroeste; o acompanhamento desses pacientes, contudo, dependeu da monitoração clínico-laboratorial realizada nessas unidades, sem vinculação com qualquer serviço de referência.

Para identificação dos casos de dengue, foram utilizadas quatro fontes secundárias de informação: a) Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, que inclui dados de identificação e variáveis constantes previstas na ficha individual de investigação de dengue (padronizada); b) planilha de notificação de casos de dengue padronizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSA-BH) e usada pelas unidades básicas de saúde durante a epidemia de dengue ocorrida em 1998, contendo dados de identificação do caso, sinais e sintomas da doença; c) ficha de acompanhamento para casos suspeitos de DH padronizada pela UAR do DS Leste, contendo dados de identificação do caso, exames – clínico e laboratorial – e evolução dos casos; e d) banco de dados de apoio laboratorial – exames sorológico e/ou virológico para dengue – de dois laboratórios de referência do Município [do Núcleo de Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad)/Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais; e da Fundação Ezequiel Dias (Funed)/Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais].

Os resultados desses exames foram usados para complementar os registros dos três primeiros bancos, incluindo a validação de casos confirmados e descartados por critério laboratorial. Os casos registrados nos três primeiros bancos foram cruzados, para eliminar eventuais duplicidades.

Dados de população, segundo DS de residência, foram obtidos na SMSA-BH, que utilizou a base de dados da contagem populacional da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1996, para projeção das estimativas populacionais.

Na classificação dos casos suspeitos e confirmados de dengue clássica (DC) e dengue hemorrágica (DH), foram adotadas as definições recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS):6

- Caso suspeito de DC e de DH: todo paciente com doença febril aguda com duração máxima de sete dias, acompanhada de pelo menos dois outros sintomas sugestivos (cefaléia, dor retroorbital, mialgia, artralgia, prostração, exantema), foi considerado como caso suspeito de DC; a presença de qualquer manifestação hemorrágica (prova do laço positiva e/ou manifestação hemorrágica espontânea) deveria levar à suspeição de DH.

- Caso confirmado de DC: por critério laboratorial, ou seja, todo caso suspeito de DC com exame laboratorial específico confirmatório de infecção pelo vírus da dengue (isolamento viral e/ou Reação de Cadeia pela Polimerase (PCR – Polymerase Chain Reaction) e/ou sorologia com detecção de IgM anti-dengue em amostra única ou pareada de sangue); ou por critério clínico-epidemiológico (presença de outros casos de dengue confirmados por exames laboratoriais específicos na área).

- Caso confirmado de DH: todo caso de dengue que apresentou (a) febre ou história recente de febre de sete dias ou de menor duração, (b) tendências hemorrágicas evidenciadas por prova do laço positiva e/ou manifestações hemorrágicas espontâneas, (c) plaquetopenia (100 mil ou menos plaquetas por mm3), (d) evidências de perda de plasma (aumento de mais de 20% no hematócrito médio para a idade e sexo e/ou queda de mais de 20% após reposição volêmica comparado ao valor basal; e/ou sinais de derrame pleural, ascites, hipoproteinemia), e (e) exame laboratorial específico confirmatório para infecção pelo vírus da dengue e/ou vínculo epidemiológico com outros casos de dengue confirmados por critério laboratorial específico.

Os casos de DH foram classificados, do ponto de vista de gravidade clínica, em quatro graus:6 a) Grau I, para casos de DH cuja única manifestação hemorrágica foi a positividade da prova do laço; b) Grau II, para casos de DH com presença de qualquer manifestação hemorrágica espontânea; c) Grau III, para casos de DH com sinais de insuficiência circulatória; e d) Grau IV, para casos de DH com choque profundo, pulso ou pressão arterial indetectáveis.

Casos suspeitos de DH com sorologia IgM anti-dengue negativa a partir do 5o dia do início dos sintomas e com isolamento viral e/ou PCR negativos para dengue foram descartados e classificados como doença febril hemorrágica de etiologia ignorada. Também foram descartados os casos suspeitos, sem exame laboratorial, com investigação clínica, epidemiológica ou laboratorial compatível com outra doença.

Para os casos acompanhados na UAR do DS Leste, foram analisados o número de atendimentos realizados e o tempo decorrido entre o início dos sintomas e a data do atendimento na unidade. Valores de hematócrito e contagem de plaquetas foram utilizados para classificar os casos de DC e DH.

Em relação aos casos de dengue registrados nos dois DS estudados, foram analisadas as variáveis sexo, idade, sintomas clínicos, presença de manifestações hemorrágicas e Distrito Sanitário de residência (este, conforme endereçamento e codificação realizada pelos DS).

A proporção de casos confirmados de DH Grau II, entre o total de casos de dengue com manifestação hemorrágica espontânea acompanhados na UAR, foi considerada como valor esperado de DH Grau II. Dessa forma, não foram incluídos nessa estimativa os casos cuja única manifestação hemorrágica identificada no acompanhamento foi a presença de prova do laço positiva.

A entrada de dados, processamento e análise estatística foram realizadas pelo programa Epi Info versão 6.0. O teste t de Student ou a análise de variância (ANOVA) foram utilizados para determinar diferenças entre variáveis contínuas; e o teste do qui-quadrado, para diferenças entre proporções.16 A significância estatística foi considerada quando o valor de p foi inferior a 5%.

Considerações éticas

O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais, em parecer no ETIC 095/98.

 

Resultados

Dengue hemorrágica na unidade ambulatorial de referência do Distrito Sanitário Leste de Belo Horizonte

A Figura 1 apresenta o processo de seleção para análise de casos suspeitos de DH encaminhados à UAR do DS Leste pelas unidades básicas de saúde desse Distrito. Foram atendidos 583 pacientes pela unidade. Para o estudo, foram elegidos 439 casos considerados suspeitos de DH (pacientes com doença febril hemorrágica). A avaliação de exames laboratoriais inespecíficos (valor de hematócrito, contagem de plaquetas) e específicos para infecção pelo vírus da dengue, realizada individualmente, para cada caso suspeito de DH, permitiu classificar os pacientes em três categorias: dengue clássica com manifestação hemorrágica (n=346); dengue hemorrágica (n=15); e doença febril hemorrágica de etiologia ignorada (n=78).

 

 

Foram realizados 991 atendimentos individuais para os 439 casos suspeitos de DH, com uma média de 2,3 atendimentos por paciente. O número médio de atendimentos realizados nos casos classificados como DC com manifestação hemorrágica e doença febril hemorrágica de etiologia ignorada foi, respectivamente, de 2,1 e 2,6. Para os casos classificados como DH, verificou-se uma média de 3,8 atendimentos. O tempo médio decorrido entre o início dos sintomas e o atendimento na unidade de referência foi de 3,5 dias para os casos de DH e de 3,8 dias para as duas outras categorias de casos [p=0,65; (ANOVA)].

Na Tabela 1, são apresentados os achados clínicos e laboratoriais dos pacientes classificados nas três categorias descritas. Entre os 346 pacientes classificados como casos de DC com manifestação hemorrágica, 67,9% (n=235) dos casos apresentaram exames laboratoriais específicos positivos para infecção pelo vírus da dengue; os demais foram confirmados por critério clínico-epidemiológico. Entre os pacientes classificados com DH, 53,3% (n=8) dos casos apresentaram exames laboratoriais específicos positivos para a infecção; os demais foram confirmados por critério clínico-epidemiológico. Todos os pacientes classificados como casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada apresentaram exames laboratoriais específicos negativos para infecção pelo vírus da dengue. Observou-se uma proporção semelhante de casos em relação ao sexo, nos pacientes com DH, diferentemente do verificado nas duas outras categorias. A idade dos pacientes classificados como casos de DH foi, em média, 15 anos superior à das duas outras categorias de pacientes: 73,3% dos casos de DH ocorreram em pacientes com mais de 39 anos de idade. Todos os casos atendidos pela UAR receberam alta ambulatorial, ao final do seguimento.

 

 

Entre os pacientes elegíveis, foram realizadas 422 provas do laço no primeiro atendimento na UAR, não havendo diferença, estatisticamente significativa, entre a proporção de provas do laço positivas para os casos de DC com manifestação hemorrágica e a proporção dos casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada (respectivamente, 68,2% e 67,9%; p=0,92). Casos de DC com manifestação hemorrágica apresentaram proporção de hemorragias espontâneas semelhante à dos casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada (55,8% e 56,4%, respectivamente; p=0,98); e também semelhante à proporção encontrada no casos de DH (53,3%; p=0,97).

Quanto à contagem de plaquetas, foram realizados 902 (91,0%) exames durante os atendimentos, com média de 1,8 exames para casos de DC com manifestação hemorrágica, 2,4 exames para casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada e 3,5 exames para casos de DH. Como se esperava, a média dos valores de plaquetas encontrada foi menor entre casos de DC com manifestação hemorrágica, em relação à dos casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada (p=0,02). Entre casos de DH, a média dos valores de plaquetas (102.132 por mm3) foi, aproximadamente, 50% inferior à dos casos de DC (196.895 plaquetas/mm3) e à dos casos de doença febril hemorrágica de etiologia ignorada (210.227 plaquetas/mm3).

Foram realizados 903 exames de hematócrito e não foi encontrada diferença, estatisticamente significativa, nos valores médios de hematócrito entre os três grupos avaliados.

Considerando-se a classificação de gravidade clínica para casos de DH, sete foram classificados como DH Grau I e oito como DH Grau II. Verificou-se, ainda, 193 casos de DC com hemorragias espontâneas, totalizando 201 casos de dengue com hemorragias espontâneas. Observou-se, portanto, que os casos de DH Grau II corresponderam a 4% (IC95%: 1,8%-7,7%), ou seja, oito casos de DH Grau II entre 201 casos confirmados de dengue com hemorragias espontâneas, atendidos na UAR (Figura 1).

Dengue hemorrágica nos Distritos Sanitários Leste e Noroeste de Belo Horizonte

A Tabela 2 apresenta a distribuição dos casos de dengue e DH residentes nos dois DS analisados. A idade média dos casos de dengue [ 30,1 anos; p=0,17; (ANOVA)] e a proporção de casos da doença no sexo feminino (56%; p=0,53) foi semelhante entre os dois DS (dados não apresentados). Houve maior ocorrência de casos de dengue no DS Leste (n=14.291), comparada à do DS Noroeste (n=10.495), com taxa de incidência de 5,8 e 3,1 casos por 100 mil habitantes, respectivamente. O DS Noroeste realizou menor proporção de prova do laço nos casos de dengue, em relação ao DS Leste: 0,7 e 7,5%, respectivamente. A proporção de manifestação hemorrágica espontânea detectada para os casos de dengue nos dois DS foi um pouco menor no DS Noroeste (5,2%), comparada com a do DS Leste (6,0%), conforme apresentação na Tabela 2.

 

 

No período estudado, foram confirmados 19 casos de DH no DS Leste, 78,9% (n=15) deles atendidos na unidade ambulatorial de referência desse Distrito (Tabela 1); os demais o foram em unidades de saúde de outros DS do Município. Do total de casos de DH do DS Leste, 68,4% (n=13) foram confirmados por critério laboratorial específico.

O único caso de DH registrado no DS Noroeste foi atendido em unidade de saúde desse DS e confirmado por critério laboratorial específico. Esperava-se, entretanto, a ocorrência, nesse DS, de 22 casos DH Grau II entre os 545 casos de dengue com manifestação hemorrágica espontânea, considerando-se a proporção estimada de 4% de casos de DH Grau II entre os casos de dengue com hemorragias espontâneas observados na UAR/DS Leste.

 

Discussão

A despeito da magnitude da epidemia de dengue registrada nos DS Noroeste e Leste de Belo Horizonte, entre os meses de março e junho de 1998 (24.786 casos, correspondendo a 36,4% do total de casos confirmados no Município), considerando-se o critério de caso recomendado pela OMS para notificação de DH, foram identificados somente 20 casos de DH nos dois DS, dos quais 19 eram residentes no DS Leste e um no DS Noroeste.14 Os casos de DH totalizaram 0,03% dos casos de dengue registrados nos dois DS, no período analisado, metade da proporção verificada, por exemplo, no Estado do Ceará, em 1994.17

Aspecto importante a ser discutido refere-se à grande variação existente nas estimativas de casos de DH, no contexto da totalidade de casos de dengue. Na Venezuela, Barrera observou percentagem muito maior (24%) de DH entre os casos de dengue, enquanto em Cuba (7%) e Porto Rico (3%), essa proporção foi bastante menor.18

Estudo de coorte, realizado na Tailândia, observou uma taxa de incidência de DH zero nas crianças com infecções primárias; e de 0,7% nas crianças com infecções secundárias.19 Não foram encontradas na literatura estimativas para a proporção de casos de DH entre pacientes com manifestação hemorrágica de qualquer natureza.

Conforme ressalta Teixeira, a divergência entre o total de casos de dengue e de DH observados em diferentes regiões pode refletir a situação epidemiológica de cada localidade e os cuidados dispensados aos pacientes (suspeição clínica e diagnóstico laboratorial).10 Também pode refletir diferentes critérios utilizados para confirmação e notificação dos casos e/ou ações específicas de vigilância epidemiológica, incluindo a notificação oportuna dos casos suspeitos da doença, conforme apontam Duarte & França e Marzochi.20,21

Dietz destaca que o diagnóstico clínico da dengue é pouco sensível, em razão da pouca especificidade dos sintomas da doença e da ocorrência simultânea de outras doenças virais.22 Na prática clínica, durante sua fase aguda, a diferenciação entre DC e DH é, muitas vezes, difícil. Nem todos os sintomas, sinais e alterações laboratoriais estão presentes nos primeiros dias da doença e o diagnóstico definitivo da DH somente será estabelecido, conforme o critério de caso preconizado pela OMS, após ocorrência de plaquetopenia e hemoconcentração, alterações usualmente presentes um a dois dias antes do quadro clínico de choque observado nos casos mais graves.4,5

Ao se comparar as epidemias de dengue registradas no DS Noroeste, em 1996 e 1997, e a primeira epidemia ocorrida no DS Leste, em 1998, esperava-se uma taxa de incidência de DH no DS Noroeste semelhante ou maior que a observada no DS Leste, pois a exposição seqüencial por sorotipos heterólogos do vírus da dengue é um dos principais determinantes da ocorrência de casos de DH. Isso não ocorreu, entretanto. A estimativa adotada para quantificar o número esperado de casos de DH Grau II, considerando-se os casos observados na UAR, indica que houve sub-registro da doença no DS Noroeste. Neste DS, registrou-se apenas um caso de DH, apesar de terem sido notificados 545 casos de dengue com hemorragias espontâneas no período estudado. Dessa forma, seriam esperados 22 casos de DH do Grau II; estima-se aqui, portanto, um sub-registro de 95,5%. Os 22 casos esperados de DH representariam 0,21% em relação aos 10.495 casos de dengue confirmados nesse DS. Essa proporção é muito inferior, todavia, aos valores estimados pela OMS, de 2 a 4% para casos de DH (com base nos quatro graus da classificação de gravidade clínica) com infecção seqüencial heterotípica. E indica que, provavelmente, o sub-registro de DH no DS Noroeste foi muito maior do que o verificado por este estudo.

O sub-registro de casos de dengue hemorrágica no DS Noroeste, possivelmente, deve-se à não-realização de hematócrito e contagem de plaquetas para casos suspeitos da doença. Ao contrário, a realização desses dois exames laboratoriais pela UAR do DS Leste, conforme já foi ressaltado, garantiu uma oportunidade ímpar de realização do diagnóstico de DH nos casos suspeitos atendidos nesse serviço. Ademais, os instrumentos de coleta e registro dos dados utilizados pela maioria das unidades de saúde do Município – que não levam em consideração a evolução clínica e laboratorial dos pacientes mas, tão-somente, os sintomas, sinais e alterações laboratoriais existentes no momento da notificação e investigação do caso –, provavelmente, também contribuíram para o pequeno número de casos registrados no período.

Estudo sobre fatores associados à subnotificação de casos de aids no Rio de Janeiro apontou a necessidade da elaboração de mecanismos de aprimoramento da qualidade dos sistemas de informações em saúde, incluindo uniformização de fluxos de notificação e investimento nos setores de vigilância epidemiológica.13 Carvalho & Marzocchi, como outros autores, também ressaltam a importância de incluir a vigilância epidemiológica como parte integrante de um sistema de informações em saúde.12

Algumas limitações reveladas pelo estudo devem ser ressaltadas. No DS Leste, nem todos os casos suspeitos de dengue com hemorragias espontâneas foram acompanhados pela UAR, clínica e laboratorialmente, o que indicaria uma adesão diferenciada das unidades de saúde do DS Leste em relação à proposta de referenciamento para a doença. O fato, também poderia indicar limitações impostas pelo horário diurno de funcionamento da unidade de referência. Outra limitação refere-se aos registros da doença existentes no Sinan, que, em sua grande maioria, incluíam casos investigados de dengue com alguma manifestação hemorrágica; o Sinan, outrossim, não permite acompanhamento temporal dos casos da doença, sendo os registros clínicos e laboratoriais do momento da notificação do caso.

É importante destacar que a UAR do DS Leste, implantada por ocasião do pico da epidemia de dengue em Belo Horizonte, foi imediatamente desativada após a queda da notificação de casos da doença. Alguns investigadores têm ressaltado que esse tipo de unidade sentinela deveria ser mantido durante todo o ano, visto que, em localidades com possibilidade de endemização da doença, a vigilância clínica deveria ser uma estratégia contínua, adotada pelos serviços de saúde.23,24 Uma UAR, como a implantada no DS Leste, poderia antecipar a ocorrência de novos casos da doença no Município, conforme aconteceu no segundo semestre de 1998.14

A detecção e confirmação dos casos de DH em Belo Horizonte no ano de 1998, principalmente para formas menos graves, foi aprimorada após a implantação de uma unidade ambulatorial de referência para casos suspeitos da doença no DS Leste, corroborando a hipótese de que essa estratégia foi um dos principais determinantes da ocorrência diferenciada dos casos de DH observados nos dois Distritos Sanitários analisados. Essa estratégia deveria ser mantida e estendida para regiões com condições epidemiológicas favoráveis à ocorrência de epidemias de DH; e assumida como atividade contínua, pelas unidades de saúde, haja vista que, mesmo nos períodos inter-epidêmicos, existe circulação viral entre a população. Com a co-circulação dos sorotipos DEN-1, DEN-2 e DEN-3, confirmada no Município em 2002, torna-se urgente a organização da assistência para casos suspeitos de DH, com discussão de protocolo assistencial, capacitação técnica dos profissionais das unidades básicas, secundárias e terciárias de saúde, apoio laboratorial ágil e com fluxo organizado, medidas capazes de minimizar o impacto da doença para a população de Belo Horizonte.

 

Agradecimentos

À Dra. Maria Regina Iglésias e Silva, médica do Distrito Sanitário Leste/Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, pelo apoio na discussão inicial do estudo e autorização de acesso aos registros da unidade ambulatorial de referência do Distrito.

 

Referências bibliográficas

1. Fundação Nacional de Saúde. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: Funasa; 2002.

2. Silva Júnior JB, Siqueira Júnior JB, Coelho GE, Vilarinhos PTR, Pimenta Junior FG. Dengue in Brazil: current situation and prevention and control activities. Epidemiological Bulletin 2002;23(1):3-6.

3. Kuno G. Review of the factors modulating Dengue transmission. Epidemiologic Reviews 1995;17(2):321-335.

4. Gubler DJ. Dengue and dengue hemorrhagic fever. Clinical Microbiology Reviews 1998; 11(3):480-496.

5. Guzmám MG, Kouri G. Dengue: an update. The Lancet Infectious Diseases 2002;2:33-42.

6. World Health Organization. Dengue haemorrhagic fever: diagnosis, treatment, prevention and control. 2nd. ed. Geneva: WHO; 1997.

7. Fundação Nacional de Saúde. Programa Nacional de Controle da Dengue. Brasília: Funasa; 2002.

8. Fundação Nacional de Saúde. Sistema de Informações Gerenciais da Funasa. Casos de Dengue [dados na Internet]. Brasília: Funasa [acesso em 10 ago 2005]. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/ arquivos/pdf/planilhas_dnc_estados.pdf

9. Fundação Nacional de Saúde. Dengue. In: Fundação Nacional de Saúde. Guia de vigilância epidemiológica. Brasília: FNS; 1998. cap. 5.4.

10. Teixeira MG, Barreto ML, Guerra Z. Epidemiologia e medidas de prevenção do Dengue. Informe Epidemiológico do SUS 1999;8(4):5-33.

11. Donabedian A. The quality of care. How can it be assessed? JAMA 1988;260:1743-1748.

12. Carvalho MS, Marzocchi KBF. Avaliação da prática de vigilância epidemiológica nos serviços públicos de saúde no Brasil. Revista de Saúde Pública 1992;26(2):66-74.

13. Ferreira VMB, Margareth CP, Vascocnelos MTL. Fatores associados à subnotificação de pacientes com Aids, Rio de Janeiro, RJ, 1996. Revista de Saúde Pública 2000;34(2):170-177.

14. Corrêa PRL, França E, Bogutchi TF. Infestação pelo Aedes aegypti e ocorrência da Dengue em Belo Horizonte, Minas Gerais. Revista de Saúde Pública 2005;39(1):33-40.

15. Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Protocolo para assistência a pacientes com suspeita de dengue no setor próprio da SMSA; 19 de março de 1998. 2p. Mimeografado.

16. Armitage P, Berry G. Statistical methods in medical research. 2nd. ed. Oxford: Blackwell; 1987.

17. Vasconcelos PFC, Menezes DB, Melo LP, Pessoa ETFP, Rodrigues SG, Travassos da Rosa ES, Timbó MJ, Coelho ICB, Montenegro F, Travassos da Rosa JFS, Andrade FMO, Travassos da Rosa APA. A large epidemic of dengue fever with dengue hemorrhagic cases in Ceará State, Brazil, 1994. Revista do Instituto de Medicina Tropical 1995;37(3):253-255.

18. Barrera R, Delgado N, Jiménez M, Villalobos I, Romero I. Estratificación de una ciudad hiperendémica en dengue hemorrágico. Revista Panamericana Salud Pública 2000;8(4):225-233.

19. Burke DS, Nisalak A, Jhonson D, Scott RM. A prospective study of dengue infections in Bangkok. The American Journal of Tropical Medicine Hygiene 1988;38(1):172-180.

20. Duarte HHP, França EB. Qualidade dos dados da vigilância epidemiológica da Dengue em Belo Horizonte, MG. Revista de Saúde Pública 2006;40(1):134-142.

21. Marzochi KBF. Dengue endêmico: o desafio das estratégias de vigilância. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 2004;37(5):413-415.

22. Dietz VJ et al. Epidemic dengue 1 in Brazil, 1986: evaluation of a clinically based dengue surveillance system. American Journal of Epidemiology 1990;131(4):693-701.

23. Rigau-Pérez JG, Clark GG. Cómo responder a una epidemia de Dengue: visión global y experiencia em Puerto Rico. Revista Panamericana de Salud Pública 2005;17(4):282-293.

24. Guzmán MG, Garcia G, Kourí G. El Dengue y el Dengue Hemorrágico: prioridades de investigación. Revista Panamericana de Salud Pública 2006;19(3):204-215.

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Monte Alegre, 867/501,
São Lucas, Belo Horizonte-MG, Brasil.
CEP: 30240-230
E-mail:paulocorrea@medicina.ufmg.br

Recebido em 07/02/2007
Aprovado em 28/02/2007

 

 

*Estudo subvencionado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia – processo No 521158/1998-2.