Introdução
A síndrome da imunodeficiência humana adquirida (aids) é uma retrovirose transmitida principalmente por via sexual e parenteral e que, no decorrer de sua história natural, causa depleção de linfócitos T CD4+ com consequente queda da imunidade e predisposição para doenças oportunistas graves. Desde a década de 1990, avanços consideráveis foram obtidos na assistência aos pacientes de aids, sendo a descoberta e o aperfeiçoamento da terapia antirretroviral potente (HAART) os fatores que mais tiveram impacto no prognóstico e na epidemiologia da doença.1,2
A aids é uma doença de notificação compulsória no Brasil. Os dados sobre aids no país são registrados por diferentes sistemas de informações, sendo o mais importante o banco de dados de vigilância proveniente do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Outros sistemas envolvidos na vigilância da aids incluem o Sistema de Controle de Exames Laboratoriais da Rede Nacional de Contagem de Linfócitos T CD4+/T CD8+ e Carga Viral (Siscel), o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (Siclom) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). A epidemiologia da doença também é monitorada por estudos descritivos realizados regularmente, como os estudos de parturientes3 e conscritos,4 e aqueles sobre comportamento, atitude e prática em estratos populacionais específicos.5
Estima-se que em 2014, havia cerca de 730 mil indivíduos vivendo com HIV no Brasil, e uma prevalência da infecção entre 0,4 e 0,7% da população.6 De 2008 a 2013, a incidência média de aids no país foi de 40 mil casos/ano, com uma taxa de incidência média de 21 casos por 100 mil habitantes. A mortalidade por aids, no mesmo período, apresentou a taxa padronizada de cerca de seis por 100 mil habitantes ao ano (aproximadamente 12 mil óbitos ao ano).7
A vigilância de aids sofreu alterações desde o início da pandemia, como por exemplo, decorrentes das revisões de definições e implementação de novas práticas de prevenção de casos.8 Nesse contexto, a informação epidemiológica adquiriu um papel principal na definição e condução das ações de vigilância, contribuindo para a implementação de novos protocolos de tratamento e prevenção.
A distribuição geográfica dos casos de aids no Brasil é heterogênea, tanto em função da amplitude do território como pela concentração de casos em determinadas regiões. Na década de 2000, houve expansão dos casos nas regiões Norte e Nordeste, enquanto as demais macrorregiões do país apontaram estabilidade.9 A maior concentração de casos ocorre nos grandes centros urbanos, como capitais e regiões metropolitanas, e cidades com maior fluxo sociodemográfico e socioeconômico, como as cidades costeiras.10,11 Nas diversas regiões geográficas nacionais, observa-se flutuação no número de casos em municípios de menor porte, não homogênea entre municípios com características semelhantes, localizados em diferentes regiões.12
A utilização do geoprocessamento e análise espacial de dados sobre casos de aids pode proporcionar aos gestores de Saúde Pública um melhor entendimento sobre a epidemia no país.10,12 Compreender a distribuição espacial dos casos de aids pode auxiliar a identificação de áreas geográficas sob maior pressão epidemiológica.13 O uso de técnicas de geoprocessamento - i.e., sistemas de informações geográficas (SIG) - que têm em sua concepção o uso de informações geográficas, ao referir a localização (posição geográfica) de ocorrência do evento, fornece informações de forma a subsidiar a implementação de intervenções, complementando o rol de estratégias adotadas pela vigilância em saúde no enfrentamento do HIV/aids. A crescente complexidade e as mudanças de comportamento epidemiológico da infecção pelo HIV requerem o uso de indicadores diferenciados de outras doenças infecciosas. A utilização de técnicas de análise espacial, com o objetivo de auxiliar nesse monitoramento, pode contribuir para o melhor conhecimento dos riscos de transmissão da doença.14-16 O presente trabalho teve como objetivo identificar áreas com maior risco de transmissão de aids no Brasil.
Métodos
Foi realizado um estudo ecológico com análise espacial de 633.512 casos de aids, segundo a definição de caso brasileira: indivíduos que apresentam células T CD4+ abaixo de 350 células/mm³, ou com diagnóstico de doença oportunista, ou por excepcional óbito.17
Para obter a base de dados com os casos de aids, foram relacionados os dados de diferentes sistemas de informações: Sistema de Informação de Agravo de Notificação - Sinan -, Sistema de Controle de Exames Laboratoriais da Rede Nacional de Contagem de Linfócitos T CD4+/T CD8+ e Carga Viral - Siscel - e Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM. Para relacionar as três bases de dados, foram adotados procedimentos probabilísticos, com o uso do aplicativo RecLink(r), versão 3.0, utilizando-se como variáveis-chave de comparação o nome e data de nascimento do paciente e o nome da mãe do paciente. Os registros do Siscel e do SIM em que esses campos estavam incompletos ou em branco foram excluídos da análise.
As informações da data do diagnóstico e município de residência dos indivíduos foram ajustadas, de forma a obter a mesma informação em uma única base de dados. Do Sinan, foi utilizada a data do diagnóstico e município de residência. Dos casos oriundos do Siscel e do SIM, a data da coleta do material biológico para exame (do Siscel) foi utilizada como proxy da data de diagnóstico. Do SIM, foi levantada a data do óbito. Quanto à informação sobre o município de residência, foram utilizadas os próprios dados de cada um dos sistemas.
Após o relacionamento das bases, foram obtidos os números de casos de aids em cada um dos 5.565 municípios brasileiros, sendo identificado pelo menos um caso em 5.123 (92,1%) municípios. Em seguida, foram calculadas a taxa de incidência e o coeficiente de prevalência de aids. Para a taxa de incidência, foram utilizados como numerador os casos novos de aids identificados em cada ano: dividiu-se os casos identificados no ano pela população residente do mesmo ano, para cada um dos anos observados, de 1996 a 2011. Para o cálculo da prevalência de aids, considerou-se os anos de 1999, 2003, 2007 e 2011, calculando-se para cada um desses anos o total de casos de aids acumulado desde 1980, ano do primeiro caso identificado no Brasil, até o ano especificado, descontadas as mortes dentro do mesmo período; logo, dividiu-se o valor encontrado pelo total da população residente no respectivo ano. Em ambos indicadores, multiplicou-se o valor resultante pela constante '100 mil'. Definiu-se quatro períodos - ou intervalos de tempo - para o cálculo das taxas médias de incidência de aids, incidência cumulativa e coeficiente de prevalência: 1996-1999, 2000-2003, 2004-2007 e 2008-2011.
O tamanho da população residente dos municípios foi obtido dos censos demográficos e projeções intercensitárias produzidos pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), junto à qual também foram obtidas as coordenadas geográficas dos municípios brasileiros para construção dos mapas temáticos.18
A análise espacial foi realizada com as médias da taxa de incidência e casos prevalentes, de forma a identificar os padrões de densidade da doença. Para tanto, utilizou-se o método de Kernel, com raio de influência adaptativo, ou seja, capaz de descrever o quanto a densidade em um ponto pode influenciar em sua vizinhança - no caso deste estudo, nos municípios vizinhos, considerando-se as diferentes áreas geográficas de influência dos municípios brasileiros.19,20 Esse método permite estimar a probabilidade de ocorrência de um evento em cada célula de uma grade regular, sendo cada célula dessa grade ponderada de forma a que os eventos mais próximos recebam maiores pesos, e os mais distantes, menores pesos, sendo o decréscimo dos pesos definido de forma gradual.19,20
Para a avaliação descritiva dos dados, utilizou-se o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS(r)) da International Business Machines (IBM(r)), versão 18.0; para análise dos dados espaciais, foi utilizado o programa TerraView(r), versão 4.2.2; e para o linkage dos bancos de dados, o programa RecLink(r) versão 3.0.
Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (CEP/FS-UnB) em 30 de agosto de 2013, sob o Parecer nº 379.170, e pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (DDAHV) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde.
Resultados
A incidência de aids no Brasil apresentou sucessivos aumentos nos períodos analisados. O risco de contrair aids, representado pela média da taxa de incidência, também apresentou o mesmo padrão, assim como a prevalência de casos, que mostrou aumento constante durante todos os períodos (Tabela 1).
Observou-se que, em 1996-1999 e 2000-2003, as regiões Sudeste e Sul apresentaram as maiores taxas médias de incidência: 25,2 e 25,1 por 100 mil hab. na região Sudeste, e 19,9 e 29,7 por 100 mil hab. na Sul, respectivamente (Figuras 1A e 1B). Nos períodos subsequentes, especialmente em 2008-2011, os estados das regiões Norte e Centro-Oeste atingiram níveis semelhantes de incidência média, na comparação com aqueles das regiões Sul e Sudeste, sendo de 21,0 por 100 mil hab. para o Norte e de 16,9 por 100 mil hab. para o Centro-Oeste (2008-2011). Houve aumento das taxas médias de incidência em todas as macrorregiões, com manutenção de taxas médias elevadas no Sudeste e no Sul: 21,4 por 100 mil hab. e 31,0 por 100 mil hab. (2008-2011), respectivamente.
No período de 1996-1999, as maiores taxas de incidência médias por município (Figura 1) foram observadas nas cidades do estado de São Paulo (Figura 1A). A partir desse período, o aumento de casos foi observado em todo o país, com maiores taxas de incidência - além do estado de São Paulo - nas cidades dos estados do Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, e na Região Sul (Figura 1D).
Quanto ao estimador Kernel das taxas médias de incidência para os anos de 2000-2003, observou-se densidade moderada nas regiões Sudeste e Sul do país (Figura 2). No mesmo período, dentro dessas regiões, observou-se maior densidade no eixo Curitiba-Vale do Itajaí-Florianópolis-Porto Alegre, e nas regiões das cidades de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto (Figura 2B). Para o mesmo período, foi possível observar outras regiões com risco aumentado e densidade moderada, como a da cidade de Belo Horizonte, o estado de Rio de Janeiro e o eixo Recife-João Pessoa (Figura 2B).
No período de 2004-2007, houve uma redução na intensidade e no raio de influência das cidades de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto, e em suas respectivas vizinhanças, na comparação com o período de 2000-2003 (Figura 2). Entretanto, observou-se o surgimento de áreas com densidade média no meio-oeste do estado de São Paulo e no eixo Curitiba-Vale do Itajaí-Florianópolis, que em 2000-2003 mostraram alta densidade, e em 2004-2007, uma intensidade reduzida. No mesmo período de 2004-2007, nas regiões das cidades de Porto Alegre e Rio de Janeiro, observou-se a manutenção do alto nível de intensidade, com um pequeno aumento no raio de influência (Figura 2C).
No período de 2008-2011, houve tendência persistente de declínio na intensidade de risco nas cidades de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto. Ao mesmo tempo, observou-se o surgimento de áreas com densidade média nas regiões de Belém, São Luís, Maceió, Aracaju e Salvador, e aumento da intensidade no eixo Recife-João Pessoa. Observa-se, também, o surgimento de intensidade média no norte do Paraná e no centro-leste de Santa Catarina (Figura 2D).
Considerando-se a distribuição do coeficiente de prevalência de casos de aids por município ao longo dos anos (Figura 3), observou-se um espalhamento mais acelerado e concentrado dos casos quando comparado com a distribuição da média da taxa de incidência. A maior concentração foi observada nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste (Figura 3D).
A estimativa das áreas com os mais elevados coeficientes de prevalência de casos de aids, com base na aplicação do método Kernel, mostrou a existência de conglomerados no espaço (Figura 4). Houve um rápido crescimento em 2011, mostrando altas concentrações de casos da doença nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo e no eixo Curitiba-Porto Alegre. Nesse período, também se observou o desenvolvimento de áreas com densidade média em todas as cidades da costa do Nordeste, e alta densidade na região de Recife (Figura 4D).
Discussão
A distribuição acumulada dos casos de aids não é uniformemente distribuída sobre o território brasileiro. A maior concentração de casos ocorre nos grandes centros urbanos e cidades com maior fluxo sociodemográfico e socioeconômico, achado consistente com os de estudos prévios.10,11 Neste trabalho, as diferenças geográficas observadas ao longo dos períodos avaliados mostraram um risco crescente, de forma acelerada nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, e no eixo Curitiba-Porto Alegre. Também foi notado o surgimento de áreas de densidade moderada em todas as cidades da costa do Nordeste, com alta densidade na região de Recife, capital do estado de Pernambuco. O aumento da densidade nas cidades do Nordeste está associado à expansão da aids nas regiões Norte e Nordeste, observada nos últimos anos.9 Nessas áreas, a implementação de estratégias de intervenções combinadas pode ser eficaz na prevenção do HIV.21 Os resultados do presente estudo apontam para a necessidade de ampliar a análise integrada das informações de vigilância, dados geográficos e atenção à saúde, recomendações indicadas por Goswami et al. em 2012.22
A utilização de sistema de informação geográfica - SIG - para análise da incidência e da prevalência da aids mostrou-se apropriada na identificação de áreas sob maior risco e poderia ser bastante útil no monitoramento da doença. Contudo, o método é pouco explorado no Brasil.23
Durante o primeiro período analisado (1996-1999), houve aumento da incidência de aids, e nos demais períodos, certa estabilidade, possivelmente explicada pela dispensação universal de HAART e pelas políticas públicas para o controle da transmissão do HIV.24 A avaliação da incidência de aids aponta declínio nas regiões Sudeste e Sul, no período de 2003 e 2006, e um novo aumento da incidência no ano de 2007;9 ademais, com uso de SIG, foi possível demonstrar que nessas regiões houve manutenção dos casos em níveis elevados.
A prevalência de aids apresentou um aumento persistente durante todo o período de estudo, de 1996 a 2011. A análise instrumentada pelo SIG revelou a formação e estabelecimento de novas áreas de transmissão continuada, em todo o país. A identificação dessas áreas é de extrema importância para o planejamento e implementação de ações estratégicas de prevenção da transmissão do HIV, podendo contribuir para o melhor direcionamento de ações. Principalmente quando tais ações dependem de limitados recursos destinados para intervenções de Saúde Pública,25 a exemplo da estratégia de aumento da cobertura do tratamento com o objetivo de baixar a carga viral comunitária do HIV.26
O uso de técnicas de geoprocessamento, de forma a fornecer uma visão geral dos determinantes sociais do processo saúde-doença, ainda é incipiente na análise de indicadores de saúde.23 Neste estudo, foi possível demonstrar que técnicas de geoprocessamento com o uso de mapas podem ser úteis à identificação das áreas com maior necessidade de ampliação de programas, como aqueles dirigidos ao tratamento e ampliação da atenção à saúde.27 Essas técnicas contribuem para a identificação de "áreas quentes", ou seja, com maior densidade de casos de aids (destacadas nas cores mais escuras nos mapas), onde o risco de transmissão do HIV é mais intenso em função dos casos prevalentes. Nessas áreas, deve-se priorizar a investigação e monitoramento dos fatores de risco para a infecção pelo HIV, com o propósito de implementar programas de prevenção e controle adequados.28 Outrossim, a informação epidemiológica geoprocessada pode ser útil à alocação eficiente dos recursos da Saúde Pública.22
Considerando-se a dinâmica de transmissão de aids,29 que não se limita às fronteiras político-administrativas, a avaliação do risco utilizando ferramentas geográficas pode indicar áreas de maior densidade de casos, mediante um continuum de diferentes camadas, mais além dos limites, divisas e fronteiras geográficas. A distribuição espacial da ocorrência dos casos e a distribuição da prevalência analisadas pelo método de Kernel mostram áreas com maior potencial de transmissão, ao passo que o volume de casos influencia diretamente na ocorrência de novos casos (transmissão pessoa a pessoa).
A principal limitação do estudo refere-se ao uso de bases de dados de vigilância do Ministério da Saúde, que considerava somente os casos avançados da doença para fins de notificação, podendo subdimensionar o risco de infecção pelo HIV/aids.
Essa limitação tende a ser superada, desde que no ano de 2014, o Ministério da Saúde adicionou o agravo HIV à lista de notificação compulsória, independentemente da fase imunológica ou clínica, permitindo avaliações de risco para o HIV/aids mais precisas em um futuro próximo. Outra limitação refere-se à relação com a ocorrência de eventos no município vizinho, o que poderia explicar melhor a dinâmica da doença no município onde o caso foi identificado. Alguns autores sugerem que a distância entre as cidades seja um fator explicativo do aumento dos casos de aids.30 Uma terceira e última limitação encontra-se no fato de a análise do estimador de Kernel ser subjetiva: não há um conjunto padronizado de parâmetros que classifiquem a intensidade da ocorrência do agravo (áreas com maior densidade versus com menores densidade), dependendo, principalmente, do conhecimento a priori sobre o tema estudado.28
O uso de técnicas para auxiliar a vigilância epidemiológica, como georreferenciamento de dados, pode trazer um importante ganho aos instrumentos e indicadores já utilizados em estudos epidemiológicos.12 O presente estudo mostrou que a identificação de áreas sob maior risco - por conterem mais casos de aids - pode subsidiar o planejamento de políticas de prevenção e controle com base no risco de transmissão da doença.