Introdução
Nas últimas décadas, a situação dos povos indígenas no Brasil vem passando por transformações em seu ritmo de crescimento, o qual tem se mostrado superior ao das médias nacionais. A população indígena encontra-se espalhada por áreas urbanas e rurais, e apresenta características socioculturais, históricas, políticas e econômicas diferenciadas. Aos poucos sua dinâmica demográfica vem sendo conhecida, embora os dados disponíveis sejam insuficientes para a construção de um perfil epidemiológico.1,2
A gestão da saúde dos povos indígenas, até o final da década de 1990, era disputada entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), quando o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena foi instituído por meio da Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999 (Lei Arouca), com o objetivo de funcionar em articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, a referência estratégica de ação do SUS, descentralizada, hierarquizada e regionalizada, deve garantir às populações indígenas acesso aos serviços de saúde levando em consideração a realidade local e suas especificidades culturais. Desde 1999, a atenção à saúde dos povos indígenas dispõe, como modelo de assistência, de sistemas locais de saúde: os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).3
No país, há 34 DSEI ativos, estrategicamente localizados segundo a distribuição geográfica das comunidades indígenas.4,5 O DSEI Pernambuco abrange 15 municípios, onde se distribuem as seguintes etnias: Atikum, Funil-ô, Kambiwá, Kapinawá, Pankará, Pankararu, Pipipan, Truká, Tuxá e Xukuru.5
A despeito dos esforços do Ministério da Saúde para operacionalizar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, a atenção à saúde da mulher indígena enfrenta problemas relacionados à oferta de serviços de atenção básica, como assistência pré-natal e prevenção de doenças. Soma-se a isso a precariedade de informações epidemiológicas que subsidiem a avaliação da situação e o planejamento de ações de saúde voltadas a essas mulheres.6
Em 2012, no Brasil, 16,0% dos óbitos femininos ocorreram na idade de 10 a 49 anos, classificados como mortes de mulheres em idade reprodutiva (MIR).7 Quando a causa da morte está relacionada ao período gravídico-puerperal, esses óbitos - possíveis de evitar em 92,0% dos casos - são definidos como mortes maternas e caracterizados como violação aos direitos humanos;8 99,0% deles ocorrem em regiões de maior pobreza e/ou maiores níveis de desigualdades, razão por que os indicadores de mortalidade materna são importantes para avaliar as condições de vida e de saúde de uma população.8
A cobertura do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) no país, estimada em até 93,0%, é considerada adequada pelo Ministério da Saúde,9 cujo documento-padrão responsável por coletar informações sobre mortalidade é a Declaração de Óbito (DO).10 Apesar da cobertura satisfatória do SIM, estima-se que as mortes maternas sejam subinformadas, a uma proporção de até 20%.11 A vigilância dos óbitos de MIR e maternos, regulamentada pela Portaria GM/MS nº 1.119, de 5 de junho de 2008, estabelece a investigação obrigatória desses eventos, independentemente da causa mortis. O monitoramento das investigações e discussões sobre o tema passou a ser feito utilizando-se o módulo de investigação do SIM: SIM-Web (Figura 1).12
A informação sobre mortalidade indígena é mais incompleta quando comparada à da população geral, dada a baixa qualidade dos sistemas de informações, a ausência de inquéritos regulares e a exiguidade de investigações.13 De acordo com a Funasa, não se dispõe de dados globais fidedignos sobre a situação da saúde indígena no Brasil. Mesmo incompletos, os números acenam para coeficientes de morbimortalidade em indígenas até quatro vezes superiores aos identificados no restante da população. A elevada frequência de óbitos não registrados e sem causa básica definida corrobora a baixa cobertura e resolutividade dos serviços disponíveis.1,14
No que se refere às informações em saúde da população indígena, concomitantemente à implantação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, desenvolveu-se o Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI). Estruturado em oito módulos (demografia; morbidade; imunização; saúde bucal; nutrição; acompanhamento à gestação; recursos humanos; infraestrutura e saneamento), o SIASI foi simultaneamente descentralizado aos DSEI a partir do ano 2000.15,16
As informações contidas no SIASI deveriam subsidiar a construção de indicadores que permitissem a análise da situação de saúde desses povos. Entretanto, dificuldades em sua operacionalização fizeram com que o sistema não suprisse as equipes de saúde com informações consistentes sobre as necessidades e peculiaridades da população indígena, dificultando a construção de indicadores de saúde fidedignos e a tomada de decisões pelos gestores da Saúde.15,17
O SIASI não dispõe de variáveis importantes para se proceder a análises epidemiológicas de qualidade, o que compromete a avaliação da situação de saúde da população a seu cuidado. Outrossim, o sistema funciona de forma paralela aos sistemas de informações oficiais do Ministério da Saúde, inclusive o SIM. Este obtém os dados de óbitos indígenas por meio da variável raça/cor da pele, presente na DO, evidenciando a falta de articulação entre ambos os sistemas.17
A variável raça/cor da pele passou a fazer parte das estatísticas de mortalidade em 1996, aproximadamente dez anos passados da implantação do SIM. Entretanto, apenas no ano 2000, quando apresentou melhoria na qualidade do registro, o ministério passou a utilizá-la na construção de indicadores que possibilitam a análise do risco de morte via recorte étnico-racial.18
Este estudo teve por objetivo descrever as mortes de mulheres em idade reprodutiva - MIR - e maternas entre indígenas do estado de Pernambuco, Brasil, no período de 2006 a 2012.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo das mortes de MIR e maternas da população indígena residente no estado de Pernambuco.
Segundo o Censo de 2010, Pernambuco apresentava naquele ano uma população de 8.796.448 habitantes e era o 4° estado com maior população indígena autodeclarada (53.284 pessoas), sendo Pesqueira o 7° município com maior contingente populacional, e a capital Recife, a 10a cidade a domiciliar maior número de indígenas em área urbana.19
A população do estudo, obtida por meio de dados secundários, constitui-se dos óbitos de MIR ocorridos entre 2006 e 2012, notificados ao SIM, em que o campo 17 da DO (variável raça/cor da pele) foi preenchido como ‘indígena’. Também foram incluídos os óbitos subinformados quanto ao quesito raça/cor da pele no SIM, ou seja, aqueles que não tiveram o campo 17 preenchido como ‘indígena’; estes foram objeto de investigação pelo DSEI e qualificados pelo SIM-Web como óbitos de mulheres indígenas aldeadas.
O DSEI corresponde a uma unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Sua missão consiste no desenvolvimento de atividades técnicas, administrativas e gerenciais voltadas para a assistência à saúde de uma população específica, com características étnico-culturais e geográficas particulares, em um espaço geográfico precisamente delimitado. É de responsabilidade do DSEI a assistência básica de saúde à população indígena aldeada, por meio das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI), compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde (AIS), semelhante à equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF). O funcionamento do DSEI deve ser integrado e hierarquizado conforme os níveis de complexidade da atenção à saúde, em articulação com o SUS.4,2
Em Pernambuco, o DSEI está organizado em 12 polos-base, encarregados de administrar uma população de 49.454 indígenas aldeados, distribuídos em 245 aldeias.20 O DSEI abrange 15 municípios e conta com uma Casa de Apoio à Saúde do Índio (CASAI) localizada em Camaragibe, além de dois polos avançados (Salgueiro e Caruaru). Recife, Petrolina, Serra Talhada, Arcoverde e Vitória de Santo Antão constituem referências para atendimentos de maior complexidade.
Disponibilizado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), o SIM-Web atende ao DSEI Pernambuco desde 2014; ele permite a qualificação das informações dos óbitos de MIR e maternos da população sob responsabilidade sanitária do DSEI. Por meio do SIM-Web, é possível complementar dados referentes ao quesito raça/cor da pele e agregar outras informações não contempladas na DO. As informações agregadas após a investigação e qualificação desses dados ficam restritas ao SIM-Web, não sendo repassadas à base de dados do SIM, que permanece subinformada.
A população final do estudo foi obtida mediante linkage entre os registros notificados no SIM e seu módulo SIM-Web. A técnica de linkage consiste no emparelhamento de bancos de dados, pautado em uma variável comum, possibilitando o estabelecimento de um banco de dados único.21 Neste estudo, utilizou-se como variável comum o número da DO, a partir do qual a base de dados estadual do SIM, contendo os registros dos óbitos de MIR com o campo 17 da DO preenchido como ‘indígena’, foi pareada à base de dados dos óbitos de MIR qualificados no SIM-Web pelo DSEI. Construiu-se um banco de dados único, contendo 115 registros de óbitos de MIR, conforme as etapas descritas a seguir (Figura 2):
A partir da base de dados estadual do SIM, foram identificados 67 registros de óbitos de MIR com o campo 17 da DO preenchido como ‘indígena’.
Paralelamente, dos dados qualificados no SIM-Web pelo DSEI, foram obtidos 81 registros de óbitos de MIR entre mulheres aldeadas.
Estes 81 registros resultantes do relatório do SIM-Web também foram identificados na base de dados estadual do SIM.
Identificou-se que 33 registros eram comuns a ambos os bancos de dados, ou seja, com o campo 17 da DO preenchido como ‘indígena’ e qualificado no SIM-Web pelo DSEI. Tratava-se de mulheres autodeclaradas indígenas aldeadas, sob a responsabilidade sanitária do DSEI.
48 registros do relatório do SIM-Web apresentavam o campo raça/cor da pele subinformado no SIM, ou seja, o campo 17 da DO não fora preenchido ou se encontrava preenchido de forma incorreta. Entre os registros do SIM, 34 eram óbitos de MIR que não estavam sob responsabilidade sanitária do DSEI, embora fossem de mulheres autodeclaradas como de raça/cor da pele indígena (não aldeadas).
Considerando-se os dois bancos de dados, foram identificadas dez mortes maternas.
Para compatibilizar os bancos de dados, utilizou-se o software Microsoft Office Excel 2007.
As causas de óbito foram analisadas conforme o referencial de causa básica da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10a Revisão (CID-10). Para fins didáticos, o grupo ‘demais causas’ agregou os capítulos III, V, VI, XI, XIII, XIV e XVII da CID-10, cujas frequências absolutas não ultrapassaram três óbitos durante o período estudado.
O projeto da pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 37649214.0.0000.5208 -, em cumprimento à Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. O projeto também foi apresentado e aprovado em reunião do Conselho Distrital de Saúde Indígena de Pernambuco (CONDISI).
Resultados
Entre os 115 óbitos de MIR de raça/cor da pele indígena, 70,4% representaram a população de mulheres aldeadas. Apenas 58,3% dos óbitos foram informados ao SIM como sendo de indígenas. O linkage agregou ao banco de dados do estudo 41,7% de óbitos não informados inicialmente como raça/cor da pele indígena. Em 27,8% dos casos, a inconsistência se apresentou no registro da variável raça/cor da pele parda, em detrimento da indígena (Tabela 1).
Variáveis | N (n=115) | % |
---|---|---|
Faixa etária (em anos) | ||
10-19 | 15 | 13,0 |
20-29 | 23 | 20,0 |
30-39 | 29 | 25,2 |
40-49 | 48 | 41,8 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 5 | 4,3 |
Preta | 8 | 7,0 |
Parda | 32 | 27,8 |
Indígena | 67 | 58,3 |
Ignorada/não informada | 3 | 2,6 |
Escolaridade ou grau de instrução (em anos de estudo) | ||
Nenhum | 27 | 23,5 |
1-3 | 25 | 21,7 |
4-7 | 24 | 20,9 |
8-11 | 8 | 7,0 |
Ignorada/não informada | 31 | 26,9 |
Ocupação | ||
Autônoma | 1 | 0,9 |
Agricultora | 61 | 53,1 |
Estudante | 5 | 4,3 |
Dona de casa | 13 | 11,3 |
Aposentada/pensionista | 5 | 4,3 |
Ignorada/não informada | 30 | 26,1 |
Situação conjugal | ||
Solteira | 60 | 52,2 |
Casada | 44 | 38,3 |
Viúva | 2 | 1,7 |
União estável | 2 | 1,7 |
Ignorada/não informada | 7 | 6,1 |
Analisada a distribuição dos óbitos por faixa etária, observou-se que 41,8% deles se encontravam entre 40 e 49 anos. Os estratos intermediários, de 20 a 29 e 30 a 39 anos, apresentaram-se com proporções aproximadas de 20,0% e 25,2% respectivamente. A faixa etária mais jovem, dos 10 aos 19 anos, revelou a menor proporção de óbitos: 13,0% (Tabela 1).
A baixa escolaridade da população ficou evidente, com 23,5% das mulheres sem nenhuma escolaridade e sem registros para a categoria ‘mais de 12 anos de escolaridade’. Pequena maioria trabalhava em atividades relacionadas à agricultura (53,1%) e 11,3% eram donas de casa. Quanto à situação conjugal, 52,2% eram solteiras e 38,3% casadas (Tabela 1).
A maior parte dos óbitos ocorreu em unidades hospitalares (54,8%), seguidas do domicílio (33,9%). Em 45,2% dos casos, houve deslocamento do município de residência na ocasião do óbito. Recife absorveu o fluxo mais intenso de óbitos (44,2%), seguido por Petrolina (11,5%), Salgueiro (9,6%) e Caruaru (7,7%) (Figura 3).
Doenças do aparelho circulatório (Capítulo IX da CID-10: códigos I00 a I99) configuraram-se como principal causa básica de óbito (27,0%). O grupo que concentrou a segunda maior proporção de óbitos (14,8%) foi o de causas externas (Cap. XX: V01-Y98). As neoplasias (Cap. II: C00-D48) representaram 13,0% dos óbitos, seguidas das causas maternas, complicações durante a gravidez, parto e puerpério (Cap. XV: O00-O99), concentrando 8,7% dos óbitos.
No grupo das doenças do aparelho circulatório (N=31), o maior número de mortes ocorreu por doenças isquêmicas do coração (11), com destaque para o infarto agudo do miocárdio. Entre as doenças cerebrovasculares (10), o acidente vascular cerebral (AVC) foi a causa mais frequente. Distribuíram-se igualmente (4) as doenças hipertensivas e as demais formas de doenças do coração, com ênfase para a cardiomiopatia dilatada (Tabela 2).
Grupos de causas básicas | N | CID-10a |
---|---|---|
Doenças do aparelho circulatório (Capítulo IX da CID-10a) (n=31) | ||
Doenças reumáticas crônicas do coração | 1 | I05-I09 |
Doenças hipertensivas | 4 | I10-I15 |
Doenças isquêmicas do coração | 11 | I20-I25 |
Outras formas de doença do coração | 4 | I30-I52 |
Doenças cerebrovasculares | 10 | I60-I69 |
Doenças das artérias, das arteríolas e dos capilares | 1 | I70-I79 |
Causas externas (Capítulo XX da CID-10a) (n=17) | ||
Acidentes de transporte | 5 | V00-V99 |
Outras causas externas de traumatismos acidentais | 2 | W00-X59 |
Lesões autoprovocadas intencionalmente | 4 | X60-X84 |
Agressões | 6 | X85-Y09 |
Neoplasias (Capítulo II da CID-10a) (n=15) | ||
Neoplasias malignas do aparelho respiratório e órgãos intratorácicos | 1 | C30-C39 |
Neoplasias malignas dos ossos e das cartilagens articulares | 1 | C40-C41 |
Melanoma e outras neoplasias malignas da pele | 1 | C43-C44 |
Neoplasia maligna da mama | 1 | C50 |
Neoplasia maligna da vulva | 1 | C51 |
Neoplasia maligna do colo do útero | 5 | C53 |
Neoplasias malignas de localizações mal definidas, secundárias e de localizações não especificadas | 2 | C76-C80 |
Neoplasias malignas do tecido linfático, hematopoiético e de tecidos correlatos | 2 | C81-C96 |
Neoplasias benignas | 1 | D10-D36 |
Causas maternas - complicações durante a gravidez, parto e puerpério (Capítulo XV da CID-10a) (n=10) | ||
Eclampsia não especificada | 1 | O15 |
Descolamento prematuro da placenta | 1 | O45 |
Anormalidades da contração uterina | 1 | O62 |
Infecção puerperal | 1 | O85 |
Complicações venosas no puerpério | 1 | O87 |
DACb complicando a gravidez, parto e puerpério | 1 | O99.4 |
DARc complicando a gravidez, parto e puerpério | 3 | O99.5 |
DADd complicando a gravidez, parto e puerpério | 1 | O99.6 |
a) CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10a Revisão.
b) DAC: doenças do aparelho circulatório.
c) DAR: doenças do aparelho respiratório.
d) DAD: doenças do aparelho digestivo.
Do grupo das causas externas (N=17), seis mortes foram ocasionadas por agressões, cinco por acidentes de transportes, quatro por lesões autoprovocadas intencionalmente e duas resultaram de outras causas externas de traumatismos acidentais (Tabela 2).
No grupo das neoplasias (N=15), a neoplasia maligna do colo uterino configurou-se como principal causa básica de óbito (5). Neoplasias malignas do tecido linfático, hematopoiético e de tecidos correlatos (leucemias) e neoplasias malignas de localizações mal definidas, secundárias e de localizações não especificadas representaram dois óbitos cada (Tabela 2).
As causas maternas foram responsáveis por dez óbitos, dos quais três decorreram de doenças do aparelho respiratório complicando a gravidez, parto e puerpério. Descolamento prematuro da placenta e anormalidades da contração uterina representaram os óbitos maternos por hemorragia (2). As demais causas básicas apresentaram-se de forma homogênea (1) (Tabela 2).
Discussão
Os resultados desta pesquisa contribuem para o conhecimento da mortalidade de mulheres indígenas em idade reprodutiva no estado de Pernambuco. Trata-se de um estudo inédito. Não havia, até o momento de conclusão deste relato, trabalhos que demonstrassem a dinâmica do agravo nesse grupo, apesar do pequeno número de óbitos descritos na série histórica.
A maior parte dos óbitos estudados correspondia a mulheres aldeadas cujo quesito raça/cor da pele foi subinformado. De parte dos óbitos de MIR sob responsabilidade sanitária do DSEI, mais da metade tiveram a variável raça/cor da pele informada incorretamente. São resultados reveladores do grau de subinformação dessa variável na população reconhecidamente indígena, que reafirmam a baixa qualidade das informações disponíveis sobre essa população.
Escolaridade, assim como em outros estudos,7,22 apresentou a maior proporção de incompletude, possivelmente explicada pelo fato de essa informação, geralmente não constar nos prontuários hospitalares considerando-se que o hospital foi o local de maior ocorrência dos óbitos. A baixa escolaridade ficou evidenciada: uma pequena parcela da população descrita apresentou de 8 a 11 anos de estudo.
Em relação à variável ‘ocupação’, a maioria das mulheres dedicava-se à agricultura. Este achado pode estar associado a questões culturais, ou à dinâmica de subsistência própria dessa população, predominantemente domiciliada em áreas rurais ou aglomerados urbanos de pequenos municípios do interior do estado.23
Quanto ao município de ocorrência do óbito, observaram-se fluxos semelhantes aos descritos por Rohr et al.:24 as mulheres indígenas precisaram se deslocar de seus municípios de residência em busca de assistência à saúde, na ocasião do óbito. O DSEI assegura a Atenção Básica à saúde dessa população nas proximidades das aldeias, sendo parte dos deslocamentos identificados neste estudo explicados pela necessidade de assistência de média e alta complexidade. Os municípios que mais absorveram óbitos foram os que representam polos avançados e pontos de referência para atendimentos de maior complexidade do DSEI.
Os indicadores de mortalidade são capazes de expressar como diferenças étnico-raciais podem levar a desigualdades no acesso aos serviços de saúde. Embora seja necessário agregar elementos da especificidade cultural dessas populações, o estudo observou 33,9% dos óbitos em domicílio. Este resultado também pode significar dificuldades no acesso a assistência médica de emergência e/ou especializada.
A análise da escolaridade, ocupação, local e município de ocorrência do óbito pode revelar semelhanças entre a população indígena e a população rural de Pernambuco. A baixa situação socioeconômica e as condições de trabalho existentes, grandes distâncias entre residência e serviço de saúde e a precariedade dos serviços locais são alguns fatores capazes de influenciar a vulnerabilidade dessas mulheres, e assim determinar dificuldades no acesso ao cuidado em saúde.6 Os índios do Nordeste vivem de forma integrada ao meio ambiente regional, onde, possivelmente, a convivência ou mesmo a miscigenação com a população geral trouxe a perda parcial de elementos tradicionais, em parte confirmada ao se estudar as mortes de MIR indígenas e maternas, principalmente no que se refere à população rural feminina.25
Ao compararem indicadores de mortalidade entre a população indígena e a população geral do estado de Mato Grosso do Sul, Ferreira et al.26 sugeriram que essas populações se encontravam em diferentes estágios da transição epidemiológica. Em Pernambuco também se observa que a população de MIR indígena se encontra em estágio diferente dessa transição, quando comparada à população de MIR em todo o estado.
Quando analisados os principais grupos de causa de morte entre as doenças do aparelho circulatório, as doenças isquêmicas do coração e as doenças cerebrovasculares (infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral) ganharam destaque: juntas, estas causas representaram mais da metade dos óbitos de MIR indígenas por doenças do aparelho circulatório, semelhantemente aos resultados encontrados por Albuquerque et al.27 em seu estudo sobre a cidade do Recife.
Entre as causas externas de morte, agressões e acidentes de transporte somaram mais da metade dos óbitos. Embora, na década de 1990, as causas externas tenham representado a terceira causa de óbito de MIR na capital pernambucana, 64,1% dessas mortes resultaram de agressões e acidentes de transporte,27 proporção semelhante à encontrada neste estudo.
O aumento das causas externas pode estar associado ao modo de vida nas áreas urbanas. Para as mulheres indígenas de Pernambuco que morreram no período do estudo, apesar de a maioria estar domiciliada nas aldeias, predominantemente em áreas rurais, algumas delas são diretamente afetadas pela condição urbana, a exemplo da etnia Fulni-ô, que constitui um bairro da cidade de Águas Belas.
Os óbitos por neoplasias, a partir dos anos 1990, despontam como a primeira causa de óbito de MIR.7,27 Não obstante, entre as MIR indígenas, as neoplasias correspondem à terceira causa de óbito. Cenários onde os óbitos por neoplasia são proporcionalmente inferiores aos óbitos por doenças do aparelho circulatório e por causas externas, comuns em regiões de menor nível de desenvolvimento, podem refletir estágios diferentes da transição epidemiológica.26
O câncer do colo uterino já foi apontado como um problema de Saúde Pública entre a população indígena da América do Norte.28 No presente estudo, os óbitos por neoplasias malignas do colo do útero superam os demais sítios primários de tumor.
Causas maternas, por sua vez, representaram 8,7% dos óbitos de MIR indígenas. No Brasil, em 2005, 2,5% dos óbitos de MIR foram relacionados ao estado gravídico-puerperal; em Pernambuco, entre 2004 e 2006, esse percentual não ultrapassou 3,1%.7,28 A julgar por esses dados, é elevada a proporção de óbitos maternos na população indígena quando comparada à população geral. Tal achado corrobora a ideia de que esse grupo se encontra em etapa anterior da transição epidemiológica, e que a assistência à saúde materna e infantil ainda é insuficiente para responder a seu padrão de adoecimento.
Questões sociodemográficas, associadas à baixa qualidade dos serviços de saúde oferecidos a essa população, podem dificultar o acesso a exames de prevenção, diagnóstico e tratamento da doença.6
As características sociodemográficas apontam para a vulnerabilidade da população indígena, com influência direta na autopercepção da necessidade de cuidado e consequente busca pela assistência à saúde, identificada pela alta proporção de óbitos ocorridos em domicílio, preditores de mortes sem assistência médica; ou ainda, pela elevada proporção de óbitos por neoplasia maligna do colo uterino, fato indicativo de diagnóstico tardio da doença.
A subinformação do campo raça/cor da pele na DO dificulta a construção de um perfil de mortalidade e o cálculo de indicadores de saúde específicos para a população indígena. Os esforços do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Saúde Indígena para adicionar variáveis à DO capazes de identificar a população indígena no SIM ainda são incipientes. A qualificação da variável raça/cor da pele no SIM-Web é essencial para o conhecimento dos óbitos indígenas. Entretanto, deve-se considerar a necessidade de agregar à base de dados do SIM as informações resgatadas após a investigação. Ademais, o SIM-Web está disponível apenas para os óbitos de MIR, maternos, infantis e fetais, permanecendo desconhecido o restante de óbitos indígenas
A importância deste estudo reside, sobretudo, na possibilidade de se utilizar, além de outras estratégias, o SIM-Web, o qual permite complementar informações não registradas originalmente no SIM, entre elas a raça/cor da pele (indígena). A identificação de óbitos de mulheres em idade reprodutiva e maternos indígenas subinformados no Sistema de Informações sobre Mortalidade é essencial para se conhecer como morrem essas mulheres, e subsidiar políticas públicas de saúde específicas, adequadas à realidade desses povos.