O SARS-CoV-2, agente causador da COVID-19, assim como alguns outros betacoronavírus humanos, emergiu a partir de vírus existente em animais. O trajeto evolutivo envolve provável fonte genética em morcegos, mas também considera o envolvimento de um hospedeiro animal intermediário antes da transmissão para humanos, ainda desconhecido. Isso significa que os animais tiveram um papel crítico no início e na evolução desse surto, à semelhança do que já foi observado anteriormente para o MERS-CoV e o SARS-CoV-1.1
É importante a elucidação das rotas que resultam em eventos spillover, que correspondem à amplificação de hospedeiros quando o vírus ultrapassa a barreira interespécies, geralmente promovida por altas taxas de mutações. Devido à abrangência mundial e ao número elevado de pessoas infectadas, frequentemente associados a altas cargas virais, o SARS-CoV-2 pode produzir outros episódios de “saltos” entre espécies e, por isso, deve ser monitorado intensamente. Por essa razão, estudos científicos bem delineados devem esclarecer o papel epidemiológico dos animais na pandemia de COVID-19.
O novo coronavírus utiliza a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) como receptor, a mesma porta de entrada do SARS-CoV-1, causador da SARS que surgiu em 2003. Os animais de companhia ou pets, particularmente cães, gatos e furões, ganharam muita visibilidade nesse contexto devido ao contato próximo com as pessoas e por apresentarem o receptor ACE2 com elevada identidade para as sequências de aminoácidos do ACE2 humano.3
A literatura ainda é escassa, mas indica que algumas espécies animais, em especial felídeos, podem ocasionalmente ser infectados por SARS-CoV-2,5 embora a transmissão homem–gato pareça ser um evento difícil de ocorrer em condições naturais. Os relatos foram casos isolados e estatisticamente nos dizem que ainda não há indícios de que animais de estimação, principalmente cães e gatos, sejam fonte de infecção para seres humanos. As evidências nos levam somente a casos em que os seres humanos infectados pela COVID-19 (tutores e tratadores) passaram partículas virais para os animais de forma natural ou casos nos quais o vírus foi experimentalmente inoculado.
Também, há uma possibilidade de os animais infectados pelo vírus adoecerem, mas o quadro clínico apresentado parece ser leve e autolimitante. A fonte primária de infecção para os gatos está relacionada ao contato com pessoas infectadas, porém, ainda não há evidências que surgiram transmissibilidade para humanos.5 Estudos anteriores para o SARS-CoV-1 já demonstraram em gatos exatamente o que está sendo descoberto agora para o SARS-CoV-2.11
Dada a magnitude da COVID-19 em humanos, a falta de qualquer caso documentando de COVID-19 sendo transmitido de gatos para humanos deve prover o conforto necessário de que nossos amigos felinos não são fatores de propagação viral para humanos. Como não há suporte epidemiológico que justifique inclusão de gatos na cadeia de transmissão do vírus, no momento o risco é tido como nulo.
Necessitamos de estudos mais aprofundados e mais bem delineados que provem a hipótese de que animais de estimação, como cães e gatos, possam ser importantes fontes de infecção para os seres humanos. Entretanto, se por um lado a necessidade de mais estudos se torna proeminente, por outro devemos tomar cuidado com a divulgação dos resultados destes estudos em meios de comunicação não científicos, pois os impactos desta divulgação para um público que não está apto a avaliar tais resultados à luz da ciência pode gerar um pânico infundado, e trazer consequências gravíssimas aos animais e à saúde pública.
Estudos incompletos e inconclusivos, com amostras de tamanho pequeno, podem causar mais incerteza em um momento delicado e ameaçar ainda mais o bem-estar dos animais de estimação, assim como a saúde pública. Comunicados de organizações não governamentais (ONGs) internacionais que trabalham com proteção e bem-estar animal apontam que os casos de abandonos de cães e gatos e maus tratos aumentaram após a instauração da pandemia, principalmente na América Latina e na Ásia.12
Percebe-se, portanto, que resultados mal interpretados podem levar a mais abandonos e maus tratos em animais que podem impactar a saúde pública, à medida que aumenta o número de animais errantes, levando a um aumento no número de agravos, atropelamentos, e ao surgimento de possíveis surtos de zoonoses como raiva, leishmaniose e esporotricose, em regiões vulneráveis.
Dessa forma, é crucial que os cientistas continuem pesquisando sobre o novo coronavírus em pets, e a divulgação oportuna é uma questão ética. A compreensão da dinâmica viral pode significar grandes avanços no que sabemos sobre a capacidade do coronavírus de se espalhar entre humanos e animais. Contudo, testar os animais para SARS-CoV-2 é uma questão que requer alguns direcionamentos prévios.
Os testes clínicos esporádicos podem algumas vezes ser úteis, mas também podem significar perda de tempo e esforço e causar ainda mais problemas, se o contexto não for conduzido apropriadamente. É fundamental que um plano de comunicação claro seja estabelecido antecipadamente. Antes de serem testados para SARS-CoV2, os animais devem ser avaliados para outras causas mais comuns para o quadro clínico apresentado. Animais positivos devem ser monitorados. Os tutores precisam ser devidamente informados sobre o significado de um resultado positivo, de forma que não haja medo excessivo ou reação de pânico que possa resultar em eutanásia ou abandono.
Quanto aos estudos em andamento no Brasil, sabe-se de um estudo em gatos domiciliados e comunitários para investigação de SARS-CoV2 por RT-qPCR, ainda sem dados publicados. O estudo, conduzido por um laboratório de diagnósticos veterinários (TECSA Laboratórios), foi iniciado em 26 de fevereiro e, com 50 dias de coletas, foram obtidas 56 amostras de 10 estados brasileiros (Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins). Os animais avaliados apresentavam quadro respiratório e/ou intestinal, e o grupo considerou gatos expostos e não expostos a pessoas com COVID-19. Ainda não foi detectado nenhum animal positivo para SARS-CoV-2.
Tendo em vista a possibilidade de infecção por SARS-Cov-2 em gatos, devemos considerar esse cenário com muita cautela. Resumidamente, os testes em animais somente devem ser conduzidos com propósito de vigilância, cooperação com a ciência e, eventualmente, para minimizar o risco de comportamentos indevidos.
As agências científicas e os organismos internacionais devem continuar suas pesquisas em relação ao vírus SARS-CoV-2, as suas formas de transmissão, os principais fômites, os principais hospedeiros, o potencial de transmissibilidade dos animais domésticos mais prevalentes (cães, gatos, aves); e as agências de notícia devem somente disseminar informações científicas ao grande público quando estas estiverem bem consolidadas e comprovadas, e quando forem divulgadas em forma de posicionamento pelos órgãos de saúde pública.
A quantidade de informação sobre infecção em gatos ainda é mínima, mas a situação está evoluindo rapidamente. Por isso, é recomendado que os veterinários monitorem frequentemente as comunicações oficiais e científicas para atualização.
Até o momento, sabe-se que a principal via de transmissão do vírus continua sendo por meio do contato entre pessoas. Ainda assim, pessoas suspeitas ou confirmadas para COVID-19 devem minimizar o contato direto com seus pets para evitar alguma transmissão potencial. A principal razão é que o vírus pode ser indiretamente carreado pelo animal para uma pessoa não infectada. Nesse sentido, os cães e gatos podem funcionar como fômites, ou seja, podem se portar como um lenço, um copo ou um objeto contaminado com o vírus. Trata-se de um episódio pouco provável, mas não impossível.
Assim, cabe aos médicos veterinários aconselharem os tutores com suspeita ou diagnóstico de COVID-19 a manter-se isolados de seus animais, ou manter o mínimo contato, observando todas as medidas de higiene ao contatar estes animais. Se nos infectamos, temos que tomar todas as medidas protetivas em relação aos nossos familiares e aos animais.
Também devemos salvaguardar a saúde de todos, e se for comprovado um risco real de animais poderem contrair a COVID-19 e a disseminarem entre humanos, funcionando como uma fonte real e relevante de infecção, medidas protetivas deverão ser imediatamente divulgadas, visto que cães e gatos já fazem parte de muitas famílias brasileiras. Medidas de prevenção e medidas de isolamento destes animais também deverão ser instauradas para que se proteja o bem-estar animal e a saúde de seus tutores, de seus contactantes e dos profissionais que lidam com estes animais no dia a dia, como pet sitters, tratadores, médicos veterinários, enfermeiros veterinários etc.
Reitera -se que ainda temos poucas evidências deste risco maior, e as recomendações dos organismos internacionais de saúde e associações médicas e veterinárias – como a Organização Mundial da Saúde/Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/OPAS),15 a World Organisation for Animal Health (OIE),16 o Center for Disease Control and Prevention (CDC)17 e a World Small Animal Veterinary Association (WSAVA)18 – seguem a mesma linha editorial em seus comunicados oficiais: os achados científicos ainda são insuficientes para demonstrar o impacto infeccioso do vírus para os gatos, mas indicam, até o momento, que esses animais não caracterizam fonte importante de transmissão de SARS-CoV-2 para humanos. E ainda não há posicionamento oficial desses órgãos sobre os testes em animais.
É dever dos médicos veterinários atualizar-se constantemente acerca do tema e informar os tutores e outros profissionais da área sobre os possíveis riscos de transmissão, sobre as formas de prevenção e sobre a necessidade destes de continuarem a cuidar de forma responsável de seus animais, e alertá-los de que, em hipótese alguma, os animais domésticos podem ser culpabilizados ou responsabilizados por uma doença que surgiu e está sendo disseminada entre seres humanos.