Introdução
Entre as doenças emergentes do século XXI, a infecção pelo vírus Zika foi umas das maiores preocupações e desafios para a saúde pública em todo o mundo, em razão da sua magnitude, dada sua rápida disseminação global e seu grave impacto, decorrente da epidemia de microcefalia e demais alterações fetais associadas a ela. Até julho de 2019, 87 países e territórios tiveram evidências de transmissão autóctone do vírus Zika. A incidência de infecção pelo vírus na região das Américas atingiu o pico em 2016 e logo reduziu-se, substancialmente, ao longo de 2017 e 2018. No entanto, todas as áreas com relato de transmissão do vírus Zika guardam potencial para ressurgimento ou reintrodução da doença.1
Desde a identificação do vírus no Brasil, observou-se um aumento nos casos de microcefalia de nove vezes, em relação à média dos cinco anos anteriores.2-4 As prevalências mais elevadas, em 2015 e 2016, foram observadas na região Nordeste, com redução de 2015 para 2016 (de 12,64 para 7,13 casos por 10 mil nascidos vivos), o que influenciou o decréscimo na prevalência dessa malformação em todo o país (de 3,85 para 3,07 por 10 mil nascidos vivos). Todavia, nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Norte, as prevalências foram maiores em 2016, comparadas às observadas em 2015.5,6
Muitos estudos foram realizados com o propósito de avaliar essa associação entre a infecção pelo vírus Zika durante a gestação e a ocorrência de malformações congênitas.7-10 Tais estudos demonstraram que a infecção pelo Zika durante a gestação pode causar inúmeras alterações no feto, incluindo microcefalia, desproporção craniofacial, espasticidade, convulsões, irritabilidade, disfunção do tronco encefálico, problemas de deglutição, contraturas de membros, anormalidades auditivas e oculares, e anomalias cerebrais detectadas por neuroimagem. Há consenso de que o vírus Zika é uma causa de microcefalia e outras complicações neurológicas, as quais, em conjunto, constituem a síndrome congênita pelo vírus Zika.11,12
Este trabalho teve por objetivo descrever o perfil epidemiológico de gestantes com suspeita de infeção pelo vírus Zika notificadas no Sistema de Vigilância às Emergências em Saúde Pública do estado de São Paulo (CeVeSP), e o espectro de anormalidades e/ou resultados de sua gestação.
Métodos
Trata-se de estudo epidemiológico descritivo, sobre uma coorte de gestantes sintomáticas, com suspeita de exposição ao vírus Zika, e seus conceptos.
Essa coorte de gestantes foi extraída do sistema de notificação de Emergência em Saúde Pública, da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, que recebe as notificações de toda gestante com suspeita de infecção pelo vírus Zika e, por meio desse mesmo formulário, detecta o desfecho da gestação (criança saudável ou com alteração).
O território de estudo foi o estado de São Paulo, que, desde a declaração da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em 2015, monitora e investiga gestantes com suspeita de infecção pelo vírus Zika (quadro agudo de exantema em qualquer idade gestacional) e o resultado de sua gestação. A vigilância desses casos é feita mediante registro em formulário específico no CeVeSP, plataforma dinâmica na internet para notificação de eventos de emergência em saúde, de acesso restrito aos grupos de vigilância epidemiológica do estado de São Paulo. Esse acompanhamento permite o diagnóstico laboratorial de Zika, a caracterização clínica e epidemiológica dos casos e o acompanhamento do desfecho da gestação (natimorto, aborto, óbito neonatal, recém-nascido saudável, microcefalia congênita e/ou outras anomalias do sistema nervoso central).13
Foram incluídas no estudo todas as gestantes sintomáticas, ou seja, que apresentaram exantema, independentemente da idade gestacional, no período de outubro de 2015 a dezembro de 2018. Foram excluídas outras hipóteses diagnósticas notificadas no CeVeSP, no mesmo período.
As seguintes definições de casos foram tomadas como referência do estudo:12
Casos confirmados
Gestantes sintomáticas, ou seja, que apresentaram exantema, independentemente da idade gestacional (excluídas outras hipóteses diagnósticas), com resultado positivo para o vírus Zika na reação da transcriptase reversa seguida pela reação em cadeia da polimerase (em inglês: reverse transcription-polymerase chain reaction [RT-PCR]) (urina e/ou sangue coletados em tempo oportuno).
Casos descartados
Gestantes sintomáticas, ou seja, que apresentaram exantema, independentemente da idade gestacional, com confirmação de outras hipóteses diagnósticas e/ou com resultado negativo para o vírus Zika no RT-PCR (urina e/ou sangue coletados em tempo oportuno).
Foram analisadas as seguintes variáveis:
a) Data da ocorrência dos casos de gestantes sintomáticas com suspeita de infecção pelo vírus Zika (mês e ano de ocorrência)
b) Dados sociodemográficos das gestantes
- Estado civil (solteira; casada; em união estável; divorciada; viúva);
- Raça/cor da pele (branca; preta; parda; outras);
- Escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental I e II; ensino médio; ensino superior);
- Idade das gestantes (calculados a média e o desvio-padrão).
c) Características clínicas das gestantes
- Sinais e sintomas das gestantes (cefaleia; mialgia; prurido; febre);
- Infecção por STORCH (sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus ou herpes). Quanto aos resultados dos exames de STORCH na gestação, não havia informação da diferenciação entre detecção de imunoglobulina M e de imunoglobulina G.
d) Dados da gestação atual
- Trimestre de gestação (1º; 2º; 3º);
- Quantidade de consultas de pré-natal (nenhuma; 1-3; 4-6; 7 e mais);
- Tipo de parto (cesárea; vaginal).
e) Dados do recém-nascido
- Sexo (feminino; masculino);
- Peso dos recém-nascidos (calculados a mediana e a variação);
- Parto (termo; pré-termo; aborto/natimorto);
- Desfecho do concepto (saudável; óbito; microcefalia; alteração do sistema nervoso central; microcefalia e alteração do sistema nervoso central; outras alterações).
f) Município de residência dos casos de gestantes confirmadas para infecção pelo vírus Zika.
Como fonte de dados, foram utilizados o CeVeSP e o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde, da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
Foi realizado relacionamento entre bases de dados, do tipo determinístico, ou seja, identificação exata de registro da base de dados do CeVeSP na base de dados do Sinasc, para obtenção de outras variáveis de interesse e melhor caracterização dos casos. Foram utilizados, como critérios para seleção de pares verdadeiros, o nome completo e a data de nascimento das gestantes. Esse relacionamento foi feito por um técnico do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde, não sendo fornecida a base nominal do Sinasc para os autores do estudo.
Foram calculadas frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas e médias, medianas, amplitude de variação e desvios-padrão para variáveis quantitativas, pelo programa Excel versão 2010. Também foi analisada a distribuição espacial dos casos confirmados, em número absoluto, apresentada em mapa coroplético, elaborado pelo software QGIS (versão 3.14.16 ‘Pi’). Utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson para variáveis categóricas, com nível de significância de 5%. Para as tabelas com mais de 20% de células com valor menor que 5, utilizou-se o teste exato de Fisher. Para o cálculo do valor de p, não foram utilizados os valores ‘ignorados’. Foram utilizados os softwares RStudio (versão 4.0.2) e OpenEpi (versão 3.01) para os cálculos estatísticos.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEP/FSP/USP), por meio do Parecer nº 3.315.552, emitido em 9 de maio de 2019, sendo dispensado da aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
No período de outubro de 2015 a dezembro de 2018, foram notificados no CeVeSP 3.318 casos de gestantes sintomáticas com suspeita de exposição ao vírus Zika. No relacionamento entre as bases de dados, foram localizadas 2.842 gestantes. Destas, 513 não tinham relato de exantema. Dessa forma, foram consideradas na análise 2.329 gestantes com suspeita de infecção pelo vírus Zika, e destas, 1.601 (68,7%) foram casos descartados para a infecção, 683 (29,3%) casos confirmados e 45 (1,9%) permaneciam em investigação até o momento da análise dos dados (Figura 1).
Os casos concentraram-se no período de 2015 a 2016 (período epidêmico), com pico em fevereiro de 2016 (total de 473; 211 confirmados e 2 em investigação) e março (total de 464; 179 confirmados e 9 em investigação). A partir de 2017, os casos declinaram (período pós-epidêmico), não sendo registrado, em nenhum mês, um quantitativo superior a 50 casos. Em novembro e dezembro de 2018, não houve registros de casos (Figura 2).
As gestantes com resultado positivo para infecção pelo vírus Zika (casos confirmados) tinham média de idade de 27 anos (desvio-padrão: ± 6), em grande parte eram solteiras (44,8%), a maioria da raça/cor da pele branca (74,2%) e com ensino médio completo (53,6%), seguidas daquelas com ensino fundamental completo (25,3%). Parcela proporcionalmente maior das gestantes positivas para o vírus Zika adquiriu a infecção no terceiro trimestre de gestação (43,6%), comparadas às que se infectaram nos dois primeiros trimestres. A grande maioria das gestantes positivas para a infecção fez sete ou mais consultas de pré-natal (83,7%), e apenas duas não realizaram nenhuma dessas consultas durante a gestação. Mais da metade das gestantes com resultado positivo para Zika tiveram parto de tipo cesárea (53,6%) (Tabela 1).
Entre as gestantes com resultados negativos (casos descartados), a média de idade foi de 28 anos (desvio-padrão: ± 6), a maioria da raça/cor da pele branca (75,9%), em grande parte casadas (45,0%) e com ensino médio completo (49,3%), seguidas daquelas com ensino superior completo (23,3%). Foi maior a parcela de gestantes sintomáticas com resultados negativos de infecção registrados no terceiro trimestre de gestação (39,4%), comparadas às gestantes sintomáticas cujos resultados negativos foram registrados nos dois primeiros trimestres. A grande maioria das gestantes descartadas para a infecção fez sete ou mais consultas de pré-natal (87,1%) e, também, duas não realizaram nenhuma dessas consultas durante a gestação. A maioria das gestantes com resultados negativos para Zika tiveram parto de tipo cesárea (69,1%) (Tabela 1).
As variáveis que apresentaram significância estatística na comparação entre casos confirmados e descartados foram: estado civil; escolaridade; trimestre de gestação; e tipo de parto (Tabela 1).
Os principais sinais e sintomas apresentados, além do exantema, foram: cefaleia (40,0% nos casos confirmados; 39,2% nos descartados), mialgia (37,8% nos casos confirmados; 32,8% nos descartados) e prurido (37,0% nos casos confirmados; 50,4% nos descartados). A febre foi relatada em apenas 210 (30,7%) casos confirmados e 553 (34,5%) descartados (p<0,001) (dados não apresentados em tabela).
Quanto aos conceptos, não houve diferença estatística quanto ao sexo, idade ao nascer e peso ao nascer. A maioria era do sexo masculino (54,6% nos casos confirmados e 52,0% nos casos descartados de infecção pelo vírus Zika) e nasceu a termo (76,1% nos casos confirmados e 64,4% nos descartados) (Tabela 2). A mediana de peso ao nascer foi de 3.200g (290g a 4.855g) para os casos confirmados e 3.180g (735g a 4.650g) para os casos descartados de infecção por Zika (dados não apresentados em tabela).
Das gestantes confirmadas, 59 (8,7%) tiveram conceptos com algum comprometimento (aborto, natimorto, óbito, microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central, outras alterações), ao passo que, entre as gestantes descartadas para infecção pelo vírus Zika, 54 (3,4%) tiveram comprometimentos (p<0,001). A proporção de recém-nascidos com microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central nascidos de mulheres positivas para Zika foi de 3,95% (27/683), e nos casos descartados, 0,69% (11/1.601) (p<0,001). A proporção de óbitos (aborto, natimorto e óbito pós-natal) nos casos confirmados foi de 2,49% (17/683), e nos descartados, 1,50% (24/1.601) (p=0,109).
Entre os 27 conceptos das gestantes confirmadas que nasceram com microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central, em 17 a infecção pelo vírus Zika aconteceu no primeiro trimestre, em oito no segundo trimestre e em dois no terceiro trimestre de gestação. E dos 17 conceptos que foram a óbito (aborto, natimorto ou óbito pós-nascimento), em nove a infecção viral ocorreu no primeiro, em cinco no segundo e em dois no terceiro trimestre de gestação; sobre um óbito, não há informação da forma desse desfecho (dados não apresentados em tabela).
Dos 2.284 casos entre descartados e confirmados, 1.517 (66,4%) tinham registro de realização dos exames de STORCH durante o pré-natal. Dos 1.007 casos descartados para infecção pelo vírus Zika que realizaram exame de STORCH, 60 (6,0%) tiveram resultado positivo para algum dos exames, sendo 15 (25,0%) para sífilis, 12 (20,0%) para toxoplasmose, quatro (6,7%) para rubéola, oito (13,3%) para citomegalovírus e 21 (35,0%) para herpes. Dos 510 casos confirmados de infecção por Zika que realizaram exame de STORCH, 26 (5,1%) também tiveram resultado positivo para alguma das infecções investigadas por esses exames (coinfecção STORCH-Zika): cinco (19,2%) para sífilis, oito (30,8%) para toxoplasmose, três (11,5%) para rubéola, seis (23,1%) para citomegalovírus, três 11,5% para herpes e um (3,8%) para parvovírus (dados não apresentados em tabela).
A maior parte dos casos confirmados concentrou-se na região nordeste de São Paulo, com destaque para o município de Ribeirão Preto, com o maior número no estado: 353 casos confirmados (Figura 3).
a) CeVeSP: Sistema de Vigilância às Emergências em Saúde Pública do Estado de São Paulo; b) Sinasc: Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos.
Variáveis | Confirmados (N=683) | Descartados (N=1.601) | p-valor | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Estado civila | |||||
Solteira | 306 | 44,8 | 617 | 38,5 | 0,013g |
Casada | 254 | 37,2 | 721 | 45,0 | |
Em união estável | 105 | 15,4 | 223 | 13,9 | |
Divorciada | 12 | 1,8 | 31 | 1,9 | |
Viúva | 2 | 0,3 | 3 | 0,2 | |
Raça/cor da peleb | |||||
Branca | 507 | 74,2 | 1.215 | 75,9 | 0,442g |
Preta | 22 | 3,2 | 35 | 2,2 | |
Parda | 149 | 21,8 | 334 | 20,9 | |
Outras | 2 | 0,1 | 7 | 0,4 | |
Escolaridadec | |||||
Sem escolaridade | 4 | 0,6 | 1 | 0,1 | <0,001h |
Ensino fundamental I e II | 173 | 25,3 | 227 | 17,2 | |
Ensino médio | 366 | 53,6 | 789 | 49,3 | |
Ensino superior | 97 | 14,2 | 374 | 23,3 | |
Trimestre de gestaçãod | |||||
1º | 113 | 16,5 | 401 | 25,0 | <0,001g |
2º | 261 | 38,2 | 550 | 34,4 | |
3º | 298 | 43,6 | 630 | 39,4 | |
Quantidade de consultas de pré-natale | |||||
Nenhuma | 2 | 0,3 | 2 | 0,1 | 0,589h |
1-3 | 10 | 1,5 | 20 | 1,2 | |
4-6 | 80 | 11,7 | 176 | 11 | |
≥7 | 572 | 83,7 | 1.394 | 87,1 | |
Tipo de partof | |||||
Cesárea | 366 | 53,6 | 1.107 | 69,1 | <0,001g |
Vaginal | 316 | 46,3 | 494 | 30,9 |
a) Quatro casos confirmados com informação ignorada; seis casos descartados com informação ignorada; b) Três casos confirmados com informação ignorada; dez casos descartados com informação ignorada; c) 43 casos confirmados com informação ignorada; 210 casos descartados com informação ignorada; d) 11 casos confirmados com informação ignorada; 20 casos descartados com informação ignorada; e) 19 casos confirmados com informação ignorada; nove casos descartados com informação ignorada; f) Um caso confirmado com informação ignorada; g) Teste qui-quadrado de Pearson; h) Teste exato de Fisher.
Nota: Para o cálculo do valor de p, não foram utilizados os valores ‘ignorados’.
Variáveis | Confirmado (N=683) | Descartado (N=1.601) | p-valor | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Sexoa | |||||
Feminino | 310 | 45,4 | 767 | 47,9 | 0,270d |
Masculino | 373 | 54,6 | 834 | 52,1 | |
Partob | |||||
Termo | 520 | 76,1 | 1.031 | 64,4 | 0,312d |
Pré-termo | 48 | 7,0 | 109 | 6,8 | |
Aborto/natimorto | 15 | 2,2 | 19 | 1,2 | |
Desfecho do conceptoc | <0,001e | ||||
Saudável | 565 | 82,7 | 1.217 | 76,0 | |
Óbito | 17 | 2,5 | 24 | 1,5 | |
Microcefalia | 12 | 1,8 | 3 | 0,2 | |
Alteração do sistema nervoso central | 4 | 0,6 | 5 | 0,3 | |
Microcefalia e alteração do sistema nervoso central | 11 | 1,6 | 3 | 0,2 | |
Outras alterações | 15 | 2,2 | 19 | 1,2 |
a) Um caso descartado com informação ignorada; b) 100 casos confirmados com informação ignorada; 442 casos descartados com informação ignorada; c) 59 casos confirmados com informação ignorada; 330 casos descartados com informação ignorada; d) Teste qui-quadrado de Pearson; e) Teste exato de Fisher.
Nota: Para o cálculo do valor de p, não foram utilizados os valores ‘ignorados’.
Discussão
No estado de São Paulo, a transmissão do vírus Zika em gestantes foi predominante em mulheres jovens, de raça/cor da pele branca, com ensino médio completo e concentradas na região nordeste do estado. A proporção de recém-nascidos com microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central, entre as gestantes confirmadas para infecção pelo vírus Zika, foi maior do que a proporção de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central nos casos descartados.
Quanto às limitações metodológicas do estudo, há de se levar em conta a documentação incompleta inerente à rotina de sistemas de vigilância, que pode ter comprometido a acurácia dos dados de um estudo descritivo. Outra limitação a considerar foi a alta especificidade laboratorial, utilizando-se apenas o RT-PCR para o diagnóstico de infecção pelo vírus Zika nas gestantes, haja vista a indisponibilidade da sorologia no momento da investigação laboratorial.
O pico de casos de gestantes com infecção pelo vírus Zika notificados no estado de São Paulo ocorreu no início de 2016 (segunda onda no Brasil), diferentemente da região Nordeste do país, onde o pico de notificações aconteceu no segundo semestre de 2015 (primeira onda no Brasil).6 As razões para essas diferenças ao longo do tempo e em diferentes regiões, todavia, não estão completamente elucidadas; porém, algumas explicações possíveis são (i) as condições ambientais e sociais, (ii) as ações de controle do Aedes aegypti e (iii) a adoção de medidas de proteção individuais ou domiciliares (repelentes, roupas compridas, telas e mosquiteiros), especialmente para proteção de gestantes durante a segunda onda de propagação do vírus Zika.4,6
As gestantes sintomáticas suspeitas de Zika caracterizam-se por serem mulheres jovens, solteiras, da raça/cor de pele branca e com o ensino médio completo. Estes achados diferem de estudos nacionais,4,5,14,15 principalmente quando esses estudos referem as regiões Norte e Nordeste, onde observaram predominância de gestantes não brancas e casadas/em união estável. Entretanto, os achados da presente pesquisa aproximam-na de uma pesquisa realizada na localidade de São José do Rio Preto, SP,16 provavelmente por se referir a um município do mesmo estado e apresentar perfil populacional semelhante. Ademais, as 54 gestantes e crianças apresentadas por Nogueira et al. em São José do Rio Preto16 estão contidas no grupo populacional descrito neste estudo.
O vírus Zika pode acometer indivíduos de qualquer classe social, econômica ou etnia. Não obstante isso, estudos sugerem a situação de pobreza como um determinante social na configuração da epidemia de Zika no país, e, sob esse aspecto, a raça/cor da pele e a escolaridade são indicativos dessa condição social.17 Os casos estudados no trabalho em tela apresentaram um perfil sociodemográfico semelhante ao perfil populacional do estado de São Paulo,18 diferente do perfil de casos e população das regiões Norte e Nordeste, o que pode ter ocasionado a menor proporção de casos de síndrome congênita pelo vírus Zika no estado.17
Apesar de a maioria das gestantes sintomáticas terem passado por sete ou mais consultas de pré-natal, e assim cumprir a recomendação do Ministério da Saúde,19 conforme observado em outros estudos nacionais,5,14,15 continua-se a ter gestantes sem consulta ou com uma a três consultas de acompanhamento da gestação. Diante da transcendência da infecção pelo vírus Zika entre o binômio mãe e filho, é sobretudo recomendável que 100% das gestantes realizem as consultas preconizadas.
A maioria dos casos confirmados de Zika ocorreu no segundo e no terceiro trimestres de gestação. Entretanto, ao se analisar o trimestre da infecção pelo vírus Zika em crianças nascidas com microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central, notou-se que a maioria delas foi infectada no primeiro trimestre da gravidez. Este achado é compatível com a literatura, uma vez que a infecção no primeiro trimestre implica maior risco de microcefalia e outras alterações no sistema nervoso central dos conceptos, assim como casos mais graves.20
O principal sinal da infecção entre as gestantes foi o exantema, e os sintomas mais comuns foram mialgia, cefaleia e prurido; a febre não foi um sintoma frequente, perfil semelhante ao identificado em outros trabalhos.8,21 Esta caracterização impacta diretamente na suspeição de infecção pelo vírus Zika, uma vez que a restrição na definição de caso, como sendo uma doença febril, pode atrasar o diagnóstico e consequentemente seu tratamento.
Em relação à ocorrência do desfecho como ‘aborto’ ou ‘natimorto’, não houve diferença estatística entre os grupos das gestantes infectadas pelo vírus Zika e das descartadas para a infecção. Em um estudo de coorte, tampouco foi observada diferença significativa na taxa de perda fetal, entre mães sintomáticas positivas e negativas para o vírus Zika.8 O mesmo não se pode dizer da presença de malformações, para as quais essa diferença foi estatisticamente significativa - seis vezes maior nos casos confirmados -, o que corrobora a característica do vírus Zika de causar múltiplas malformações, e sua predileção pelas células neurais.22
Neste estudo, a proporção de microcefalia e/ou alteração do sistema nervoso central em recém-nascidos de gestantes positivas para o vírus Zika foi de aproximadamente 4,0%, semelhante à encontrada em estudos nacionais8,23 e internacionais.10,24,25 No entanto, ela difere de achados de estudos realizados no Nordeste, onde é quatro vezes maior (16,3%),4 demonstrando um comportamento diferente da doença segundo regiões do país. A partir dessa caracterização, faz-se necessário desenvolver estudos que aprofundem o conhecimento dessas diferenças regionais e seu impacto na saúde da população, haja vista o país dispor de grande diversidade territorial, populacional, social, cultural e econômica. A infecção pelo vírus Zika na gestação é apenas parte de um grupo de doenças infecciosas possíveis de serem transmitidas ao feto e causarem microcefalia. Outras infecções congênitas (como citomegalovírus, rubéola, herpes ou toxoplasmose)26 são potenciais causadoras de microcefalia e alterações do sistema nervoso central, daí a necessidade de estudos que avaliem outros fatores que não apenas a infecção pelo vírus Zika, no que se refere às malformações. No presente trabalho, essa avaliação ficou limitada, devido à pequena porcentagem de gestantes que tinham registro de resultado para STORCH na notificação de Zika. No entanto, observou-se que uma a cada 20 mulheres apresentava coinfecção - infecção simultânea pelo vírus Zika e por STORCH -, resultado semelhante aos de estudos realizados em territórios franceses,9 e de um estudo realizado com dados secundários de todo o Brasil.4
Em São Paulo, o vírus Zika teve maior impacto no nordeste do estado,27 possivelmente por se tratar de uma região com alto índice de infestação do Aedes aegypti e onde as condições climáticas são mais favoráveis à propagação do mosquito.28 A geolocalização dos casos de Zika em São Paulo permite um direcionamento estratégico das ações de controle da doença no estado.
Os resultados encontrados contribuem para a caracterização clínica e epidemiológica das gestantes possivelmente expostas ao vírus Zika, bem como a descrição do desfecho de sua gestação, seja de evolução para aborto e/ou natimorto, seja de caracterização das condições clínicas do recém-nascido exposto ao vírus (microcefalia, alterações do sistema nervoso central ou recém-nascido saudável). Os achados apresentados também possibilitam a identificação de regiões de maior ocorrência e circulação do vírus Zika dentro do estado de São Paulo.
Recomenda-se a realização de mais estudos em São Paulo, tendo por objetivo acompanhar essas crianças com malformações decorrentes da infecção pelo vírus Zika na gestação, e avaliar as consequências dessas malformações nos âmbitos familiar, social, psicológico e financeiro. Recomenda-se, ainda, a avaliação do impacto das epidemias de dengue em São Paulo e o risco de malformações pela infecção do vírus Zika. Por exemplo, um estudo de alcance nacional sugere uma relação inversa entre epidemia de dengue e risco de malformações em decorrência desse vírus no Brasil.29
Conclui-se que a caracterização da transmissão do vírus Zika em gestantes no estado de São Paulo pode subsidiar o direcionamento de ações da Saúde Pública para regiões e locais com maior risco de transmissão da infecção e, consequentemente, contribuir para a prevenção de malformações resultantes da transmissão vertical do vírus.