Contribuições do estudo
Principais resultados
A adoção de protocolos de biossegurança pode ter contribuído para a redução dos atendimentos odontológicos após o surgimento da COVID-19. No entanto, a disponibilização dos EPIs e a implementação da teletriagem nas UBS podem ter minimizado essa redução.
Introdução
Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surgimento da pandemia de COVID-19.1 Conforme os números disponibilizados pela Universidade Johns Hopkins, até o início de fevereiro do ano de 2022, a pandemia de COVID-19 afetou 386.891.974 pessoas e ocasionou 5.707.157 óbitos em todo o mundo. O Brasil é um dos países mais atingidos pela pandemia, sendo o terceiro com maior número de casos e o segundo com maior número de mortes, no ranking mundial.2
A propagação do vírus SARS-CoV-2 pela geração de aerossóis durante a realização de alguns procedimentos odontológicos torna a odontologia uma das profissões de maior risco para a disseminação da COVID-19, havendo risco de contágio tanto para o profissional como para os usuários do atendimento, mediante infecção cruzada.3 Por essa razão, a American Dental Association recomendou que os procedimentos odontológicos eletivos fossem adiados e que apenas os atendimentos de urgência ocorressem.4
No Brasil, o Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Conselho Federal de Odontologia (CFO) e as organizações de classe odontológicas também recomendaram a limitação dos procedimentos odontológicos eletivos durante a pandemia.5,6 Algumas dessas reduções já estão documentadas na literatura. Um levantamento realizado no início da pandemia, envolvendo cirurgiões-dentistas brasileiros que atuam nos setores público e privado, mostrou uma redução de 95% nos procedimentos odontológicos, com maior restrição da atividade nas regiões mais afetadas pela pandemia.6 Estudos que avaliaram o número de procedimentos odontológicos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), com base nos dados disponíveis no Departamento de Informática do SUS (Datasus), demonstraram uma redução de quase 90% nos atendimentos odontopediátricos,7 66,7% na confecção de próteses8 e 68,8% nas biópsias bucais9 durante a pandemia, em relação ao período anterior à COVID-19.
Além das medidas de restrição dos atendimentos odontológicos eletivos, outra recomendação foi o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) adicionais, que não faziam parte da rotina de atendimentos anterior à pandemia, mas passaram a ser indicados visando conter a transmissão da COVID-19 no ambiente odontológico. Conforme os manuais de biossegurança, no cenário da pandemia de COVID-19, os profissionais devem realizar os atendimentos odontológicos utilizando avental impermeável de fechamento traseiro, touca, luvas, respirador facial (máscara N95 ou similares), máscara cirúrgica, óculos e protetores faciais (face shield).5,10 No entanto, a alta demanda e o aumento dos preços dos EPIs, além da destinação prioritária de uso desses equipamentos aos profissionais envolvidos na assistência médica de individuos com COVID-19, provocou escassez destes equipamentos, o que pode ter afetado as atividades odontológicas em nível global.11
Para diminuir o impacto à saúde bucal da população, dada a redução dos atendimentos odontológicos durante a pandemia de COVID-19, principalmente entre os indivíduos mais vulneráveis, torna-se necessário um diagnóstico situacional, para definir estratégias de enfrentamento do problema. Apesar do grande número de publicações sobre a COVID-19 em 2020, não foram encontrados estudos que buscassem avaliar os fatores associados à redução do número de atendimentos odontológicos realizados nos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil. O objetivo deste trabalho foi analisar os fatores associados à redução do número de atendimentos odontológicos realizados na APS, no Brasil, durante a pandemia de COVID-19.
Métodos
Este estudo foi reportado de acordo com as recomendações do Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES).12 Trata-se de um estudo transversal, realizado com cirurgiões-dentistas atuantes na APS do Brasil, ou seja, aqueles que possuem vínculo com alguma UBS do serviço público de saúde e responderam um questionário online.
Dados recentes indicam que o Brasil tem mais de 360 mil cirurgiões-dentistas, dos quais aproximadamente 26,0% (95 mil) atuam no setor público de saúde,13 nos diferentes níveis de atenção, ainda que distribuídos de forma desigual entre as grandes regiões geopolíticas nacionais: a maior parte, nos estados de São Paulo (28,0%), Minas Gerais (12,0%) e Rio de Janeiro (9,4%), e o menor percentual em Roraima (0,3%).13 O tamanho da amostra foi calculado com a utilização do software OpenEPI©. Considerando-se uma prevalência de 50,0%, alfa de 5,0% e 30,0% de perdas, seria necessária a participação de 635 cirurgiões-dentistas das diferentes regiões do Brasil para estimar as prevalências propostas no estudo, cuja população-alvo consistiu de cirurgiões-dentistas vinculados às UBS. Os critérios de participação no estudo foram: ser cirurgião-dentista, atuar em UBS do Brasil e estar trabalhando de forma presencial no momento da obtenção dos dados do estudo.
O recrutamento dos cirurgiões-dentistas ocorreu pelas mídias sociais. A divulgação do estudo aconteceu por meio do compartilhamento do link de acesso ao questionário pelos pesquisadores, na página oficial do projeto no Instagram® (@saude.bucal_covid19) e em grupos do Facebook®, mais especificamente ‘Odontologia do Brasil’ e ‘Odontologia e o SUS’. Além disso, foram enviados e-mails de divulgação para um total de 21.404 cirurgiões-dentistas que trabalham no setor público.
A coleta dos dados contou com a elaboração de um questionário autoaplicável online, sobre as condições de atendimento de saúde bucal nas UBS após o surgimento da COVID-19. O instrumento foi hospedado na plataforma Google® Forms durante o período de 28 de julho a 17 de agosto de 2020. Foram realizadas estratégias para verificar a consistência dos dados obtidos no estudo. Inicialmente, organizou-se um questionário autoaplicável, no qual os participantes respondiam a todas as questões referentes a sua UBS. Além disso, a seleção de uma opção de resposta foi aplicada para todas as questões, e os itens forneciam uma opção de não resposta, como ‘não aplicável’. Deste modo, nenhuma questão ficou sem resposta. Por fim, a verificação das duplicatas dos questionários foi realizada com a conferência dos e-mails fornecidos pelos participantes durante a pesquisa. Nos casos em que foram localizados dois ou mais questionários cadastrados por um mesmo endereço de e-mail, foi considerado o último questionário respondido.
Os itens do questionário foram pré-testados por dez cirurgiões-dentistas que atuam no setor público, lotados em serviços de média complexidade. Cada um dos participantes avaliou a clareza das perguntas do questionário. Os avaliadores responderam ao questionário e registraram o tempo de preenchimento, e apontaram as questões a serem revistas pelos pesquisadores. O tempo médio de preenchimento do questionário foi de 12 minutos.
O questionário foi elaborado em cinco blocos, separados de acordo com os temas elencados a seguir.
Região do Brasil onde atua: Norte; Nordeste; Centro-Oeste; Sudeste; Sul.
-
Medidas de monitoramento e protocolos de biossegurança adotados pela UBS após o aparecimento da COVID-19:
- implementação do serviço de teletriagem (sim; não); e
- adoção de novos protocolos de biossegurança (sim; não).
-
Informações relacionadas aos EPIs utilizados pelos profissionais de odontologia:
- disponibilidade de todos os EPIs obrigatórios para a realização do atendimento odontológico, indicados pelos protocolos de biossegurança após o aparecimento da COVID-19, que antes não faziam parte das práticas odontológicas (máscara N955/PFF2, avental descartável e face shield), considerado-se ‘sim’ quando disponibilizados os três EPIs e ‘não’ quando pelo menos um dos EPIs não era disponibilizado); e
- número suficiente de máscaras cirúrgicas, luvas e óculos de proteção (EPIs obrigatórios), de uso frequente, utilizados na prática odontológica antes do aparecimento da COVID-19; para cada EPI, o participante respondia a pergunta: A quantidade de ‘nome do EPI’ foi suficiente para todos os atendimentos no último mês? (sim; não), sendo considerada suficiente quando o participante respondeu ‘sim’ para todos os EPIs, e insuficiente quando o participante respondeu ‘não’ para pelo menos um dos EPIs.
-
Informações relacionadas ao cirurgião-dentista:
- observa risco de infecção da COVID-19 durante o atendimento odontológico (sim; não);
- já foi diagnosticado com COVID-19 (sim; não); e
- já realizou o teste para COVID-19 (sim; não).
O desfecho analisado no estudo foi a redução proporcional do número de atendimentos odontológicos realizados durante a pandemia de COVID-19, na comparação com o período anterior a seu surgimento. A informação do desfecho foi obtida mediante a proposição das seguintes perguntas: Quantos pacientes em média, por turno, eram atendidos na sua UBS antes do aparecimento da COVID-19? e Quantos pacientes em média, por turno, estão sendo atendidos na sua UBS após o aparecimento da COVID-19? As respostas foram coletadas de forma numérica discreta, e posteriormente, transformadas em duas categorias para fins de análise: redução abaixo de 50,0%; redução acima de 50,0%.
A análise estatística dos dados foi processada utilizando-se o software Stata 15.0 (StataCorp LP; College Station, TX, USA). Inicialmente foram realizadas análises descritivas, por meio de frequências absolutas e relativas, média e desvio-padrão (DP). A associação do desfecho (redução dos atendimentos odontológicos após o surgimento da pandemia de COVID-19) com as variáveis de exposição estudadas foi analisada pelo teste qui-quadrado de Pearson. Em seguida, as razões de prevalências (RP) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram estimados pela análise de regressão de Poisson, com ajuste de variância robusta. O ajuste do modelo foi feito pela técnica backward stepwise, tendo-se mantido as variáveis com nível de associação de p-valor ≤0,20. A seleção das variáveis foi feita com base no modelo teórico hierarquizado apresentado na Figura 1A. Para todos os testes estatísticos, considerou-se um nível de significância de 5%.
O estudo recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas em 29 de junho de 2020, por meio do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 33837220.4.00005317. Todos os participantes foram esclarecidos quanto aos objetivos do estudo e lhes foi garantido o sigilo das informações prestadas. Aqueles que concordaram em participar tiveram acesso a uma versão digital do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ao questionário propriamente dito, que só poderia ser lido e respondido após seu ‘aceite’ em participar.
Resultados
Responderam ao questionário 958 cirurgiões-dentistas, no período de 28 de julho a 17 de agosto de 2020. A Tabela 1 apresenta as características desses cirurgiões-dentistas que realizavam atendimento odontológico nas UBS do Brasil, no período.
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Região do Brasil | 958 | |
Norte | 29 | 3,0 |
Nordeste | 180 | 18,8 |
Centro-Oeste | 53 | 5,5 |
Sudeste | 194 | 20,3 |
Sul | 502 | 52,4 |
Todos os EPIsa preconizados pelos novos protocolos são disponibilizadosb | 951 | |
Não | 219 | 23,0 |
Sim | 732 | 77,0 |
Os EPIsa da rotina clínica anterior à pandemia são suficientesc | 830 | |
Não | 210 | 25,3 |
Sim | 620 | 74,7 |
Risco de infecção pelo SARS-Cov-2 para o profissional | 958 | |
Sim | 897 | 93,6 |
Não | 61 | 6,4 |
UBSd tem teletriagem para COVID-19 | 958 | |
Sim | 229 | 23,9 |
Não | 729 | 76,1 |
UBSd adotou novos protocolos para COVID-19 | 880 | |
Sim | 607 | 69,0 |
Não | 273 | 31,0 |
O profissional já foi diagnosticado com COVID-19 | 925 | |
Sim | 47 | 5,1 |
Não | 878 | 94,9 |
O profissional já fez teste para COVID-19 | 955 | |
Sim | 630 | 66,0 |
Não | 325 | 34,0 |
Redução de atendimentos odontológicos na APSe durante a pandemia de COVID-19 >50,0% | 958 | |
Não | 358 | 37,4 |
Sim | 600 | 62,6 |
a) EPIs: Equipamentos de proteção individual; b) EPIs preconizados pelos novos protocolos: máscara PFF2/N95, avental descartável e face shield; c) EPIs da rotina clínica anterior à pandemia: máscara cirúrgica, óculos de proteção e luva; d) UBS: Unidade Básica de Saúde; e) APS: Atenção Primária à Saúde.
Entre os respondentes, 502 (52,4%) eram da região Sul. Em relação aos EPIs, 219 (23,0%) profissionais relataram que não lhes foram disponibilizados os EPIs obrigatórios preconizados pelos novos protocolos de biossegurança de COVID-19 (máscara N95/PFF2, avental descartável e face shield), enquanto 210 (25,3%) informaram que os EPIs utilizados na prática odontológica de rotina, anteriormente à pandemia de COVID-19, não eram suficientes para a realização dos atendimentos. Quanto ao risco de infecção pelo vírus SARS-Cov-2, 897 (93,6%) referiram existir risco de infecção do profissional de odontologia durante o atendimento. No momento da entrevista, 878 (94,9%) informaram que não foram diagnosticados com COVID-19 e 630 (66,0%) relataram terem sido testados para SARS-Cov-2 pelo menos uma vez. Quanto à adoção pela UBS de medidas de monitoramento e de protocolos de biossegurança para a COVID-19, 729 (76,1%) informaram a inexistência de teletriagem e 607 (69,0%) reportaram adoção de novos protocolos de biossegurança. Um total de 600 (62,6%) cirurgiões-dentistas relataram redução de mais de 50,0% nos atendimentos por turno da UBS, na comparação com o período anterior ao início da pandemia (Tabela 1).
A Tabela 2 mostra as médias de usuários atendidos por turno e por região do Brasil, antes e durante a pandemia de COVID-19. A maior média de indivíduos atendidos por turno antes da pandemia foi de 10,6 (DP = 5,9), na região Norte, e a menor, de 7,9 (DP = 3,8) indivíduos na região Sul. Durante a pandemia, a maior média de indivíduos atendidos por turno foi de 4,5 (DP = 4,6), na região Nordeste, e a menor média, de 2,9 (DP = 1,9) na região Centro-Oeste.
Região do Brasil | Média de atendimentos odontológicos na APSa por turno | |||
---|---|---|---|---|
Antes da pandemia de COVID-19 | Durante da pandemia de COVID-19 | |||
Média (DPb) | p-valorc | Média (DPb) | p-valorc | |
Norte | 10,6 (5,9) | <0,001 | 3,9 (3,3) | <0,001 |
Nordeste | 10,4 (5,9) | 4,5 (4,6) | ||
Centro-Oeste | 9,8 (7,6) | 2,9 (1,9) | ||
Sudeste | 9,9 (6,5) | 3,6 (2,5) | ||
Sul | 7,9 (3,8) | 3,2 (2,2) |
a) APS: Atenção Primária à Saúde; b) DP: Desvio-padrão; c) Análise de variância (Anova).
A Tabela 3 mostra os resultados da análise bivariada da associação das variáveis de exposição com a redução do número de atendimentos odontológicos após o início da pandemia de COVID-19. Foram observadas diferenças estatisticamente significativas com região do Brasil (p = 0,040), disponibilização de todos os EPIs obrigatórios indicados pelos novos protocolos de biossegurança após o aparecimento da COVID-19 (p = 0,035), disponibilização de EPIs na rotina anterior à COVID-19 (p = 0,043) e adoção de novos protocolos de biossegurança pela UBS (p = 0,027). A análise dos atendimentos odontológicos na APS, por região do Brasil, mostrou que 66,7% (IC95% 46,9;81,9) dos entrevistados na região Norte, 59,3% (IC95% 51,9;66,3) na região Nordeste, 82,3% (IC95% 69,3;90,6) na região Centro-Oeste, 64,2% (IC95% 56,9;70,6) na região Sudeste e 64,8% (IC95% 60,5;69,0) na região Sul reportaram redução superior a 50% no número de atendimentos, após o surgimento da pandemia (Tabela 3).
Variáveis | Redução de atendimentos odontológicos na APSa durante a pandemia de COVID-19 >50,0% (%) | IC95%b | p-valorc |
---|---|---|---|
Região do Brasil (n = 958) | |||
Norte | 66,7 | 46,9;81,9 | 0,040 |
Nordeste | 59,3 | 51,9;66,3 | |
Centro-Oeste | 82,3 | 69,3;90,6 | |
Sudeste | 64,2 | 56,9;70,6 | |
Sul | 64,8 | 60,5;69,0 | |
Todos os EPIsd preconizados pelos novos protocolos são disponibilizadose (n = 951) | |||
Não | 55,7 | 49,0;62,2 | 0,035 |
Sim | 47,1 | 43,9;51,2 | |
Os EPIsd da rotina clínica anterior à pandemia são suficientesf (n = 830) | |||
Não | 55,2 | 48,4;61,8 | 0,043 |
Sim | 47,1 | 43,9;51,1 | |
Risco de infecção pelo SARS-Cov-2 para o profissional (n = 958) | |||
Sim | 66,7 | 61,3;67,6 | 0,736 |
Não | 64,5 | 53,8;77,4 | |
UBS tem teletriagem para COVID-19 (n = 958) | |||
Sim | 64,9 | 57,2;69,9 | 0,761 |
Não | 63,8 | 61,3;69,9 | |
UBS adotou novos protocolos para COVID-19 (n = 880) | |||
Sim | 67,0 | 63,2;70,7 | 0,027 |
Não | 59,3 | 53,4;65,0 | |
O profissional já foi diagnosticado com COVID-19 (n = 925) | |||
Sim | 63,8 | 49,1;76,3 | 0,891 |
Não | 64,8 | 61,6;67,9 | |
O profissional já fez teste para COVID-19 (n = 955) | |||
Sim | 65,8 | 61,9;69,4 | 0,352 |
Não | 62,7 | 57,1;67,9 |
a) APS: Atenção Primária à Saúde; b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; c) Teste qui-quadrado de Pearson; d) EPI: Equipamento de proteção individual; e) EPIs preconizados pelos novos protocolos: máscara PFF2/N95, avental descartável e face shield; f) EPIs da rotina clínica anterior à pandemia: máscara cirúrgica, óculos de proteção e luva.
A Tabela 4 apresenta as razões de prevalências e seus respectivos intervalos de confiança brutos e ajustados, estimados por meio da regressão de Poisson, da associação entre a redução dos procedimentos odontológicos na APS, durante a pandemia de COVID-19, e as variáveis estudadas. Na análise de regressão ajustada, a disponibilidade de todos os EPIs obrigatórios preconizados pelos novos protocolos de biossegurança (RP = 0,94; IC95% 0,89;0,99) e a implementação do serviço de teletriagem (RP = 0,90; IC95% 0,85;0,96) revelaram-se fatores de proteção para a redução acima de 50% no número de atendimentos odontológicos durante a pandemia. A adoção de protocolos de biossegurança no atendimento odontológico pela UBS mostrou ser um fator de risco para a redução no número de atendimentos odontológicos (acima de 50%) (RP = 1,04; IC95% 1,01;1,07), embora essa associação tenha sido fraca.
Variáveis | Análise bruta | p-valor | Análise ajustadaa | p-valor | ||
---|---|---|---|---|---|---|
RPb | IC95%c | RPb | IC95%c | |||
Região do Brasil (n = 928) | ||||||
Nordeste | 1,00 | 0,670 | 1,00 | 0,670 | ||
Norte | 1,06 | 0,93;1,20 | 1,06 | 0,93;1,20 | ||
Centro-Oeste | 1,06 | 0,96;1,18 | 1,06 | 0,96;1,18 | ||
Sudeste | 1,02 | 0,95;1,09 | 1,02 | 0,95;1,09 | ||
Sul | 1,01 | 0,95;1,07 | 1,01 | 0,95;1,07 | ||
Todos os EPIsd preconizados pelos novos protocolos são disponibilizadose (n = 951) | ||||||
Não | 1,00 | 0,020 | 1,00 | 0,042 | ||
Sim | 0,94 | 0,90;0,99 | 0,94 | 0,89;0,99 | ||
Os EPIsd da rotina clínica anterior à pandemia são suficientesf (n = 830) | ||||||
Não | 1,00 | 0,026 | 1,00 | 0,050 | ||
Sim | 0,94 | 0,89;0,90 | 0,95 | 0,90;1,00 | ||
Risco de infecção pelo SARS-Cov-2 para o profissional (n = 958) | ||||||
Não | 1,00 | 1,00 | 0,995 | 1,00 | 0,383 | |
Sim | 1,00 | 0,91;1,09 | 0,94 | 0,84;1,06 | ||
UBSg tem teletriagem (n = 958) | ||||||
Não | 1,00 | 0,012 | 1,00 | <0,001 | ||
Sim | 0,94 | 0,90;0,98 | 0,90 | 0,85;0,96 | ||
UBSg adotou protocolo (n = 907) | ||||||
Não | 1,00 | 0,007 | 1,00 | <0,001 | ||
Sim | 1,03 | 1,01;1,05 | 1,04 | 1,01;1,07 | ||
O profissional já foi diagnosticado com COVID-19 (n = 955) | ||||||
Não | 1,00 | 0,363 | 1,00 | 0,435 | ||
Sim | 0,95 | 0,86;1,05 | 0,95 | 0,85;1,06 | ||
O profissional já fez teste para COVID-19 (n = 955) | ||||||
Não | 1,00 | 0,575 | 1,00 | 0,604 | ||
Sim | 1,01 | 0,96;1,05 | 0,98 | 0,93;1,03 |
a) Análise ajustada pela técnica backward stepwise, sendo mantidas no modelo todas as variáveis com p-valor menor ou igual a 0,2. A escolha das variáveis incluídas foi baseada no modelo de análise hierarquizado descrito na Figura 1A; b) RP: Razão de prevalências; c) IC95%: Intervalo de confiança de 95%; d) EPIs: Equipamentos de proteção individual; e) EPIs disponibilizados: máscara PFF2/N95, avental descartável e face shield; f) EPIs anteriores: máscara cirúrgica, óculos de proteção e luva; g) UBS: Unidade Básica de Saúde.
A Figura 1B apresenta os percentuais de cirurgiões-dentistas que relataram disponibilidade, nas UBS, de EPIs preconizados pelos novos protocolos de biossegurança, além do percentual de cirurgiões-dentistas que relataram quantidade suficiente de EPIs para uso na rotina odontológica da UBS antes da pandemia de COVID-19. Observa-se que todos os EPIs utilizados na rotina do atendimento odontológico antes da pandemia foram considerados suficientes pela maioria dos cirurgiões-dentistas, embora 200 (22,9%) desses profissionais tenham relatado disponibilidade insuficiente de máscaras cirúrgicas após o surgimento da pandemia. Em relação aos EPIs preconizados pelos novos protocolos de biossegurança para atendimento clínico-odontológico, a maioria dos cirurgiões-dentistas relatou que os EPIs foram disponibilizados, porém 77 (8,0%) declararam que o face shield não foi disponibilizado para uso.
Discussão
Este é, possivelmente, o primeiro estudo a avaliar a redução do número de atendimentos odontológicos na APS durante a pandemia de COVID-19. Os resultados do estudo indicaram que as Secretarias de Saúde, com i) a disponibilização dos EPIs preconizados segundo os novos protocolos de biossegurança, para os cirurgiões-dentistas que atuam na APS, e ii) a implementação do serviço de teletriagem nas UBS, podem ter contribuído para minimizar a redução dos atendimentos odontológicos, após o início da pandemia.
O maior estudo epidemiológico no Brasil sobre a prevalência e progressão da COVID-19 (EPICOVID-19) mostrou que existem várias epidemias ocorrendo ao mesmo tempo, no Brasil: se algumas regiões apresentaram um número elevado de casos, noutras os casos cresceram em menor proporção e em momentos distintos.14 Entretanto, neste estudo, não foi identificada associação entre a redução dos atendimentos odontológicos na APS e as regiões do Brasil nas quais os cirurgiões-dentistas atuavam. Essas diferenças podem ser explicadas pelo fato de a maioria dos participantes serem da região Sul, e pelo período no qual a coleta de dados ocorreu, durante os meses de julho e agosto de 2020, quando a pandemia de COVID-19 nessa região registrava menor número de casos, comparados aos casos das demais regiões do país.15 Um estudo realizado com cirurgiões-dentistas dos serviços públicos e privados no Brasil, em maio de 2020, encontrou maior redução das atividades odontológicas nas regiões mais afetadas pela pandemia.6
A redução dos atendimentos odontológicos (acima de 50%) na APS, após o início da pandemia, esteve associada ao relato, pelos cirurgiões-dentistas, da indisponibilidade de todos os novos EPIs e da quantidade insuficiente de EPIs na rotina da assistência odontológica nas UBS. Destaca-se que, se o número de atendimentos odontológicos não fosse reduzido, a escassez de EPIs teria representado um problema ainda mais grave. Antes da pandemia de COVID-19, países em desenvolvimento já enfrentavam dificuldades no acesso, indisponibilidade e escassez de equipamentos de proteção individual, levando a uma baixa adesão às diretrizes de biossegurança.16 Todavia, no Brasil, cabe ressaltar a importância da implementação de políticas capazes de promover a produção de insumos essenciais estratégicos, como os EPIs, principalmente em emergências de saúde mais graves, como é o caso de uma pandemia.
A pandemia de COVID-19 provocou o aumento na demanda mundial por EPIs e, com isso, elevação nos preços, escassez e utilização inadequada desses itens.17-21 Ademais, o fornecimento dos EPIs, como respiradores N95/PFF2 e máscaras cirúrgicas, foi priorizado para os profissionais responsáveis pela assistência direta àqueles que contraíram a COVID-19.22 Este problema fez com que entidades nacionais e internacionais de saúde publicassem orientações sobre a utilização, reutilização e uso prolongado dos respiradores de tipo N95/PFF2.23,24 O uso prolongado do EPIs parece ser uma estratégia eficaz e de baixo custo, para superar a escassez global de respiradores.25 Esse cenário de dificuldade na compra e fornecimento dos EPIs pode ter sido um dos motivos da redução no número de atendimentos odontológicos, observada neste estudo.
A disponibilidade de todos os EPIs novos mostrou efeito protetor em relação ao desfecho estudado. De acordo com Simms et al. (2020),21 a percepção pelo profissional de utilizar equipamento de proteção inadequado esteve significativamente associada a sintomas de desordem na saúde mental, prováveis desordens de estresse pós-traumático, pior saúde global e maior relato de problemas emocionais. Estes problemas podem gerar impactos negativos no desempenho das funções de trabalho com segurança. Uma revisão das diretrizes de prevenção e controle de infecções respiratórias revelou que a falta de EPIs representou um sério problema para profissionais e gestores, sendo necessário ajustar o volume de suprimentos de acordo com a continuidade dos surtos de infecção.26 Provavelmente, a disponibilidade dos novos EPIs contribui para maior confiança e segurança dos cirurgiões-dentistas da APS na continuidade dos atendimentos odontológicos, de forma a explicar o efeito protetor na redução dos atendimentos odontológicos na UBS observado neste trabalho.
A adoção de protocolos de biossegurança pela UBS esteve associada à redução dos atendimentos odontológicos diários, acima de 50,0%, em relação ao número de atendimentos realizados antes da pandemia. Os protocolos internacionais e nacionais recomendam medidas capazes de reduzir a procura dos usuários por esses serviços de saúde,4,5,27 a exemplo da prevenção de procedimentos geradores de gotas ou aerossóis, destacando-se os procedimentos de rotina na prática odontológica, como tartarectomia, acesso endodôntico e limpeza de cavidades. Além disso, existem recomendações para que os cirurgiões-dentistas tentem realizar o tratamento do indivíduo no menor número de consultas possível, com restrição também do número de profissionais durante os procedimentos, o que pode acarretar diminuição dos atendimentos que necessitem ser realizados a quatro mãos.28,29 Logo no início da pandemia, em março de 2020, o Ministério da Saúde recomendou aos cirurgiões-dentistas de todo Brasil adiarem os tratamentos eletivos e concentrarem-se no atendimento dos casos de urgência e emergência, outro fato que pode ter influenciado a redução do número de atendimentos encontrada neste estudo, apesar de a coleta dos dados da pesquisa ter-se realizado entre o quinto e o sexto mês após o início da pandemia.4,28
Com base na experiência adquirida com o surto anterior de SARS-CoV e nos dados disponíveis sobre esse vírus e sua doença associada, a COVID-19, algumas medidas específicas têm sido sugeridas para o tratamento de individuos odontológicos neste período epidêmico.23,24,27 Antes de o usuário agendar uma consulta, protocolos recomendam que seja realizada uma teletriagem, por internet ou por telefone, incluindo perguntas sobre a história clínica e a presença de sintomas gripais como febre, tosse seca, dor de garganta, dificuldades respiratórias, dor de cabeça ou dores musculares.4,10 Se algum desses sintomas for identificado, o indivíduo com suspeita de COVID-19 deve ser orientado a fazer isolamento domiciliar imediato e entrar em contato, o mais rápido possível, com o serviço de saúde, conforme recomendam os Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos.10 O serviço de teletriagem, que representou um fator contributivo para a redução dos atendimentos, mostra, com segurança, ser possível manter o número de atendimentos em níveis semelhantes aos do período anterior à pandemia. A teletriagem permite conhecer, com clareza, a natureza da consulta, qual seja, atendimento de emergência ou atendimento de rotina.
A principal limitação deste estudo consistiu na impossibilidade de obter uma amostra representativa dos cirurgiões-dentistas brasileiros atuantes na APS do Brasil, evidenciada pela elevada proporção de participantes que atuavam na região Sul (cerca de 50%). Destaca-se, porém, que foram realizados esforços dos pesquisadores para contatar toda a população de interesse, tendo-se encaminhado e-mails a todos os cirurgiões-dentistas da APS e divulgado o projeto junto aos gestores municipais, universidades e grupos de odontologia nas redes sociais. Contudo, muitos cirurgiões-dentistas podem não ter respondido à pesquisa por falta de acesso à internet em localidades mais afastadas, ou por desconhecerem que a pesquisa estava em curso.
Apesar das limitações, este estudo levantou dados por meio de um questionário online, em um momento no qual não havia possibilidade de realizar pesquisas presenciais. Assim, foi possível prover informações sobre os efeitos da COVID-19 nos atendimentos odontológicos da APS durante a primeira onda da pandemia no Brasil, e identificar as dificuldades encontradas pelos cirurgiões-dentistas e as ações implementadas pelos gestores das Secretarias de Saúde do país frente à insegurança sobre o modo de transmissão da doença, a falta de EPIs e a necessidade de manter os atendimentos de saúde bucal para a população.
Os resultados apresentados sugerem que a pandemia de COVID-19 ocasionou uma redução de mais de 50% nos atendimentos realizados pela maioria dos cirurgiões-dentistas atuantes na APS, no Brasil. Em virtude desse problema, é possível que ocorra demanda reprimida de usuários com diferentes necessidades de atendimento odontológico e a alteração do perfil daqueles que procuram o serviço, devido ao atraso ou não realização dos atendimentos. Vale ressaltar que as orientações e recomendações divulgadas pelas autoridades de saúde, com o surgimento da COVID-19, nortearam as adaptações necessárias nos serviços de saúde e, assim, permitiram a manutenção dos atendimentos, ainda que sob restrições, contribuindo para a redução do impacto da pandemia de COVID-19 nos indicadores de saúde bucal da população brasileira.