INTRODUÇÃO
O vírus da hepatite B (VHB) possui distribuição mundial e constitui um importante problema de saúde pública. Estima-se que mais de 2 bilhões de pessoas apresentam evidências sorológicas de infecção passada ou presente pelo VHB e que 350 milhões são portadores crônicos1. Cerca de 0,5 a 1,2 milhões de pessoas morrem anualmente em virtude de complicações ocasionadas por esse vírus2.
A epidemiologia da infecção pelo VHB tradicionalmente tem sido descrita em três categorias de endemicidade: alta, intermediária e baixa, dependendo da proporção da população soropositiva para HBsAg3. Aproximadamente 45% da população mundial vive em áreas consideradas altamente endêmicas para o vírus (8% da população são HBsAg positivas), 43% vive em áreas de endemicidade intermediária para o VHB (2-7% da população são HBsAg positivas) e 12% vive em áreas de baixa endemicidade (>2% da população são HBsAg positivas)1.
No Brasil, estima-se que aproximadamente 15% da população apresenta evidências sorológicas de contato com o vírus e os casos crônicos devem corresponder a 1%4. Em relação ao Estado de Rondônia, os dados mais recentes do Ministério da Saúde e do Programa Nacional das Hepatites Virais mostram que no ano de 2010 foram notificados 345 casos de hepatite B5. No mesmo ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística6 registrou uma população total de 1.562.409 habitantes. Isso permite estimar a taxa de detecção do VHB em Rondônia em 22,1 (por 100.000 habitantes), sendo a segunda maior taxa da Região Norte no período.
Embora Rondônia seja classificado como área hiperendêmica para as hepatites virais, os dados de prevalência são escassos e fragmentados, coletados por alguns poucos estudos que devem ser complementados. Existem vários fatores que podem contribuir para determinar esta endemicidade: (i) primeiramente, o desconhecimento da verdadeira magnitude local do problema, pois estudos realizados em Estados vizinhos, como o Acre e o Amazonas, não mostram os mesmos fatores epidemiológicos do Estado objeto do presente estudo; (ii) outro fator é a falta de um estudo amplo de base populacional que possa substanciar essa questão. Nesse sentido, este trabalho visa contribuir para o esclarecimento de alguns destes interrogantes, por meio da análise da prevalência da infecção pelo VHB em comunidades ribeirinhas próximas a grandes empreendimentos em andamento no rio Madeira, que atraíram milhares de trabalhadores diretos e indiretos. Como questão de saúde pública, o conhecimento da epidemiologia e prevalência da doença é fundamental para nortear as políticas públicas de saúde frente às grandes obras civis na Amazônia.
MATERIAIS E MÉTODOS
ÁREA DE ESTUDO
Trata-se de um inquérito soroepidemiológico de corte transversal, analítico-observacional, realizado em duas comunidades ribeirinhas do Município de Porto Velho, Estado de Rondônia, denominadas Cachoeira do Teotônio e Vila Amazonas, localizadas às margens direita e esquerda do rio Madeira, com população de 522 e 253 habitantes, respectivamente (Figura 1). Ambas as localidades foram diretamente atingidas pela construção da usina hidrelétrica (UHE) de Santo Antônio, iniciada em 2008. Essas localidades já foram objeto de estudos anteriores, sobre as quais foi feita uma descrição detalhada7,8,9.
INFORMAÇÕES EPIDEMIOLÓGICAS
No momento da coleta das amostras biológicas foram aplicados dois documentos epidemiológicos, ambos estruturados, sendo um Questionário Epidemiológico Familiar (QEF) e outro denominado Questionário Epidemiológico Individual (QEI), nos quais foram englobadas diversas variáveis como: identificação, sexo, idade, tempo de moradia na região, condições sociais de moradia, histórico de vacinação para hepatite B, histórico de infecção pelo VHB na família, uso de preservativo em relações sexuais, compartilhamento de utensílios de higiene pessoal, injeção por curioso (aquele que relatou experiência de droga ilícita injetável uma única vez), transfusão sanguínea, dentre outras variáveis. Para permitir análise epidemiológica de vacinas, os participantes foram divididos por gênero e grupos etários.
AMOSTRAS BIOLÓGICAS E ASPECTOS ÉTICOS
As amostras biológicas utilizadas no presente estudo foram constituídas de sangue periférico dos participantes, obtidas após seu prévio consentimento, coletadas no período de abril de 2008 a agosto de 2010. Logo após a coleta, o soro foi separado dos elementos figurados do sangue por centrifugação e enviado para análise de marcadores sorológicos do VHB. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos do Centro de Pesquisa em Medicina Tropical (CEP-CEPEM), possuindo os registros de números 070/2008 e 047/2011.
MARCADORES SOROLÓGICOS DO VHB
Foram determinados os seguintes marcadores sorológicos para a hepatite B: HBsAg, anti-HBsAg e anti-HBc total, empregando-se os testes imunoenzimáticos - ELISA (DiaSorin S.A.: anti-HBc total: ETI-AB-Corek PLUS; HBsAg: ETI-MAK-4; anti-HBc 16 IgM: ETI-CORE-IGMK PLUS, Madrid, Espanha; Organon Teknika: anti-HBs, Boxtel, Holanda).
ANÁLISES ESTATÍSTICAS
Para a análise estatística, foram utilizados os softwares Epi Info™ versão 3.5.2, e GraphPad Prism® versão 5.0 para teste t de Student e Mann Whitney, com valor de significância p < 0,05. Para análise de ocorrência das variáveis categóricas, foram utilizadas tabelas de contingência 2x2, aplicando-se o teste qui-quadrado com correção de Yates para comparar as proporções, quando aplicável.
RESULTADOS
PERFIL DEMOGRÁFICO E PREVALÊNCIA DOS MARCADORES SOROLÓGICOS DO VHB
Todos os habitantes das duas localidades foram convidados a colaborar. Participaram da pesquisa 660 indivíduos (660/775, 85,2%) sendo 212 (32,1%) de Vila Amazonas e 448 (67,9%) residentes em Cachoeira de Teotônio (Tabela 1). A idade variou entre 8 meses e 88 anos (= 31,6 anos; σ = 20,0). A distribuição da população estudada, de acordo com o sexo e grupo etário, em Vila Amazonas e Cachoeira do Teotônio, apresentou diferença estatisticamente significante (p < 0,05). Para o marcador HBsAg, dos 12 resultados positivos, apenas um indivíduo foi do sexo feminino (8,3%). O anti-HBc total foi positivo para 212 (32,1%) indivíduos e o anti-HBs foi positivo para 239 (36,2%) indivíduos.
Localidade | Grupo etário* | Número de participantes | Anti-HBc total | HBsAg | Anti-HBs | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | ||
Vila Amazonas | 0-6 | 9 | 5 | 1 | - | - | - | 2 | 1 |
6-11 | 9 | 19 | - | - | - | - | 2 | 8 | |
11-16 | 13 | 11 | - | - | - | - | 5 | 2 | |
16-21 | 10 | 5 | 2 | - | 1 | - | 1 | 2 | |
21-31 | 11 | 9 | 1 | 2 | 1 | - | 1 | 5 | |
31-41 | 18 | 10 | 7 | 2 | 1 | - | 6 | 3 | |
41-51 | 24 | 13 | 10 | 7 | - | - | 9 | 4 | |
51-61 | 19 | 6 | 11 | 5 | 2 | - | 6 | 4 | |
≥ 61 | 16 | 5 | 12 | 2 | - | - | 4 | 2 | |
Total | 129 | 83 | 44 | 18 | 5 | - | 36 | 31 | |
Cachoeira do Teotônio | 0-6 | 7 | 15 | - | - | - | - | - | 4 |
6-11 | 31 | 20 | 1 | - | - | - | 6 | 5 | |
11-16 | 38 | 32 | - | - | - | - | 14 | 5 | |
16-21 | 18 | 23 | - | 1 | - | - | 6 | 11 | |
21-31 | 34 | 27 | 10 | 4 | 3 | - | 11 | 11 | |
31-41 | 32 | 32 | 20 | 15 | 1 | - | 13 | 10 | |
41-51 | 32 | 24 | 28 | 16 | 1 | 1 | 15 | 12 | |
51-61 | 27 | 10 | 20 | 7 | 1 | - | 17 | 9 | |
≥ 61 | 32 | 14 | 21 | 7 | - | - | 16 | 7 | |
Total | 251 | 197 | 100 | 50 | 6 | 1 | 98 | 74 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
* Na linha do grupo etário, a primeira idade é completa e a segunda incompleta.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
Foram classificados sorologicamente os resultados dos marcadores sorológicos e as respectivas combinações de cada participante (Tabela 2). Seguindo essa classificação, somaram-se 12 (1,8%) portadores crônicos, sendo 11 (91,6%) do sexo masculino, distribuídos entre 16 e 60 anos de idade, com maior ocorrência no grupo etário 21-31 anos (33,3%), como visto na figura 2.
Marcadores sorológicos reagentes | Classificação sorológica | Total | |
---|---|---|---|
N | % | ||
HBsAg + anti-HBc total | Portadores crônicos | 12 | 1,8 |
Anti-HBs | Vacinados | 118 | 17,9 |
Anti-HBc total | Isolados | 76 | 11,5 |
Anti-HBc total + anti-HBs | Imunes | 121 | 18,3 |
Anti-HBc total + anti-HBs+ HBsAg | Indeterminados | 8 | 1,2 |
Nenhum marcador reagente | Suscetíveis | 325 | 49,2 |
Total | 660 | 100,0 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
N: Número de participantes. Critérios para classificação sorológica10.
No geral, o anti-HBc total esteve presente em praticamente todas as faixas etárias, com exceção do grupo etário 11-16 anos. Os indivíduos do sexo masculino do grupo etário 41-51 anos foram mais predominantes em relação à presença do marcador de infecção.
Em relação ao anti-HBs, anticorpo que esteve presente em todas as faixas etárias, houve predomínio entre os indivíduos no grupo etário 41-51 anos, embora este marcador esteja, em sua maioria, associado ao anti-HBc total.
Se desconsiderados os resultados (n = 8) da classificação sorológica indeterminada (Tabela 2), os portadores crônicos apresentaram a menor prevalência (1,8%), enquanto que os suscetíveis foram os que apresentaram maior prevalência (49,2%).
Dessa forma, na distribuição por grupo etário, observa-se ainda que o número de suscetíveis continua elevado (Tabela 3). As maiores frequências de vacinados foram observadas nos grupos etários de 0-31 anos.
Perfil sorológico | ||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | Crônico | Imune | Vacinado | Isolado† | Suscetível | Total | ||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
0-6 | - | - | 1 | 0,2 | 6 | 0,9 | - | - | 28 | 4,2 | 35 | 5,4 |
6-11 | - | - | 1 | 0,2 | 20 | 3,0 | - | - | 56 | 8,5 | 77 | 11,8 |
11-16 | - | - | - | - | 26 | 3,9 | - | - | 66 | 10,0 | 92 | 14,1 |
16-21 | 1 | 0,2 | 1 | 0,2 | 19 | 2,9 | 1 | 0,2 | 34 | 5,2 | 56 | 8,6 |
21-31 | 4 | 0,6 | 11 | 1,7 | 17 | 2,6 | 2 | 0,3 | 47 | 7,1 | 81 | 12,4 |
31-41 | 2 | 0,3 | 27 | 4,1 | 5 | 0,8 | 14 | 2,1 | 43 | 6,5 | 91 | 14,0 |
41-51 | 2 | 0,3 | 31 | 4,7 | 9 | 1,4 | 26 | 3,9 | 23 | 3,5 | 91 | 14,0 |
51-61 | 3 | 0,5 | 28 | 4,2 | 8 | 1,2 | 12 | 1,8 | 11 | 1,7 | 62 | 9,5 |
≥ 61 | - | - | 21 | 3,2 | 8 | 1,2 | 21 | 3,2 | 17 | 2,6 | 67 | 10,3 |
Total | 120 | 1,8 | 121 | 18,40 | 118 | 17,90 | 76 | 11,50 | 3250 | 47,6 | 652* | 100,0 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
* Excluíram-se os indivíduos classificados como indeterminados (8/660); N: Número de indivíduos na faixa etária; † Anti-HBc total positivo isoladamente.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
ANÁLISE UNIVARIADA
A análise univariada entre gênero e idade com o marcador sorológico HBsAg revelou que os indivíduos do sexo masculino e com idade superior a 20 anos estão mais suscetíveis a tornarem-se portadores crônicos do VHB (Tabela 4). Também houve associação positiva para o marcador anti-HBc total (p < 0,001).
Variáveis | Soropositivo | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
HBsAg | Anti-HBc total | ||||||||
Sim | Não | Sim | Não | ||||||
N | % | N | % | N | % | N | % | ||
Sexo | Masculino | 11 | 2,9 | 364 | 97,1 | 142 | 37,9 | 233 | 62,1 |
Feminino | 01 | 0,4 | 276 | 99,6 | 067 | 24,2 | 210 | 75,8 | |
Odds ratio | 8,3 | 1,9 | |||||||
IC95% | 1,0-64,0 | 1,3-2,6 | |||||||
P | 0,010 | < 0,001 | |||||||
Idade | ≤ 20 | 01 | 0,4 | 259 | 99,6 | 005 | 01,9 | 255 | 98,1 |
> 20 | 11 | 2,8 | 381 | 97,2 | 204 | 52,0 | 188 | 48,7 | |
Odds ratio | 0,1 | 0,01 | |||||||
IC95% | 0,0-1,0 | 0,0-0,4 | |||||||
P | 0,010 | < 0,001 | |||||||
Analfabetos | Sim | - | - | 14 | 100,00 | 08 | 57,1 | 006 | 42,9 |
Não | 6 | 2,5 | 236 | 97,5 | 70 | 28,9 | 172 | 71,1 | |
Odds ratio | - | 3,2 | |||||||
IC95% | 0,0-11,8 | 1,0-9,7 | |||||||
P | 0,700 | 0,030 | |||||||
Estado civil | Casado* | 4 | 3,4 | 113 | 96,6 | 55 | 47,0 | 062 | 53,0 |
Solteiro | 2 | 1,4 | 137 | 98,6 | 23 | 16,5 | 116 | 83,5 | |
Odds ratio | 2,4 | 4,4 | |||||||
IC95% | 0,4-13,4 | 2,5-7,9 | |||||||
P | 0,200 | < 0,001 | |||||||
Cômodos† | ≤ 5 | 5 | 3,2 | 153 | 96,8 | 52 | 32,9 | 106 | 67,1 |
> 5 | 1 | 1,0 | 097 | 99,0 | 26 | 26,5 | 072 | 73,5 | |
Odds ratio | 3,1 | 1,3 | |||||||
IC95% | 0,3-27,0 | 0,7-2,3 | |||||||
P | 0,200 | 0,100 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
N: Número de indivíduos; IC95%: Intervalo de confiança 95%; P: p-valor. Analfabeto: Sem escolaridade/sabe assinar o nome; * Incluem-se os casados, separados, viúvos e divorciados; † Número de cômodos na residência.
Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
A análise das características sociodemográficas, obtidas pela aplicação dos QEI, foi baseada em 256 fichas respondidas. Destas, 50,3% relataram viver em casas construídas em alvenaria; 62,1% em residências que continham de um a cinco cômodos; 76,9% possuíam banheiro no interior da casa, sendo que desse total, 94,1% eram fossas sépticas; 91,0% informaram que as casas eram abastecidas com água de poço comum; e 100% tinham acesso à energia elétrica.
Para anti-HBc total (Tabela 4) verificou-se que as variáveis "analfabetos" e "estado civil" (casados, viúvos, divorciados e separados) estiveram associadas ao risco de infecção pelo VHB (p < 0,05). Não houve associação entre HBsAg e variáveis sociodemográficas (p > 0,05).
VARIÁVEIS EPIDEMIOLÓGICAS
Dos 660 questionários epidemiológicos aplicados, foram obtidas 256 fichas respondidas. Para os fatores de risco que favorecem a transmissão do tipo parenteral, pode-se destacar a extração dentária (n = 199; 77,7%), histórico de cirurgia (n = 94; 36,7%), transfusão sanguínea (n = 30; 11,7%), tatuagem e/ou piercing (n = 19; 7,0%) e injeção por curioso (n = 15; 5,9%). O compartilhamento de materiais de higiene pessoal foi relatado por mais da metade dos indivíduos entrevistados (n = 138; 53,9%). Dentre os itens, o alicate de unha foi o mais citado (n = 110; 42,9%), seguido de tesoura de unha (n = 11; 4,3%), aparelho de barbear (n = 10; 3,9%) e escovas de dente (n = 7; 2,8%).
Na análise entre resultado reagente para HBsAg e os fatores de risco não foi observada nenhuma associação estatística significativa. Na análise univariada de possíveis associações entre um resultado anti-HBc total "positivo" e os fatores de risco, verificou-se que relato de cirurgia anterior, exodontia, injeção por curioso, compartilhamento de materiais de higiene pessoal e a não utilização preservativos exibiram resultados estatisticamente significantes (p < 0,05).
DISCUSSÃO
Com características ribeirinhas, as localidades de Cachoeira do Teotônio e Vila Amazonas foram diretamente atingidas pelos impactos provenientes da construção da UHE de Santo Antônio, em função da elevação do nível d'água do reservatório. O remanejamento dessas famílias para outros locais foi, sem dúvida, o motivo que dificultou a aplicação do QEF e do QEI em toda a população envolvida no projeto original (660 indivíduos). Entretanto, aproximadamente 39% da população retornou o questionário respondido. Esse valor foi considerado representativo para o presente estudo.
No início dos anos 2000, algumas regiões do Norte do Brasil eram tidas como de alta prevalência de infecções pelo VHB, quando comparadas com outras regiões brasileiras11. A soroprevalência direcionava para uma taxa geral em torno de 10% para anti-HBc total. O presente estudo mostrou uma taxa geral de anti-HBc total positivo de 32,1%. Considerando o Brasil, em 2010 foram registrados 13.188 casos confirmados de hepatite B, sendo que a Região Norte respondeu por 13,3%5 e, destes, Rondônia representou 19,7%.
Sabe-se que a transmissão da hepatite B entre moradores locais e migrantes pode ocorrer com uma frequência maior na área rural12. Desde 2008, o Estado de Rondônia tem passado por um período de transição no aspecto econômico e demográfico, decorrente da construção de duas grandes UHE no rio Madeira, no Município de Porto Velho. Estima-se que esses empreendimentos tenham estimulado a migração de mais de 100 mil pessoas, direta e/ou indiretamente ligadas a essas obras civis, distribuídas entre a área urbana e rural de Porto Velho. Observando-se que o contato sexual é uma das vias de transmissão da hepatite B, o risco do aumento da incidência é considerável.
No Brasil, a distribuição do VHB não é homogênea e a Amazônia brasileira pode apresentar todos os três padrões de endemicidade: baixa, alta e intermediária13. Estudos realizados nesta Região apontam para percentuais de portadores crônicos do VHB entre 3,3% e 4,8%14,15,16. Outros estudos realizados em Rondônia apontam para prevalências entre 6,7% e 35,3%17,18. Mesmo sendo razoavelmente menor a proporção do presente estudo, não se pode ignorar a presença do VHB em área de intensa concentração humana ocasionada por ondas migratórias, temporárias ou não, principalmente se considerada a elevada taxa de detecção apresentada anteriormente5.
A multiciplidade de parceiros sexuais sem o uso de preservativos, a homossexualidade, o uso de drogas, o compartilhamento de lâminas de barbear, também são fatores de transmissão que reforçam essa associação19,20. Já a transmissão vertical, que representa o maior meio de transmissão do VHB em regiões onde a prevalência do VHB é alta21, não demonstra ser muito frequente entre os indivíduos analisados no presente estudo.
A transmissão horizontal costuma ser comum durante a infância por meio do contato interpessoal ou por líquidos corporais que contém o VHB em regiões de alta endemicidade22. De acordo com a Organização Mundial da Saúde1, nas áreas de baixa endemicidade, adolescentes e adultos jovens são alvos primários na transmissão do VHB, enquanto que nas áreas de média endemicidade, todas as faixas etárias estão englobadas de modo variável, tendo como influências os aspectos culturais e socioeconômicos.
No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações foi criado em 1973. Em 1993, foram criados os Centros de Referência para Imunobiológicos Especiais (Cries). Em 1996, ampliaram a oferta de vacinas para todas as crianças abaixo de 1 ano de idade, com ênfase em recém-nascidos23. Os resultados mostram que a prevalência global de indivíduos com o marcador sorológico anti-HBc total reagente (32,1%) é quatro vezes superior à taxa brasileira11. Os grupos etários que apresentaram baixa prevalência deste marcador sorológico foram os mais jovens (0-21 anos de idade). Entretanto, este mesmo grupo apresentou as maiores frequências de vacinados e suscetíveis. Isso demonstra que a cobertura vacinal não está atingindo seu objetivo nesta área e que pode apresentar razões diversas24, como oportunidade perdida de vacinação e falta de conhecimento acerca de vacina. Situação similar é relatada em estudo na Amazônia Legal14,25. Em contraste, quando devidamente implantado o esquema vacinal, observa-se uma redução significativa do VHB nos menores de 5 anos de idade26.
Por outro lado, o aumento do anti-HBc total a partir do grupo etário 16-21 anos sugere a importância da transmissão sexual, pois o surgimento de indivíduos infectados pelo VHB a partir deste grupo etário é coerente com o padrão de transmissão encontrado em áreas de baixa endemicidade27. Sendo assim, a ocorrência de portadores do VHB a partir desse grupo etário no presente estudo e associada à transmissão horizontal, pode estar favorecendo a circulação do vírus, como citado na literatura28,29, sugerindo uma redução na expectativa de vida e elevação do número de óbitos por hepatite B e hepatocarcinoma associado ao VHB registrados no Brasil na última década30.
A elevada prevalência de uso compartilhado de objeto e/ou utensílio de higiene pessoal é outro fator que favorece a transmissão na área do presente estudo, condizente com relatos anteriores28,29. A exodontia também é um importante mecanismo que pode disseminar o VHB31. A transfusão sanguínea não apresentou associação com o HBsAg. Isso se deve a melhorias no controle de qualidade dos bancos de sangue observados no Brasil e países vizinhos32,33.
Outros fatores socioeconômicos, o analfabetismo e estado civil, apresentaram associação com o VHB. Isso pode ser explicado pela falta de conhecimento sobre os meios de transmissão do VHB e da conduta de multiplicidade de parceiros sexuais sem mecanismos de proteção.
CONCLUSÃO
Embora os dados encontrados no presente estudo não possam ser generalizados para todo o Estado, eles são úteis para avaliar a situação epidemiológica da hepatite B na região do rio Madeira. Com o aumento populacional demandado pelas obras civis das UHE em Rondônia, o potencial de transmissão não pode ser desconsiderado. A baixa cobertura vacinal e grande porcentagem de indivíduos suscetíveis observadas são preocupantes.
Além de uma campanha vacinal mais abrangente e um trabalho de educação em saúde dinâmico e permanente, faz-se necessária a realização de estudos soroepidemiológicos mais amplos a respeito do VHB, que contemplem a análise dos fatores de transmissão envolvidos na disseminação desse vírus. Desta forma, o entendimento mais profundo da epidemiologia da doença permitirá fornecer informações que podem reforçar as tomadas de decisões de forma global e mais efetiva no Estado, principalmente em relação ao controle da doença, bem como a conscientização por parte da população quanto aos métodos de proteção.