INTRODUÇÃO
A doença de Chagas é um agravo que ocorre somente nas Américas, sendo causada pelo Trypanosoma cruzi (Chagas, 1909), um protozoário flagelado da ordem Trypanosomatida, família Trypanosomatidae. Os triatomíneos são os vetores da doença de Chagas, transmitindo o parasita por meio de suas fezes contaminadas. Além da transmissão vetorial, podem ocorrer também transmissões por via oral, transfusão sanguínea, transplantes de órgãos, acidentes de laboratório, além de já terem sido registrados casos de transmissão placentária e pelo leite materno1.
Atualmente a doença de Chagas apresenta diminuição de casos registrados, como resultado das medidas de controle e das melhorias das habitações rurais em algumas regiões do Brasil. Com o controle da transmissão vetorial pelo Triatoma infestans (Klug in Meyen, 1834) no início da década de 1990, espécies que eram consideradas secundárias passaram a ocupar lugar de destaque na epidemiologia da doença, entre elas o Triatoma brasiliensis Neiva, 1911, o Triatoma pseudomaculata Correa and Espínola, 1964 e o Panstrongylus lutzi (Neiva and Pinto, 1923)2.
A Região Nordeste do Brasil é considerada uma área de grande importância epidemiológica para a doença de Chagas. Em inquéritos nacionais, essa Região apresenta o maior número de pessoas infectadas por T. cruzi, com índices elevados de infestação por triatomíneos3,4,5.
Estima-se que aproximadamente 4,6 milhões de pessoas estejam infectadas pelo T. cruzi no Brasil; entretanto, esse número pode ser ainda maior, uma vez que apenas os casos agudos são de notificação compulsória. Dados do Ministério da Saúde mostram que foram registrados, no período de 2001 a 2014, um total de 3.827 casos, sendo 1.625 (42,5%) na Região Nordeste, seguidos pelas Regiões Norte (1.580; 41,3%), Sul (291; 7,6%), Sudeste (222; 5,8%) e Centro-Oeste (109; 2,8%)6.
Na Região Nordeste, foi registrada a ocorrência de 29 espécies de triatomíneos. Segundo o Programa de Controle de Doença de Chagas, as espécies mais capturadas são: T. brasiliensis e T. pseudomaculata, sendo o T. brasiliensis encontrado em todos os Estados da Região7,8,9,10.
O município de Caruaru, no estado de Pernambuco, foi escolhido para este estudo em virtude do alto índice de triatomíneos encontrados em coletas realizadas pela IV Gerência Regional de Saúde (GERES) do Estado. O presente trabalho descreve a presença de triatomíneos na área rural de Caruaru, durante os anos de 2011 e 2012, definindo as áreas de risco para a doença de Chagas com base nos registros das principais espécies.
MATERIAIS E MÉTODOS
O município de Caruaru (S8°16'53'', W35°58'25'') está inserido na unidade geoambiental do Planalto da Borborema e incluído na área geográfica de abrangência do semiárido brasileiro. Em 2010, tinha uma população de 314.951 habitantes, vivendo em uma área territorial de 920.606 km², cuja densidade demográfica correspondia a 342,07 hab./km², e está distribuída em quatro distritos4 (Figura 1).
A área de investigação foi a zona rural de Caruaru, com população de 35.323 habitantes (11,2%), onde os agentes de saúde municipais realizam monitoramento e coletas de triatomíneos. Os dados utilizados são provenientes do banco de dados do Departamento de Controle de Vetores da cidade e correspondem aos anos de 2011 e 2012. Os principais indicadores avaliados foram: pertencer à zona rural (sítios, povoados ou fazendas da localidade), número de residentes na casa, presença de anexos nas casas, tipo da moradia, presença ou ausência de exemplares de triatomíneos.
As moradias foram classificadas de acordo com o tipo de material com que foram construídas: alvenaria com reboco, alvenaria sem reboco, barro com reboco e barro sem reboco.
Os insetos foram capturados manualmente por técnicos de endemias do Município, utilizando pinças e lanternas para a coleta, além da aplicação de líquido desalojante (Pirisa 2%) para a retirada dos insetos de frestas profundas. Os exemplares coletados foram encaminhados para o Laboratório Municipal de Entomologia da IV GERES, sendo posteriormente enviados ao Laboratório de Endemias do Laboratório Central de Saúde Pública de Pernambuco para a identificação das espécies. A coleta de material para o exame parasitológico foi feita pela compressão abdominal do espécime e posterior exame de suas fezes em microscópio óptico (400x).
As coletas manuais foram realizadas no intradomicilio e em todos os anexos que constituem o peridomicílio, como galinheiros, chiqueiros, pequenos galpões que serviam de armazenamento de materiais diversos e demais estruturas que, mesmo precárias, poderiam servir de abrigo para os insetos.
Para as análises estatísticas descritiva e inferencial, foi utilizado o programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences, v. 17), no qual foram calculadas as distribuições absolutas, os percentuais uni e bivariados e aplicado o teste qui-quadrado de Pearson. Para as decisões dos testes estatísticos, foi adotado o intervalo de confiança de 95%.
RESULTADOS
Foram avaliados dados de 888 residências da zona rural de Caruaru. Dessas, 57,1% (507) tinham anexos, sendo a maioria, 34,1% (303), com apenas um anexo. O tipo de parede mais encontrado foi o de alvenaria com reboco, representando 85,4% (758) das residências. Todas eram cobertas com teto de telha. Em relação ao número de habitantes, 24,7% (219) das residências estavam desocupadas e, dentre as ocupadas, a maioria possuía dois habitantes (16,4%; 146) (Tabela 1). As 888 residências apresentaram um total de 2.236 habitantes, dos quais 9,4% (211) residiam em casas onde foram encontrados espécimes de triatomíneos e, por isso, foram classificados como expostos.
Variáveis | N = 888 | % | |
---|---|---|---|
Anexos na residência | |||
Sim | 507 | 57,1 | |
Não | 381 | 42,9 | |
Número de anexos na residência | |||
Nenhum | 381 | 42,9 | |
Um | 303 | 34,1 | |
Dois | 127 | 14,3 | |
Três ou mais | 77 | 8,7 | |
Tipo de parede da residência | |||
Alvenaria com reboco | 758 | 85,4 | |
Alvenaria sem reboco | 107 | 12,0 | |
Barro com reboco | 18 | 2,0 | |
Barro sem reboco | 5 | 0,6 | |
Tipo de teto da residência | |||
Telha | 888 | 100,0 | |
Número de habitantes por residência | |||
Nenhum | 219 | 24,7 | |
Um | 94 | 10,6 | |
Dois | 146 | 16,4 | |
Três | 144 | 16,2 | |
Quatro | 139 | 15,7 | |
Cinco | 87 | 9,8 | |
Seis ou mais | 59 | 6,6 |
Também foi analisada a associação entre a ocorrência de triatomíneos e a presença de anexos e habitantes expostos. Foi detectada associação significativa da presença de triatomíneos com a presença de habitantes expostos e, para essa variável, destaca-se que o percentual de residências com triatomíneos foi mais elevado nas residências com habitantes que nas sem habitantes, 10,0% e 3,7%, respectivamente (Tabela 2).
Variáveis | Triatomíneos | Total | p | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Presentes | Ausentes | ||||||
N | % | N | % | N | % | ||
Total de residências | 75 | 8,4 | 813 | 91,6 | 888 | 100,0 | |
Residências com anexos | |||||||
Sim | 41 | 8,1 | 466 | 91,9 | 507 | 57,1 | p† = 0,657 |
Não | 34 | 8,9 | 347 | 91,1 | 381 | 42,9 | |
Habitantes nas residências | |||||||
Sim | 67 | 10,0 | 602 | 90,0 | 669 | 75,3 | p‡ = 0,003* |
Não | 8 | 3,7 | 211 | 96,3 | 219 | 24,7 |
* Associação significativa de 5,0%; † Teste qui-quadrado de Pearson; ‡ Teste exato de Fisher.
De todas as habitações investigadas, 75 (8,4%) foram positivas para a presença de triatomíneos (41 com anexos e 34 sem anexos), distribuídas em 32 localidades dos Distritos de Carapotós, Gonçalves Ferreira e Lajedo do Cedro, todos localizados na zona rural: sete casas em Carneirinho; seis em Malhada B. Queimada; cinco em Riacho Doce, Baixo II e Lajes I, cada; quatro em Dois Riachos e Cachoeira Seca, cada; três em Caldeirão, Mocós e Queimados, cada; dois em Jacaré Grande, Xicurú, Laje, Reinado, Carapotós, Itaúna, Serrote dos Bois e Serrote Preto, cada; um em Pítia do Capim, Poço Velho, Salgadinho, Cipó, Santa Maria, Lagoa do Exu, Olho D'Água do Felix, Caldas, Pingueira, Fundão, Serra do Rodrigues, Normandia, Serra de São Francisco e Muniz, cada.
Foram encontrados 82 exemplares de triatomíneos nas 75 casas infestadas, dos quais somente 54 (65,8%) foram identificados: P. lutzi (22/26,8%), T. brasiliensis (22/26,8%) e T. pseudomaculata (10/12,2%) (Tabelas 3 e 4).
Variáveis | Residências | % | |
---|---|---|---|
Número de triatomíneos encontrados por residência | |||
Um | 39 | 52,0 | |
Dois | 6 | 8,0 | |
Três | 3 | 4,0 | |
Não informado | 27 | 36,0 | |
Total | 75 | 100,0 |
DISCUSSÃO
Existem fatores que podem favorecer a disseminação da doença de Chagas, como a baixa situação socioeconômica, que se reflete nas péssimas condições das habitações humanas, e a ocorrência de espécies de triatomíneos com importante potencial de domiciliação e capacidade vetorial11,12,13. Geralmente os domicílios são construídos de forma precária: paredes de pau a pique, barreadas e com telhado de sapé, tábuas de madeira e alvenaria sem reboco, facilitando a adaptação dos insetos a esses habitats artificiais14.
No presente estudo, foi evidenciada uma modificação na estrutura dos domicílios, já que 85,4% das residências eram de alvenaria com reboco e todas possuíam telha, demonstrando uma adaptação do vetor às residências de melhor estrutura. Esses resultados sugerem que as moradias de alvenaria, que antes eram consideradas barreiras para o encontro de insetos no intradomicílio, precisam apresentar outras estruturas que possam impedir a entrada dos triatomíneos, como telas nas janelas e forro no telhado, para dificultar a penetração dos vetores, principalmente nos períodos noturnos, já que a iluminação artificial pode atuar como fonte de atração15.
Os dados mostraram ainda que, das 888 casas analisadas, 75 (8,4%) apresentavam triatomíneos; dessas, 41 (54,7%) possuíam anexo e 34 (45,3%) não, as quais tinham um total de 211 habitantes expostos ao vetor. Os anexos, normalmente de estrutura precária, aumentam a oferta de nichos para serem ocupados por insetos e, assim, expõem os residentes a vetores de doenças.
Nas moradias onde foram encontrados os triatomíneos, observou-se que as únicas espécies encontradas foram T. brasiliensis (26,8%), P. lutzi (26,8%) e T. pseudomaculata (12,2%), corroborando os estudos anteriores que mostraram essas espécies como as mais prevalentes na área de abrangência da IV GERES de Pernambuco. Silva et al.11 descreveram T. pseudomaculata, T. brasiliensis e P. lutzi como os principais vetores no Nordeste do Brasil, e que o T. brasiliensis está amplamente distribuído em Pernambuco, sendo essas as principais espécies capturadas entre 2006 e 2007. No presente estudo, P. lutzi aparece em igual proporção ao T. brasiliensis, 26,8%, mostrando seu crescimento no contexto histórico dos vetores no Estado, já que, no estudo desenvolvido por Silva et al.14, a espécie P. lutzi foi a terceira mais abundante. Esse fato altera o quadro observado por diversos autores16,17,18,19, que destacaram o T. brasiliensis e o T. pseudomaculata como as principais espécies capturadas em Pernambuco.
Tais informações demonstram a importância da realização de inquéritos entomológicos, para verificar a adaptação das espécies de triatomíneos em áreas rurais que sofrem constantes modificações16,17,18,19, como, por exemplo, o desmatamento para a criação de áreas de lavoura e/ou moradia. Nesse contexto, é primordial que seja determinada a taxa de positividade para a infecção por T. cruzi dos exemplares das espécies de triatomíneos encontradas, para assim poder verificar o papel de cada uma na transmissão da doença de Chagas.
A Região Nordeste apresenta um alto percentual de transmissão vetorial domiciliar que, mesmo com a redução dos focos de T. infestans, vem sendo perpetuado devido ao persistente encontro de espécies nativas20,21,22. Na Região Norte, foi observado um aumento no número de casos confirmados por meio da transmissão oral e, em direção contrária, as Regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste vêm conseguindo diminuir, ao longo dos anos, os casos de mortalidade por doença de Chagas, reflexo de políticas para o tratamento de pacientes chagásicos e, principalmente, de controle dos vetores23.
CONCLUSÃO
Foi demonstrada a alteração na distribuição das espécies de triatomíneos na área estudada quanto à frequência, pois o P. lutzi foi tão frequente quanto o T. brasiliensis, demonstrando a capacidade adaptativa de espécies de triatomíneos à ação antrópica.
Portanto, os resultados deste estudo demostraram a necessidade do aumento e da regularidade das ações de vigilância entomológica em Caruaru, juntamente com a elaboração de políticas educativas para as populações locais e o tratamento das áreas afetadas, visando à interrupção do ciclo de transmissão do T. cruzi aos humanos.