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Revista Pan-Amazônica de Saúde

Print version ISSN 2176-6215On-line version ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude vol.14  Ananindeua  2023  Epub Dec 21, 2023

http://dx.doi.org/10.5123/s2176-6223202301437 

ARTIGO ORIGINAL

Tendência das taxas de detecção da hanseníase em um estado da Região Norte do Brasil

Dilma Costa de Oliveira Neves (orcid: 0000-0001-8725-2128)1  , Alison Ramos da Silva (orcid: 0000-0002-1080-5545)2  , Marilia Brasil Xavier (orcid: 0000-0002-4727-3001)2  , Haroldo José de Matos (orcid: 0000-0003-3758-1235)1 

1 Centro Universitário do Estado do Pará, Belém, Pará, Brasil

2 Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil

RESUMO

OBJETIVO:

Descrever a tendência das taxas de detecção de casos de hanseníase nos 13 Centros Regionais de Saúde (CRS) do estado do Pará, Brasil.

MATERIAIS E MÉTODOS:

Estudo ecológico, do tipo exploratório, incluindo casos novos de hanseníase existentes no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do período de 2000 a 2019, nos municípios agrupados em CRS do Pará. Foram utilizados como variáveis a idade, o ano de diagnóstico e o município de residência. A classificação de hiperendemicidade seguiu os parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde.

RESULTADOS:

No período analisado, foram notificados 98.342 casos novos de hanseníase. Desse total, 87.425 (88,9%) atenderam aos critérios de inclusão, com média anual de 4.371 (± 1.201) casos. Do total de casos notificados, 10,57% (9.240) ocorreram em menores de 15 anos de idade. Observou-se que a hiperendemicidade na população geral se manteve no 5º, 8º, 10º, 11º e no 12º CRS desde 2000 até 2019. Nos menores de 15 anos de idade, foram os mesmos centros, com exceção do 5º CRS.

CONCLUSÃO:

A heterogeneidade dos níveis de endemicidade ao longo da série histórica e em diferentes territórios possibilita inferir que a análise de uma doença infectocontagiosa, em locais de grandes dimensões territoriais, com diversidades culturais e vulnerabilidade social, deve ser particularizada por territórios específicos, identificando assim as populações que contribuem para a manutenção dos níveis elevados de endemicidade.

Palavras-chave: Hanseníase; Doenças Endêmicas; Atenção Primária à Saúde; Série Histórica

INTRODUÇÃO

Na maioria dos chamados países em desenvolvimento, a hanseníase é ainda um grave problema de saúde pública. Passou a integrar a lista das doenças negligenciadas por ser uma infecção crônica, com elevado número de casos, maior prevalência em populações vulneráveis e alto custo de tratamento1,2. E dentre essas doenças, a hanseníase foi a primeira a ter um plano mundial visando a sua eliminação, devido à elevada ocorrência, ao seu potencial de causar incapacidades físicas e por acometer a população economicamente ativa2. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)3, os elevados índices mundiais são influenciados pelo número de casos novos oriundos principalmente de países como Índia e Brasil, onde se encontram bolsões de alta incidência da doença.

Doenças negligenciadas comumente se prevalecem em condições de pobreza, sendo consideradas causa e, ao mesmo tempo, consequência dessa situação, contribuindo para a perpetuação do quadro de desigualdade socioeconômica2, haja vista que, quando ocorre o adoecimento, aumenta a dificuldade de sair da condição de pobreza4,5,6.

Dessa forma, pode-se explicar o porquê de a redução das taxas de prevalência da hanseníase não impactarem na redução da transmissão, uma vez que a vulnerabilidade social é um determinante do elevado risco de adoecimento6,7.

No ano de 2022, foram notificados 174.059 casos novos de hanseníase para a OMS. Desses, 19.635 (11,3%) ocorreram no Brasil, o que levou o país a permanecer em 2º lugar no ranking mundial de casos. Embora tenha sido observada uma redução na taxa de detecção de 17,17 para 8,59 casos/100.000 habitantes entre 2012 e 2021, o país ainda se manteve em patamar de média endemicidade. As Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste contribuíram para esse nível endêmico ao manterem a transmissão da doença3,8,9.

Nesse cenário, o estado do Pará foi considerado, no ano de 2010, como hiperendêmico para hanseníase (46,93/100.000 habitantes), com taxa de detecção anual superior à média brasileira. Em 2020, embora ainda considerado com nível de muito alta endemicidade (29,82/100.000 hab.), demonstrou um importante declínio entre as taxas8,9.

Esses dados direcionam para a necessidade de maior efetividade no diagnóstico precoce e tratamento, principalmente nas regiões que apresentam maior concentração de casos, assim como a intensificação do monitoramento da situação epidemiológica, utilizando para isso os sistemas de informação, a fim de contribuir para a meta de eliminação da hanseníase como problema de saúde pública9,10.

Segundo o Ministério da Saúde (MS), para que ocorra o desenvolvimento das ações previstas no Plano de Controle da Hanseníase (PCH), faz-se necessária a estruturação dos serviços de saúde, a fim de que profissionais capacitados possam lidar com os aspectos imprescindíveis ao controle da doença11. Dessa forma, dentre as doenças negligenciadas, a eliminação da hanseníase como meta da ONU para 2030 requer que os doentes tenham acesso garantido aos serviços essenciais de saúde, assim como o adequado tratamento12.

No entanto, o que dificulta o diagnóstico precoce e o tratamento é a discriminação sofrida pelos pacientes com hanseníase e seus familiares, o que propicia uma evolução da doença com a presença de deformidades e incapacidades, sendo, por isso, considerada um dos principais entraves no desenvolvimento das ações de vigilância epidemiológica. A presença de deformidades leva a impactos negativos na vida cotidiana dos doentes, além de preconceito psicossocial13.

No intuito de reduzir as iniquidades de acesso aos serviços de saúde e contribuir para o acesso ao tratamento curativo, houve a descentralização das ações do PCH para os serviços da Atenção Primária à Saúde (APS). Assim, espera-se maior transparência dos impactos na detecção precoce de casos. Do mesmo modo, é imprescindível que reiteradamente ocorra um refinamento e sistematização das ações da vigilância epidemiológica, a fim de direcionar as pessoas na busca pelos serviços de saúde mediante a percepção de sinais e sintomas14.

Para isso, a informação em saúde torna-se um instrumento essencial na tomada de decisões, como uma ferramenta imprescindível à vigilância epidemiológica14. Por esse motivo, um dos objetivos básicos do Sistema de Informação em Saúde (SIS), na concepção do Sistema Único de Saúde (SUS), é possibilitar a análise da situação de saúde no nível local, tomando como referência os territórios e considerando, necessariamente, as condições de vida da população na determinação do processo saúde-doença15. O nível local é responsável não apenas pela alimentação dos SIS, mas também por sua organização e gestão16.

No entanto, do modo como são executadas as ações do PCH, em decorrência da fragilidade da estrutura dos serviços para a operacionalização do programa, a hanseníase pode se manter em patamares endêmicos mesmo após o alcance da meta de eliminação16. Nisso reside a importância de se realizar a constante avaliação do programa, como um caminho para subsidiar o planejamento das ações de controle da hanseníase16.

Nesse contexto, a formulação de políticas em busca da equidade, visando o controle/eliminação das doenças negligenciadas, enfrenta dois grandes desafios: o estabelecimento de políticas públicas de natureza transversal e a incorporação de ações para grupos vulne­ráveis, marcadas muitas vezes por superposição de vulnerabilidades no interior de políticas seto­riais. Ou seja, a elaboração de tais políti­cas deve incorporar um maior poder de decisão por parte desses grupos populacionais17. Assim, dentre os compromissos assumidos em 2017 pela Organização das Nações Unidas para promover o bem-estar e assegurar uma vida sustentável, está o da erradicação de doenças tropicais negligenciadas como a hanseníase, ação contemplada no objetivo 3 do Desenvolvimento Sustentável18.

Apesar do contexto apresentado, poucos estudos possuem enfoque na estimativa do alcance da meta da taxa de detecção em territórios com populações específicas. Desse modo, este estudo tem como objetivo descrever a tendência das taxas de detecção de casos de hanseníase nos 13 Centros Regionais de Saúde (CRS) do estado do Pará, no período de 2000 a 2019. Além de contribuir com o conhecimento científico, oferece subsídios para um melhor direcionamento das ações de vigilância e controle da hanseníase nos municípios que compõem os CRS no Pará.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de um estudo ecológico, temporal do tipo exploratório, com base nos registros de casos novos de hanseníase existentes no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), disponibilizado pela Secretaria de Estado de Saúde Pública do Pará (SESPA). Com base nesses registros, foram calculadas as taxas de detecção para os anos selecionados para o estudo: 2000, 2005, 2010, 2015 e 2019.

Foram incluídos os registros dos casos novos diagnosticados como hanseníase nos anos selecionados para estudo, de qualquer idade, forma clínica ou classificação operacional e com residência identificada em um dos 144 municípios que compõem o estado do Pará. Foram excluídos os casos de transferências oriundos de outro país ou estado, além de recidivas e outros reingressos (modos de entrada), município ignorado e erro diagnóstico. Os casos novos, de acordo com o município de residência, foram alocados no respectivo CRS19.

Justifica-se o uso do agrupamento dos municípios em CRS por serem, estes, unidades administrativas da SESPA responsáveis por assessorar, acompanhar, avaliar e monitorar o desempenho dos programas de saúde nos municípios de sua área de abrangência, além de organizar a descentralização dos serviços para um melhor acesso pelo cidadão19.

Para o cálculo da taxa de detecção na população total e em cada faixa etária, de acordo com o ano do estudo, foi utilizada a população dos municípios componentes de cada CRS disponibilizada nos Censos de 2000 e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e em estimativas populacionais para os anos intercensitários de 2001 a 200920 e de 2011 até 201920,21,22.

Os grupos de municípios nos respectivos CRS, segundo os valores da taxa de detecção e faixa etária, foram classificados, de acordo com o MS, em: hiperendêmico, muito alta endemicidade, alta endemicidade, média endemicidade e baixa endemicidade9.

Os mapas coropléticos foram confeccionados no software QGIS v.3.32.0, com posterior edição no software CorelDRAW 2019 para melhoria de diagramação e colorização. Utilizou-se a base de dados cartográfica do Brasil em escala 1:250000 disponibilizada pelo IBGE e atualizada em 2019, com sistema de coordenadas SIRGAS 2000.

A tendência das taxas de detecção foi analisada com base na cartografia do estado, com os municípios agrupados nos CRS. Com o auxílio do programa BioEstat v.5.3, foi realizado o teste Qui-quadrado de tendência, e considerado como diferença estatística significativa o nível α = 5% (p-valor ≤ 0,05).

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Centro Universitário do Estado do Pará, sob o parecer nº 4.100.909, em 21 de junho de 2020.

RESULTADOS

No período de 2000 a 2019, foram notificados 98.342 casos novos de hanseníase no Pará. Desse total, 87.425 (88,9%) atenderam aos critérios de inclusão, com média anual de 4.371 (± 1.201) casos. Do total de notificações, 10,57% (9.240) correspondiam a menores de 15 anos de idade.

Em 2000 houve predomínio da hiperendemicidade nos CRS, com exceção da média endemicidade presente nos municípios do arquipélago do Marajó, os quais compõem o 7º CRS (Afuá, Chaves, Cachoeira do Arari, Muaná, Ponta de Pedras, Santa Cruz do Arari, Soure, Salvaterra e São Sebastião da Boa Vista). No entanto, em 2019, apenas o 5º, 8º, 10º, 11º e o 12º CRS apresentaram taxa de detecção ≥ 40/100.000 hab. (hiperendêmicos), enquanto o 2º e o 13º tiveram taxa de detecção, respectivamente, de 34,3 e 29,1/100.000 hab. (muito alta endemicidade), e os demais CRS foram considerados de alta endemicidade (Figura 1).

Figura 1 - Comparação da taxa de detecção da hanseníase (por 100.000 hab.) na população geral, segundo os Centros Regionais de Saúde, no estado do Pará, Brasil, nos anos 2000, 2005, 2010, 2015 e 2019 

Ao comparar as taxas de detecção em menores de 15 anos de idade (Figura 2), observou-se que também ocorreu predomínio da hiperendemicidade no Estado, exceto a média endemicidade registrada no 4º CRS. O 7º CRS oscilou entre hiperendêmico em 2000, de média endemicidade nos anos 2010 e 2015, e de alta endemicidade em 2019. No 8º, 10º, 11º e 12º CRS, no ano de 2019, a hanseníase foi hiperendêmica na população de menores de 15 anos.

Figura 2 - Comparação da taxa de detecção da hanseníase (por 100.000 hab.) na população menor de 15 anos de idade, segundo os Centros Regionais de Saúde, no estado do Pará, Brasil, nos anos 2000, 2005, 2010, 2015 e 2019 

Apenas no 7º CRS houve tendência de aumento, não significativo (p = 0,0542), na taxa de detecção da hanseníase na população geral (Tabela 1). Na população menor de 15 anos de idade (Tabela 2), registrou-se um aumento, também não significativo, na taxa de detecção de casos no 7º, 8º e 13º CRS. Embora tenha sido observada uma redução na taxa de detecção em dez dos 13 CRS, entre 2000 e 2019, os mesmos permaneceram hiperendêmicos (Tabela 2).

Tabela 1 - Evolução das taxas de detecção de casos novos de hanseníase na população geral, segundo o Centro Regional de Saúde e ano do diagnóstico, estado do Pará, Brasil, nos anos 2000, 2005, 2010, 2015 e 2019 

Centro Regional de Saúde Ano p-valor* (tendência)
2000 2005 2010 2015 2019
42,2 46,0 32,9 27,8 19,8 < 0,0001 (A < 0)
31,4 70,8 39,8 29,1 34,3 0,0206 (A < 0)
39,7 55,3 27,6 17,5 19,4 < 0,0001 (A < 0)
19,2 33,5 28,5 19,5 18,8 0,2971 (A < 0)
86,7 81,1 75,4 56,0 44,7 < 0,0001 (A < 0)
31,6 96,1 67,4 38,3 28,7 < 0,0001 (A < 0)
4,8 16,6 14,7 15,8 15,7 0,0542 (A > 0)
45,2 61,6 39,5 43,8 44,5 0,2541 (A < 0)
46,5 56,5 35,0 28,5 19,9 < 0,0001 (A < 0)
10º 64,0 135,7 77,0 54,7 54,8 < 0,0001 (A < 0)
11º 190,8 187,6 93,4 77,3 53,9 < 0,0001 (A < 0)
12º 244,1 189,5 100,0 69,8 71,3 < 0,0001 (A < 0)
13º 30,7 69,2 55,0 38,6 29,1 0,0305 (A < 0)
Estado 71,1 81,7 52,3 40,2 34,1 < 0,0001 (A < 0)

* Teste Qui-quadrado de tendência; Tendência crescente (A > 0); Tendência decrescente (A < 0).

Tabela 2 - Evolução das taxas de detecção de casos novos de hanseníase em menores de 15 anos de idade, segundo o Centro Regional de Saúde e ano do diagnóstico, estado do Pará, Brasil, nos anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2019 

Centro Regional de Saúde Ano p-valor* (tendência)
2000 2005 2010 2015 2019
16,0 16,6 13,6 8,4 5,9 0,0051 (A < 0)
8,4 25,8 11,3 15,1 10,3 0,5867 (A < 0)
11,4 21,8 9,0 1,7 8,2 0,0071 (A < 0)
3,6 9,9 8,6 3,5 5,1 0,6053 (A < 0)
26,4 14,1 23,7 22,1 8,8 0,0361 (A < 0)
7,5 21,3 22,2 14,1 9,2 0,6561 (A < 0)
2,9 3,9 1,3 2,5 3,5 0,8529 (A > 0)
16,6 20,1 11,9 24,5 17,3 0,6820 (A > 0)
7,8 12,0 10,1 3,8 1,7 0,0144 (A < 0)
10º 12,2 51,5 20,3 11,5 16,5 0,0120 (A < 0)
11º 73,2 64,1 37,8 30,4 15,6 0,0001 (A < 0)
12º 82,6 67,3 32,9 26,7 25,0 0,0001 (A < 0)
13º 2,5 13,9 18,3 13,7 7,0 0,4224 (A > 0)
Estado 22,0 24,6 17,4 12,7 8,4 0,0008 (A < 0)

* Teste Qui-quadrado de tendência; Tendência crescente (A > 0); Tendência decrescente (A < 0).

DISCUSSÃO

Mesmo com a redução nas taxas de detecção dos casos de hanseníase no Pará, ainda foram encontradas áreas com níveis de hiperendemicidade (Figura 1). Resultados semelhantes foram observados em outros estudos23,24, nos quais os autores encontraram maior proporção de casos na população acima de 15 anos, com predominância na faixa etária de 20 a 49 anos, considerada economicamente produtiva. No entanto, um estudo realizado em Belém, capital do estado do Pará25, identificou o predomínio de casos na população idosa em relação aos com idade menor ou igual a 15 anos, assim como outro estudo, analisando dados do Sinan de todo o país, no triênio 2016-201826.

A presença de determinantes sociais e históricos associados à ocupação da Amazônia Legal e à manutenção de iniquidades sociais auxilia na explicação do acúmulo de pessoas infectadas ao se tratar de doença de longo período de incubação. A intensificação da vigilância epidemiológica nas áreas mais endêmicas e a manutenção de ações efetivas naquelas com estabilidade da endemia dependem de grande mobilização social, incluindo a vontade política de todos os gestores, compromisso e motivação dos técnicos e controle social5.

Contudo, tais esforços ainda são insuficientes para reduzir a presença de fatores que aumentam o risco de transmissão da hanseníase. Esses fatores incluem o contato próximo entre humanos, o crescimento populacional desordenado, a alta densidade urbana, a marginalização de grupos populacionais, a migração, entre outros, o que reforça os baixos níveis gerais de saúde e maior exposição ao risco de adquirir doenças transmissíveis27.

O coeficiente de prevalência, estabelecido pela OMS como um indicador prioritário para o alcance do controle da hanseníase (< 1/10.000 hab.), permite enfatizar a frequência com que os casos ocorrem, contribuindo para explicar os níveis, padrões e tendências de adoecimento no coletivo e subsidiar a atuação dos serviços de saúde28. Por isso, o estudo da ocorrência da hanseníase em uma série histórica de 20 anos possibilita a análise dessa tendência, sendo fundamental para a avaliação do desenvolvimento das ações do PCH nos serviços de saúde, de acordo com as características das populações e dos territórios historicamente construídos.

Alguns autores, estudando casos de hanseníase em pessoas idosas no estado do Pará, concluíram que a redução da taxa de detecção na população geral é acompanhada pelo aumento da taxa em idosos, possivelmente pela maior susceptibilidade dessa faixa etária29. Embora o MS9 enfatize a importância do monitoramento da situação epidemiológica da hanseníase, alguns autores30 consideram que o acometimento de adultos ultrapassa a resolutividade dos serviços de saúde.

Em um estudo utilizando dados de hanseníase no Pará, no período de 2004 a 2006, foi observado que, embora a doença ocorra em todo o Estado, ela se concentra nos municípios que compõem o 11º e 12º CRS, além da Região Metropolitana30, o que não difere dos achados encontrados nesta pesquisa em relação a essas regiões. Na análise de uma série histórica de dez anos de casos novos de hanseníase no município de Marabá, na região do 11º CRS, os autores observaram uma redução de 41,12% na taxa de detecção entre 2005 e 2014. No entanto, tal redução não impactou na mudança do nível de endemicidade, permanecendo o município hiperendêmico24.

Ao se estratificar as taxas de detecção por cada CRS, foram identificados diferentes níveis de hiperendemicidade. Dessa forma, é possível minimizar a visão tendenciosa de eliminação da hanseníase que se tem ao se analisar, como um todo, um estado ou país com grandes dimensões territoriais, diversidades culturais e vulnerabilidades sociais. A análise por regiões também reflete, com mais precisão, que a distribuição da doença está se tornando mais localizada em territórios com características sociais e de serviços de atenção à saúde que propiciam a perpetuação de elevados níveis de endemicidade31.

Nesse contexto, a atenção para o diagnóstico precoce é imprescindível para minimizar as incapacidades e o custo que elas geram para o Sistema de Saúde e para o paciente32. Todavia, mesmo após o alcance da meta de eliminação, a hanseníase pode ainda se manter em níveis endêmicos, provavelmente devido à lentidão nas respostas dadas pelas estratégias hoje desenvolvidas no enfrentamento da doença. Assim, faz-se necessária a integração entre o Setor Saúde e demais setores, a fim de fortalecer a capacidade no uso dos recursos e, também, o estabelecimento de responsabilidades mais claras entre as partes interessadas no desenvolvimento dos países, para o alcance das metas até 20307.

Na análise da taxa de detecção em menores de 15 anos de idade, observou-se a permanência da hiperendemicidade no 8º, 10º, 11º e no 12º CRS (Figura 2). Uma pesquisa realizada em escolares de oito diferentes municípios do Pará, localizados no 1º, 3º, 5º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º CRS, diagnosticou hanseníase em 3,9% dos examinados33,34. Tais achados ressaltam a transmissão intradomiciliar da infecção e reforçam a necessidade de intensificar as ações voltadas à detecção precoce, mediante busca ativa na comunidade, propiciando assim a interrupção da cadeia de transmissão24,33,34,35. Um estudo realizado em seis municípios da área de abrangência do 11º CRS diagnosticou casos de hanseníase em crianças, indicando que a transmissão não se encontra reduzida, além da presença de algum grau de incapacidade no diagnóstico, o que representa a existência de prevalência oculta36.

Em geral, observou-se neste estudo que as taxas de detecção em indivíduos menores de 15 anos de idade possuem, na maioria dos CRS, tendência decrescente (Tabela 2), mas sem grande impacto nas taxas de detecção na população em geral (Tabela 1). Tais observações reforçam a necessidade de investimentos no treinamento dos profissionais de saúde que atuam nos serviços da APS para o estabelecimento do diagnóstico precoce, que pode ser considerado difícil pela ampla variedade de aspectos clínicos das lesões cutâneas e, principalmente, pela dificuldade de se realizar a avaliação clínica dos nervos periféricos37.

Em estudo realizado por Sousa et al.16, em um município pertencente ao 11º CRS, embora a localidade apresentasse alta orientação para o desenvolvimento das ações do PCH, foi identificado que, dentre os atributos essenciais da APS, o acesso ao serviço apresentou avaliação abaixo do ponto de corte estabelecido pelos pesquisadores. Os autores concluíram, portanto, que o serviço da APS possui fragilidade no acesso necessário aos usuários, não estando adequadamente orientado para o desenvolvimento das ações inerentes ao controle da hanseníase16. Esse fato pode ser um reflexo do preparo deficiente das equipes de Saúde da Família (eSF) nas ações de controle da hanseníase, principalmente na detecção de novos casos. Os achados ressaltam a importância do exame de contatos intradomiciliares como um indicador de avaliação da qualidade dos serviços.

Deve-se considerar, além do preparo das equipes, a infraestrutura necessária para a adequada atenção ao paciente, a fim de que o atributo orientação profissional na APS seja adequadamente conduzido11. Esses pontos são necessários para o alcance de uma atuação efetiva para a transformação do processo de trabalho das eSF38.

Um dos desafios para o controle da endemia reside em assegurar o tratamento e o acompanhamento dos casos na APS, que deve ser apoiada por uma rede de referência e contrarreferência, além de ações de vigilância em saúde executadas oportunamente na rede de serviços de atenção primária39. Neves et al.40 demonstraram uma estabilidade nas taxas de detecção da hanseníase na população de 10 a 19 anos de idade, entre 2010 e 2014, denotando a permanência de elevada endemicidade, a carência de ações efetivas de educação em saúde para essa população e o baixo comprometimento de recursos humanos em saúde com a meta de redução da doença no Pará. Para essas autoras, a precocidade do diagnóstico da hanseníase em crianças e adolescentes deve ser uma prioridade, uma vez que o diagnóstico estabelecido implica em impactos de ordem física, emocional e social40.

Assim, o MS considera que a integração ensino-serviço deve ser inserida na operacionalização da Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022 mediante o uso da estratégia de educação permanente para as eSF39.

Em uma revisão sistemática sobre os atributos da APS, Almeida et al.41 observaram que existem desigualdades no acesso e no uso dos serviços de saúde na maioria dos países, as quais estão relacionadas ao tipo de serviço utilizado. Portanto, para minimizar essas diferenças, torna-se necessária a ampliação da cobertura de serviços de saúde, o que reduzirá a desigualdade no acesso gerada por iniquidades sociais41.

As eSF tendem a se concentrar nas regiões metropolitanas42. Essa distribuição heterogênea reforça as desigualdades sociais, além de não ofertar o acesso dos serviços a populações específicas, tais como populações indígenas, quilombolas e ciganas, povos do campo e das florestas, ribeirinhos, entre outros43.

Para a melhoria das ações do PCH, faz-se necessária não apenas a detecção do caso novo, mas também de como esse cidadão tem acesso ao serviço e como as ações do PCH estão sendo desenvolvidas, de modo a contemplar as necessidades em saúde do paciente naquele momento. Os serviços devem conhecer as atividades de vida diária desses pacientes para direcionar as ações voltadas a essa clientela38. Assim, torna-se imprescindível a dissipação dos preconceitos e estigmas, o que pode contribuir para a melhoria da qualidade na relação serviço-paciente43.

No Brasil, as políticas de saúde estabelecem que a APS esteja integrada aos demais níveis da assistência, em função da sua importância na divulgação e orientação permanente da população adscrita sobre os sinais e sintomas da doença. Além disso, é oportuno o diagnóstico, especialmente em crianças, na longitudinalidade das ações de tratamento medicamentoso e na prevenção de inca­pacidades físicas, visando o aumento na proporção de casos curados38.

Ainda assim, as informações sobre a doença, o exame dos contatos intradomiciliares de casos recentemente diagnosticados e a integração entre os serviços de saúde, em especial a atenção primária e serviços de referência em hanseníase, constituem estratégias importantes para o diagnóstico precoce da doença e o controle da situação endêmica39. Nesse sentido, mostra-se necessária a reorganização/mudança das ações desenvolvidas na rede de serviços de saúde inerentes ao controle da hanseníase e, sobretudo, pautadas em práticas preventivas que fomentem a captação de pacientes e o diagnóstico precoce da doença. As eSF poderão estar capacitadas não somente para o diagnóstico como também para a manutenção dos pacientes diagnosticados do início ao fim do tratamento. Desta forma, surge a necessidade de uma nova abordagem na capacitação técnica das equipes de saúde em lidar com situações adversas que contribuem para o abandono, em especial aos segmentos socioeconomicamente desfavoráveis e de estigma social. A atenção primária estará verdadeiramente capacitada e engajada para o efetivo controle e erradicação da hanseníase no Brasil43,44.

Algumas limitações necessitam ser consideradas no presente estudo, pois as análises tomaram por base os casos notificados no Sinan; portanto, a validade dos resultados aqui apresentados está na dependência da confiabilidade desses registros. Considera-se que os dados analisados subestimam o número real de casos existentes nos municípios de cada CRS, por não serem diagnosticados e/ou não notificados.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos permitem demonstrar que a hanseníase manteve-se em níveis hiperendêmicos em cinco dos 13 CRS no estado do Pará. Pode-se inferir que a análise de uma doença infectocontagiosa em Estados com grandes dimensões territoriais, características populacionais e culturais diversas e vasta vulnerabilidade social deve ser particularizada por territórios específicos, identificando, assim, as populações que contribuem para a manutenção dos níveis elevados de endemicidade.

REFERÊNCIAS

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Como citar este artigo / How to cite this article: Neves DCO, Silva AR, Xavier MB, Matos HJ. Tendência das taxas de detecção da hanseníase em um estado da Região Norte do Brasil. Rev Pan Amaz Saude. 2023;14:e202301437. Doi: https://doi.org/10.5123/S2176-6223202301437

Recebido: 06 de Novembro de 2022; Aceito: 29 de Agosto de 2023

Correspondência / Correspondence: Dilma Costa de Oliveira Neves. Centro Universitário do Estado do Pará. Av. Almirante Barroso, 3775. Bairro: Souza. CEP: 66613-903 - Belém, Pará, Brasil - Tel.: +55 (91) 99233-2525. E-mail: dilmaneves@gmail.com

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declaram não haver a existência de conflitos de interesse.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Neves DCO, Xavier MB, Matos HJ e Silva AR participaram da concepção do estudo, análise e interpretação dos dados, assim como da redação e da contribuição crítica intelectual e aprovação final desta versão do manuscrito. Todos os autores assumem a responsabilidade por todos os aspectos do trabalho.

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