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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.18 n.3 Brasília sep. 2009

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742009000300009 

ARTIGO ORIGINAL

 

Acidentes e violências na grande Cuiabá: o que retrata a demanda dos serviços de emergência

 

Accidents and acts of violence in the metropolitan region of Cuiabá: what the analysis of demands for emergency services reveals

 

 

Beatriz Alves de Castro SoaresI; João Henrique G. ScatenaII; Noemi Dreyer GalvãoI

ISecretaria de Estado da Saúde de Mato Grosso, Cuiabá-MT, Brasil
IIInstituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As causas externas são um relevante problema de saúde pública no Brasil, quer seja pelo número de óbitos ou de internações que produzem. Entretanto, pouco se conhece acerca das vítimas que não são internadas e/ou não morrem. Buscando analisar as principais características epidemiológicas das vítimas de acidentes e violências atendidas em serviços de emergência, realizou-se estudo de corte transversal, em serviços específicos do Sistema Único de Saúde. Foram estudados 2.532 atendimentos, ocorridos durante um mês, nas unidades de emergência da Grande Cuiabá-MT. Adultos jovens, do sexo masculino, foram as principais vítimas. Sobressaiu-se a magnitude dos acidentes (90,3%), com destaque para as quedas (54,8%). Entre os acidentes de transporte (26,8%) predominaram os de motocicleta (45,9%). Acidentes específicos mostraram- se relacionados ao trabalho e a suspeição de uso de álcool prevaleceu nas violências. As características das vítimas, na Grande Cuiabá, além de reiterar a importância do problema, que transcende o setor saúde, provêm informações úteis para a deflagração de medidas de intervenção.

Palavras-chave: morbidade; causas externas; acidentes; violências; emergência.


SUMMARY

External causes of morbidity and mortality are relevant public health problems in Brazil. However, little is known about the victims who are not hospitalized and/or do not die. Seeking to analyze the main epidemiological characteristics of the victims of accidents and violence attended in Emergency Units, a cross-sectional study was carried out in specific services of the Unified Health System in Cuiabá, the capital city of the State of Mato Grosso. 2.532 medical assistance procedures reported by the emergency units, in September 2006, were studied. The main victims were young male adults. Accidents were outstanding (90.3%), with emphasis to falls (54.8%). Motorcycle accidents have predominated (45.9%) among road traffic injuries (26.8%). Specific accidents were related to work and suspicion of alcohol use has predominated in violence situations reported. The characteristic of the victims in Cuiabá, besides reaffirming the importance of the problem, which transcends the health sector, provides useful information for the implementation of intervention measures.

Key words: morbidity; external cause; accidents; violence; emergency.


 

 

Introdução

As causas externas – acidentes e violências – correspondem à terceira causa de óbito na população brasileira, preponderando entre homens jovens e negros. As taxas de mortalidade por esses eventos apresentam-se altas e crescentes desde a década de 1980, disseminando-se em algumas regiões do Brasil.1

O Ministério da Saúde, enquanto acompanha a crescente morbimortalidade por causas externas no país, mobiliza-se para, efetivamente, incluir a prevenção dos acidentes e violências em sua agenda e ampliar a compreensão da necessidade do enfrentamento desse problema, tradicionalmente restrito a outros setores, a exemplo do Transporte, Segurança e Justiça.

O setor saúde não se propõe apenas a assumir a responsabilidade pela assistência e reabilitação das vítimas de acidentes e violências, como também pela prevenção dos eventos, em uma perspectiva de promoção da saúde da população.2

As conseqüências dos acidentes e violências para o sistema de saúde e para a sociedade apontam para a necessidade de aperfeiçoamento dos sistemas de informações de mortalidade e morbidade por causas externas, com vistas a subsidiar políticas públicas para a prevenção do problema e atendimento às vítimas. Na maioria dos países, o conhecimento do impacto do problema das causas externas dá-se por meio da análise dos dados de mortalidade, sendo poucos os países que conhecem a morbidade hospitalar por estas causas.3 Os dados dos atendimentos realizados nos serviços de emergência são ainda menos estudados em todo mundo,3 devido ao volume e características deste tipo de atendimento.

Assim, no tocante à morbidade por acidentes e violências, principalmente aqueles que não demandam internação hospitalar, ainda é bastante precário o conhecimento disponível, seja a nível nacional, regional e mesmo local.4

No Brasil, em 2001, a publicação da Portaria no 737 estabelece a política de redução da morbimortalidade por acidentes e violências, tendo por objetivo diminuir a morbimortalidade por estes agravos mediante o desenvolvimento de ações articuladas e sistematizadas.4

Como fontes de dados para vigilância da mortalidade, o Brasil dispõe do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), consolidado e descentralizado, que permite a todos os municípios o acesso aos bancos de dados e o cálculo das taxas de mortalidade.

Para estudos da morbidade hospitalar, o SUS dispõe do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), responsável pelo gerenciamento das internações realizadas no conjunto da rede hospitalar conveniada ao Sistema, ou seja, aproximadamente 70% do movimento hospitalar do país.5

Desta forma, o SIH-SUS e o SIM abordam o problema a partir das internações e dos óbitos. Para ampliar a abrangência, o sistema de vigilância dos acidentes e violências deve avançar em direção a dois grandes desafios: a) conhecer a dimensão dos agravos e o perfil de suas vítimas nos serviços de emergência hospitalar, uma vez que para se compreender melhor o problema é necessário conhecer também as lesões de menor gravidade, que não determinam mortes ou internações, mas que são responsáveis por uma forte demanda nas emergências, já costumeiramente abarrotadas; b) captar os acidentes e as agressões que demandam aos serviços de urgência ambulatorial, bem como outros tipos de violências que ainda permanecem silenciadas no âmbito da esfera privada.

Face à necessidade de um conhecimento mais preciso acerca de acidentes e violências e com o propósito de complementar o sistema de informação já existente, o Ministério da Saúde (MS), em 2006, através da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) considerou a estratégia de implantação da vigilância de serviços sentinelas como uma opção viável, com potencial para gerar informações de qualidade.6

A experiência inicialmente foi conduzida em alguns serviços de emergência selecionados no Estado de São Paulo, e depois estendida a outros estados, e tem mostrado ser possível a realização da coleta de dados nestes serviços, a qual traz ganhos em termos de informações relevantes, que podem ser utilizadas para implantação de estratégias de prevenção e controle.6

Utilizando a estratégia proposta pela SVS/MS, este trabalho busca analisar, na Grande Cuiabá, as principais características epidemiológicas das vítimas de acidentes e violências atendidas em serviços de emergência hospitalar e permitir a proposição de intervenções distintas, dadas as características e a natureza dos agravos.

 

Metodologia

Foi realizado um estudo de corte transversal, de uma demanda a serviços específicos do Sistema Único de Saúde. Os municípios envolvidos foram Cuiabá e Várzea Grande, os dois maiores municípios de Mato Grosso, contíguos, que compõem um conglomerado urbano de quase 800.000 habitantes, aqui denominado Grande Cuiabá.

O universo do estudo foi constituído pelas vitimas de acidentes e violências que buscaram atendimento em serviços de emergência públicos da Grande Cuiabá, no período de 01 a 30 de setembro de 2006. Os serviços pesquisados – prontos-socorros do Hospital e Pronto-Socorro Municipal de Cuiabá (HPSMC) e da Fundação de Saúde de Várzea Grande (Fusvag) – cobrem mais de 90% da demanda de emergência da Grande Cuiabá. De ambos os serviços foi obtido o consentimento para participação na pesquisa e na divulgação dos resultados.

Os dados de demanda a estes serviços, relacionada a acidentes e violências, foram obtidos da coordenação de vigilância epidemiológica da Secretaria de Estado da Saúde de Mato Grosso, responsável pela consolidação dos dados coletados na Grande Cuiabá.

A coleta de dados, nos dois municípios, deu-se mediante utilização de ficha de notificação específica, desenvolvida e testada pela SVS/MS. A coleta foi feita por profissionais de saúde selecionados pelos municípios e foi precedida de treinamento e teste piloto. A supervisão e o acompanhamento foram feitos por técnicos das vigilâncias epidemiológicas municipais.

A ficha apresenta-se dividida em blocos e, das inúmeras variáveis existentes, foram abordadas neste estudo: Município de notificação; Idade; Sexo; Raça/Cor; Escolaridade; Município de residência; Zona de residência; Tipo de ocorrência; Local de ocorrência; Atividade realizada no momento da ocorrência; Evento relacionado ao trabalho (≥16 anos); Suspeita de uso de álcool/droga (≥18 anos); Município de ocorrência; Tipo de vítima; Meio de transporte; Tipo de queda; Tipo de queimadura; Lesão autoprovocada; Tipo de agressão; Provável autor da agressão; Sexo do provável autor da agressão; Natureza da lesão; Parte do corpo atingida; Evolução.

Os acidentes foram subdivididos em Acidentes de Transporte (com destaque para os Acidentes de Motocicleta) e Demais Acidentes (com destaque para as Quedas); as violências foram subdivididas em Agressões e Lesões Autoprovocadas (tentativa de suicídio).

Os dados de acidentes e violências relativos às variáveis "suspeita de uso de álcool/droga" e "trabalho" (ambiente ou trajeto) foram também analisados mediante a construção de tabelas de contingência, a partir das quais foi calculada Razão de Prevalência (RP), com intervalo de confiança (IC) de 95% para confirmar a força das associações entre as variáveis categorizadas com sim/não.

Os dados foram processados pelo programa Microsoft Office Excel 2003 e EPI-INFO 2000 versão 3.4.2, e apresentados em freqüências absolutas e relativas, para caracterizar a magnitude dos agravos e o perfil das vítimas.

Considerações éticas

O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller da Universidade Federal de Mato Grosso, em novembro/2006 (protocolo no 294/CEP/HUJM/06).

 

Resultados

De 1o a 30 de setembro de 2006 foram captados 2.532 atendimentos a vítimas de acidentes e violências, a maioria (98,1%) ocorrida na Grande Cuiabá e 1,9% em outros municípios.

Dentre os atendimentos sobressaíram-se: sexo masculino (66,5%), raça negra (81,9%), escolaridade menor ou igual a ensino fundamental completo (58,3%), faixa etária entre 20 e 39 anos (40,2%), residência na zona urbana (92,9%). A suspeita de uso de álcool e droga ocorreu em 16,0% das vítimas e a relação com o trabalho em 30,0%.

Dentre todas as causas externas, os eventos que mais demandaram aos serviços de emergência foram os acidentes, com predominância absoluta (90,3%). Nesta categoria, os demais acidentes representaram 63,5% e os acidentes de transporte 26,8% (Tabela 1). As agressões e lesões autoprovocadas representaram 8,8% e 0,9% respectivamente, totalizando os 9,7% relativos à violência.

 

 

Dos 1.608 (63,5%) atendimentos classificados como demais acidentes, foram registradas 881 (34,8%) quedas e 727 (28,7) outros acidentes.

Sobre as quedas foram observados (Tabela 1): sexo masculino (59,6%), raça negra (83,8%), adultos jovens (29,5%), escolaridade menor ou igual ao ensino fundamental completo (54,9%). Os principais locais de ocorrência foram a residência (51,1%) e a via pública (14,3%). Os principais tipos de lesões foram entorse/luxação (39,6%) corte/perfuração/laceração (19,1%), fratura (17,9%). As quedas atingiram principalmente membros inferiores (34,9%), seguidos de membros superiores (32,1%) e cabeça (19,3%). A suspeita de uso de álcool/droga deu-se em 7,5% das vitimas desta categoria específica e 30,6% tinham o trabalho, ou trajeto para o mesmo, como a atividade realizada no momento da ocorrência. Dentre as quedas, a maioria foi do mesmo nível (65,3%), seguida por quedas de outras alturas (21,9%) e de escada (8,7%).

Nos outros 727 acidentes (categoria que exclui os acidentes de transporte e as quedas) observou-se (Tabela 1): sexo masculino (66,6%), raça negra (81,2%), adultos jovens (36,2%), escolaridade menor ou igual que ensino fundamental completo (62,6%). Os principais locais de ocorrência foram a residência (52,2%) e o trabalho (23,0%). Salientaram-se como principais tipos de lesões: corte/perfuração/laceração (56,6%), entorse/luxação (11,4%), contusão (6,2%) e fraturas (3,3%). As partes do corpo mais atingidas foram: cabeça (33,0%), membros superiores (26,5%) e membros inferiores (14,3%). A suspeita de uso de álcool/droga deu-se em 5,1% das vitimas desta categoria e 53,3% tinham o trabalho, ou trajeto para tal, como a atividade realizada no momento da ocorrência. As queimaduras representaram 3,6% destes acidentes e 29,3% das vítimas eram crianças menores de 9 anos. A maioria das queimaduras (53,4%) foi causada por substâncias quentes. Das vítimas de queimaduras 56,2% referiram relação do acidente com o trabalho. No seu conjunto, 82,4% das vítimas das quedas e dos outros acidentes tiveram alta após atendimento ao serviço.

Nos serviços de emergência da Grande Cuiabá, durante o período estudado, foram atendidas 679 (26,8%) vitimas de acidente de transporte. A maioria foi do sexo masculino (73,3%), com idade entre 20 e 39 anos (52,1%), escolaridade igual ou inferior ao ensino fundamental completo (53,9%), residência na zona urbana (91,3%) e ocorrência no período diurno (55,6%). A quase totalidade destes acidentes (93,5%) deu-se em via pública, caracterizando-os como acidente de trânsito. Pela magnitude dos acidentes com motocicleta, estes foram estudados separadamente dos outros acidentes de transporte.

Sobre as características dos motociclistas, principais vítimas dos acidentes de transporte, predominaram os adultos jovens do sexo masculino e com melhor nível de escolaridade. O principal local de ocorrência foi a via pública com (99,0%). As principais partes do corpo atingidas foram os membros inferiores (40,5%), membros superiores (35,6%) e cabeça (13,3%). Os principais tipos de lesões foram corte/perfuração/laceração (24,4%), entorse/luxação (22,1%) fratura (20,5%) e contusão (10,3%). A relação com o trabalho ocorreu em 39,6% dos casos e a suspeita de uso de álcool/droga entre as vítimas destes acidentes foi de 17,1% (Tabela 1).

Em relação aos outros acidentes de transporte (categoria que exclui os acidentes com motocicletas), foram observados: sexo masculino (67,8%), adulto jovem (38,4%), raça negra (80,7%), escolaridade menor ou igual a ensino fundamental (70,2%), via pública (88,5%). Os principais tipos de lesões foram corte/perfuração/laceração (32,4%), entorse/luxação (18,3%) fratura (11,2%) e contusão (10,6%) A relação com o trabalho ocorreu em 38,4% dos casos e a suspeita de uso de álcool/droga entre as vítimas destes acidentes foi de 18,9%.

A suspeita de uso de álcool/droga deu-se em 16,3% das vítimas de acidentes de transporte (Tabela 2), comprometendo mais os homens (19,3%), de forma significativa (RP= 2,0; IC95%: 1,2-4,2). Comparando-se os acidentes de transporte com os demais acidentes (Tabela 3), a suspeita de uso de álcool/droga foi significativamente maior (226,0%) no primeiro grupo (RP = 3,2; IC95%: 2,3-4,5).

 

 

 

 

No conjunto de todos os acidentes, a suspeita de uso álcool/droga deu-se em 8,1% das vítimas (Tabela 2). Esta foi maior entre homens (10,2%) que entre mulheres (2,6%), diferença estatisticamente significante (RP = 4,0; IC95%: 2,5-6,2). Em relação à categoria trabalho (Tabela 4), a freqüência de acidentes entre os homens (43,6%) mostrou-se 58,0% maior que aquela observada entre as mulheres (27,6%), diferença também significativa (RP = 1,6; IC95%: 1,3-1,8). Entre as vítimas de demais acidentes, a relação com trabalho foi maior (38,7%) que a observada entre as vítimas de acidentes de transporte (37,8%), porém sem significância estatística (Tabela 5). Embora a relação com o trabalho fosse 11,5% maior entre as vítimas de acidentes de motocicleta, comparada aos demais acidentes de transporte, tal diferença não foi significativa.

 

 

 

 

No período de estudo ocorreram 23 (0,9%) tentativas de suicídio, a maioria (78,3%) por envenenamento/intoxicação. Salientam-se como características das vítimas (Tabela 1): cor negra (78,3%), faixa etária de 20 a 39 anos (78,3%), sexo feminino (69,6%), escolaridade menor ou igual ao ensino fundamental completo (56,5%), residência na zona urbana (100%), ocorrência na própria residência (95,7%), no período noturno (39,1%). A suspeita de uso de álcool/droga deu-se em 31,6%. Foram atendidas na emergência e encaminhadas ao serviço ambulatorial ou hospitalar 52,2% das vítimas e uma delas (4,3%) teve evolução para óbito.

Das 222 vítimas de agressão, as principais características foram: sexo masculino (77,0%), faixa etária de 20 a 39 anos (55,0%), instrução inferior ao ensino fundamental completo (62,4%), residência na zona urbana (95,5%). A maioria das agressões ocorreu no período noturno (63,0%) e em via pública (33,9%), redundando em corte/perfuração/laceração (62,2%). As lesões atingiram principalmente a cabeça (33,0%), membros superiores (26,5%) e membros inferiores (14,3%). A maioria dos agressores (83,3%) era do sexo masculino e referiram conhecer o agressor 38,9% das vitimas. A suspeita de uso de álcool/droga entre as vítimas de agressões teve a freqüência mais elevada (52,4%) de todos os agravos aqui estudados (Tabela 1). Das vítimas de agressão, 56,3% receberam tratamento e posteriormente foram liberadas, 39,2% foram encaminhadas ao serviço ambulatorial ou hospitalar e 3 (1,4%) evoluíram para óbito.

Comparando as agressões com o conjunto dos acidentes (Tabela 3), observou-se que a suspeita de uso de droga/álcool foi 555,0% maior no primeiro grupo (RP=6,5; IC95%: 5,1-8,2).

 

Discussão

Acredita-se que o contingente de vítimas estudado – 2.532 pessoas atendidas durante 1 mês – reproduza bem as características da morbidade por causas externas demandada aos serviços de emergência da Grande Cuiabá.

A maior proporção de vítimas de acidentes e violências concentrou-se no sexo masculino, numa razão de 2:1, resultado que muito se assemelha ao encontrado em estudo realizado em serviços de urgência/emergência de hospitais públicos de Pouso Alegre, Minas Gerais.7 Naquele município 70,8% dos pacientes atendidos eram do sexo masculino numa razão de 2,4:1.

Na categoria dos acidentes, a suspeita de uso de álcool/droga deu-se mais entre homens que entre mulheres. Em estudo realizado no Pronto Socorro Cirúrgico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,8 também foi observado que 28,9% das vitimas atendidas apresentaram positividade para alcoolemia, com prevalência maior entre os homens. Dentre estes agravos, a freqüência de acidentes de trabalho mostrou-se muito mais elevada na Grande Cuiabá do que aquela encontrada no Estado de São Paulo – Capital (4,9%).8 Acredita-se que esta diferença se deva ao conceito utilizado neste estudo, onde foi considerado acidente de trabalho qualquer acidente ocorrido no trajeto ou no local de trabalho. Já a distribuição dos acidentes de trabalho entre os sexos, comprometendo mais os homens, mostrou-se bem próxima nos dois estudos (74,0 e 77,4%, respectivamente).

Neste estudo, os acidentes sobressaíram-se como as principais causas externas demandadas aos prontos socorros da Grande Cuiabá, e dentro deste grupo, os demais acidentes (acidentes que não de transporte) predominaram. Em estudo realizado em 2005, em unidades de urgência e emergência públicas do Município de Cuiabá,9 estes eventos foram responsáveis por 65,8% dos atendimentos, percentual muito semelhante ao da Grande Cuiabá (63,5%). Os percentuais, no entanto, foram mais elevados do que aqueles encontrados em serviço de emergência de um hospital do município de São Paulo10 (39,0%), do hospital municipal de São José dos Campos11 (35,3%), cidade de porte semelhante à Grande Cuiabá, e em Alta Floresta-MT12 (54,8%), município de aproximadamente 50.000 habitantes. Estes dados não evidenciam relação entre freqüência de demais acidentes e porte do município, mas sugerem que o peso dos acidentes de transporte está interferindo nesta equação, ou seja, no Estado de São Paulo o percentual de demais acidentes é menor porque há mais acidentes de transporte, enquanto na Grande Cuiabá as vítimas de acidentes de transporte representaram peso menor, na demanda dos prontos- socorros.

Ressalta-se que os demais acidentes têm como característica atingir todas as idades, os mais variados níveis socioeconômicos e tipos de ocupação, podendo ainda estar relacionados aos mais diversos tipos de locais, desde acidentes domésticos, acidentes em escolas, locais de práticas de esporte, ambientes de trabalho e de lazer.7

Dentre os demais acidentes, as quedas acidentais aparecem como a primeira causa de atendimento (54,9%), com destaque para as quedas do mesmo nível. Estes dados coincidem com aqueles do município de São Paulo10 e de São José dos Campos11 onde as quedas prevaleceram (65,0 e 76,2%, respectivamente) entre os demais acidentes atendidos em serviços de urgência e emergência. Por outro lado, diferem dos percentuais encontrados em Pouso Alegre-MG7 e Alta Floresta-MT,12 onde as quedas aparecem com 20,5 e 48,8%, respectivamente. Provavelmente, fatores relacionados à demografia, a características dos serviços de saúde, e mesmo à metodologia utilizada nos distintos trabalhos explicam tais diferenças. No entanto, todos os trabalhos evidenciam que as quedas acidentais são um dos agravos que mais merecem atenção dentre as causas externas, principalmente ao se considerar a freqüência entre os idosos.

Os acidentes de transporte foram a segunda causa mais freqüente de atendimento, entre as causas externas, nos prontos-socorros da Grande Cuiabá (26,8%). O resultado deste estudo foi diferente dos encontrados nos municípios de Cuiabá9 e Alta Floresta,12 onde os acidentes de transporte foram responsáveis por 21,8 e 41,0% das causas externas, respectivamente. Tais resultados sugerem desigualdades relacionadas tanto à demografia e ao perfil da população quanto às características da estrutura viária, da frota de veículos e mesmo dos serviços de urgência e emergência locais. Estes aspectos, entre outros, devem ser considerados quando do planejamento de políticas de prevenção e controle dos acidentes de trânsito. Um dos outros aspectos refere-se ao uso de álcool, principalmente pelo motorista. Neste estudo, evidenciou-se uma freqüência significativamente maior – três vezes – de suspeita de uso de álcool entre as vítimas de acidentes de transporte em comparação às vítimas de demais acidentes, o que reforça a necessidade de atuação sobre este conhecido fator de risco.

Os motociclistas foram as principais vítimas identificadas dos acidentes de transporte, sendo os adultos jovens os mais atingidos. Resultados coincidentes foram observados em Alta Floresta,12 município do interior do Estado de Mato Grosso. Os achados podem ser explicados pelos seguintes fatores: a) motociclistas têm maior exposição corpórea; b) a dificuldade de visualização da moto, por outros motoristas, é maior; c) entre os motociclistas é maior a prevalência de comportamento inadequado no trânsito.13

Sabe-se que os acidentes envolvendo motocicletas são um problema emergente na Grande Cuiabá, decorrente do crescimento do uso do veículo não somente para lazer, mas principalmente para o trabalho nas atividades de serviços de "motoboy" e "mototaxi". Ilustra isto o fato de que, em 1982, as motocicletas representavam cerca de 2% da frota total de veículos, mas na década de 1990 esse percentual triplicou-se, mantendo-se em torno de 6%.14 Na atual década também foi registrado o crescimento desta frota, principalmente nas áreas urbanas.15 Além do aumento efetivo na circulação, a proposta de tais serviços é a rapidez no atendimento ao cliente, o que pode contribuir para o maior número de acidentes com este meio de transporte.

As agressões foram a terceira mais importante causa de morbidade por causas externas do serviço de urgência e emergência da Grande Cuiabá. Elas representaram 8,8% dos atendimentos efetuados em serviços de emergência. Proporção coincidente com a encontrada no município de Cuiabá (8,8%) em 2005,9 e inferior às encontradas nos municípios de Pouso Alegre-MG (10,8%)7 e de São Paulo-SP,10 onde as agressões representaram apenas 4,0% dos atendimentos em um hospital estudado.

As agressões se mostraram mais associadas a suspeita de uso de álcool/droga (52,4%), quando comparadas ao grupo de todas as demais causas externas, predominnantemente no sexo masculino (53,7%). Além da suspeita de uso de álcool/droga ter sido 455,0% maior entre as vítimas de agressão, este agravo sozinho, que representou apenas 8,8% de todas as causas externas, concentrou 38,5% das suspeitas de uso de álcool.

Oliveira9 já havia constatado a freqüência elevada de suspeita de uso de álcool/droga no município de Cuiabá, em 2005, freqüência esta ainda mais elevada em Alta Floresta,12 onde a diferença em relação às demais causas foi ainda maior que a observada neste trabalho. Estudo realizado no município de São Paulo16 avaliou a prevalência da positividade do uso de álcool em cada tipo de causa externa e também encontrou diferença significativa entre as categorias, com maior prevalência verificada entre as vitimas de agressão (46,2%), semelhante à encontrada na Grande Cuiabá. Assim, pode-se afirmar que estratégias de redução da violência, no Brasil, passam necessariamente por alguma forma de intervenção sobre o consumo de álcool/droga.

No período estudado foram registradas 23 tentativas de suicídio, a maioria por envenenamento/intoxicação (78,3%). Tal frequência também foi observada em estudo realizado em 65 unidades de saúde do SUS,17 o qual salienta que em 68,4% das tentativas de suicídio o meio utilizado foi envenenamento/intoxicação. Estes dados reforçam uma tendência nacional, pois estudo com dados do Brasil do ano 200018 revelou que mais da metade das internações por suicídio/tentativa foi determinada por intoxicação (59,6%). Ao contrário dos outros agravos, o sexo feminino majoritariamente foi mais importante. Este comportamento quanto ao gênero é referido por outros autores, no caso de tentativa de suicídio.12,19,20 Estudo desenvolvido no Rio de Janeiro observou que problemas de relacionamento familiar ou de namoro, entre os jovens, e problemas de ordem financeira e/ou conjugais, entre os adultos, levam à tentativa de suicídio.21

As limitações deste estudo referem-se basicamente à coleta de dados. Não se pode garantir que o preenchimento da Ficha de Notificação de Acidentes e Violência, mesmo após treinamento e teste piloto, tenha sido isento de problemas. No que tange às causas externas, há situações em que as pessoas muitas vezes omitem a verdade, como no caso de agressão, abuso sexual ou tentativa de suicídio. Os motivos para as omissões são variados e vão do receio de complicações de âmbito policial ao medo de represálias de agressores ou à possibilidade de exposição pública, entre outros.

Além disso, foram identificadas limitações relativas ao preenchimento de campos específicos da Ficha de Notificação, salientando-se: suspeita de uso de álcool/droga, de difícil avaliação por agregar condições distintas, tanto na sua percepção como eventual mensuração; itens referentes à natureza da lesão e parte do corpo afetada, pois enquanto o primeiro restringe a informação a uma (a principal) lesão, o segundo permite identificações múltiplas, o que dificulta a associação de ambos.

Também foi relatada a dificuldade de preenchimento do instrumento de notificação no ambiente de emergência, onde o tempo é escasso e as necessidades das vítimas, na maioria das vezes, sobrepõem-se às da notificação.

É indubitável, no entanto, que os dados providos por este levantamento são importantes e poderão sensibilizar autoridades e gestores da área de saúde e de outras áreas, que com ela tenham interfaces, para o desenvolvimento de políticas e programas de combate à prevenção de acidentes e violências. As informações levantadas têm importante papel no desenho de políticas públicas a serem adotadas nas três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Além disso, servem como ponto de partida para o balizamento das atividades cotidianas dos serviços de saúde, tanto ambulatoriais como hospitalares e de reabilitação e, ainda, para o planejamento de suas ações setoriais. Elas também podem ser úteis para outros setores que, direta ou indiretamente, estão relacionados com a gênese ou com a conseqüência dos acidentes e das violências, como: educação, segurança pública, serviços urbanos, justiça, planejamento, entre outros.

Este é um campo do conhecimento da saúde que precisa ser ampliado e melhor trabalhado. Trata-se de uma área que precisa de novos estudos, para que a tragédia representada pelas mortes, incapacidades e sofrimentos, muitas vezes em fases extremamente precoces da vida humana, tenha sua incidência reduzida a níveis menos sombrios.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq (processo no 620161/04-03) e à FAPEMAT (processo no 0300/04), pelo apoio financeiro recebido na etapa de coleta de dados; à SVS/MS, pela cessão da Ficha de Notificação de Acidentes e Violência e da matriz para processamento de dados, no EPI-Info; às Secretarias Municipais de Saúde de Cuiabá e Várzea Grande.

 

Referências

1. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Análise de morte violenta segundo raça/cor: acidentes por transporte terrestre e análise da tendência da morte violenta: acidentes por transporte terrestre. In: Ministério da Saúde. Saúde Brasil, 2005. Brasília: MS; 2005.

2. Malta DC, Cezário AC, Moura L, Morais Neto OL, Silva Junior JB. A construção da vigilância e prevenção das doenças crônicas não transmissíveis no contexto do Sistema Único de Saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2006;15(3):47-65.

3. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editors. World report on violence and health. Geneva: WHO; 2002.

4. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 737/GM, de 16 de maio de 2001. Aprova a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p. 3-8, 18 maio 2001. Seção 1e.

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Recebido em 22/01/2008
Aprovado em 17/03/2009