Introdução
Os homicídios e os acidentes de transporte terrestre (ATT) são importantes causas de mortalidade no mundo. Dados do Observatório Global em Saúde (http://www.who.int/gho/en/) apontam que em 2012, os ATT foram a nona causa de óbito no mundo com 1,24 milhões de mortes, enquanto os homicídios foram responsáveis por cerca de 500 mil mortes.
No Brasil, homicídios e ATT juntos representam, aproximadamente, dois terços dos óbitos por causas externas. Estas ocupam o terceiro lugar entre as causas de morte no país.1,2 As mortes violentas trazem uma série de outras implicações para a sociedade, a exemplo da influência em indicadores de saúde, como os anos potenciais de vida perdidos, e custos emocionais e sociais, como a desestruturação ou ruptura de famílias, associados a intensos sentimentos de medo, revolta, insegurança, sofrimento e desespero.1
Estudos têm apontado redução das mortes por homicídios a partir de 2003, na maioria das macrorregiões do Brasil, apesar de o país ainda apresentar as mais altas taxas de mortalidade por essa causa, no mundo.1,3,4 Em 2010, a taxa de mortalidade por homicídio entre os brasileiros foi de 27,5 por 100 mil habitantes.5 Fatores como tráfico de drogas, uso abusivo de álcool e posse ilícita de armas estão associados com a maioria das mortes por homicídios.1,3,6 Segundo estudo da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério de Saúde,2 os ATT foram responsáveis por 26,5% dos óbitos por causas externas no Brasil, no período de 2000 a 2009. O mesmo estudo aponta que nas populações de 10 a 14 anos e 40 a 59 anos de idade, os ATT são a primeira causa de mortes.2 Em 2010, cerca de 23 pessoas a cada 100 mil morreram por acidentes de trânsito no Brasil.5
O município de Foz do Iguaçu, estado do Paraná, já ocupou a terceira posição no ranking de mortalidade por agressão entre os municípios brasileiros com mais de 100 mil hab., com uma taxa de homicídios bruta de 277,2 por 100 mil hab. para o período 2002-2004.7 Dos 5.565 municípios brasileiros - até 2011 -, Foz do Iguaçu ocupava a 35ª colocação em taxas de mortalidade juvenil por homicídios: 152,0 por 100 mil hab.4 Cabe ressaltar que no período de 2002 a 2006, o município ocupava a 1ª colocação, considerando-se a faixa etária 15-24 anos: 234,8 por 100 mil hab.8
Haja vista as elevadas taxas de mortalidade por causas externas no município paranaense e sua condição de fronteira com outros dois países - Argentina e Paraguai -, a verificação da evolução dessas taxas de mortalidade é necessária para o planejamento de políticas públicas em que os três países envolvidos tenham voz.
O objetivo deste estudo foi analisar a tendência temporal das mortes por homicídios e acidentes de trânsito ocorridos no período de 2000 a 2010, na população residente no município de Foz do Iguaçu.
Métodos
Trata-se de estudo de séries temporais, realizado no município de Foz do Iguaçu. Este município do extremo oeste do estado do Paraná situa-se em uma fronteira tríplice, compartilhada por Brasil, Paraguai e Argentina. De acordo com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Foz do Iguaçu apresentava uma população de 256.088 habitantes em 20109. No mesmo ano, o índice de desenvolvimento humano municipal (IDH-M) era de 0,75110.
Foram incluídos no estudo os óbitos de residentes em Foz do Iguaçu ocorridos no período de 2000 a 2010, registrados no banco de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) da Secretaria Municipal da Saúde. Os óbitos foram selecionados com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10ª Revisão (CID-10).11 Para as mortes decorrentes de ATT, foram consideradas as seguintes categorias da CID-10: pedestres (V01-V09), ciclistas (V10-V19), motociclistas (V20-V39), ocupantes de veículos (V40-V79) e outros (V80-V89). Para os eventos caracterizados por homicídios, foram utilizadas as seguintes categorias: agressões por meio de substâncias (X85-X90), agressões por armas de fogo (X93-X95), agressões por instrumentos perfurocortantes (X99), outras agressões (X91-X92, Y01-Y09) e intervenções legais (Y35).11
Foram calculadas as taxas de mortalidade segundo sexo e faixa etária (em anos completos: <10, 10-19, 20-59 e ≥60). Para as estimativas populacionais, foram utilizados os números da publicação 'Saúde Brasil 2012' referentes ao Paraná.9 As taxas de mortalidade geral e por idade e sexo, para cada ano avaliado, foram calculadas com o auxílio de planilhas Excel(r), dividindo-se o número de óbitos pela respectiva população residente. A mortalidade foi padronizada de forma direta, por idade, tendo como padrão a população brasileira do ano de 2010 (Censo Demográfico/IBGE).
Para avaliar a evolução temporal das taxas de mortalidade (em logaritmos), foram utilizadas a regressão de Prais-Winsten (para considerar a autocorrelação serial dos erros-padrão ao longo do tempo), a variação percentual anual (APC: annual percent change) e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).12 Os valores p foram obtidos pelo Teste de Wald.
Para esses cálculos, foram utilizados todos os anos em questão e, para apresentação dos resultados em tabelas, optou-se por médias trienais das taxas de mortalidade, que não interferem na interpretação dos resultados.
Apesar de o uso de dados ser de domínio público, o estudo foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, e aprovado via parecer consubstanciado de no 344.340. A Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012, foi atendida.
Resultados
No período de 2000 a 2010, foram registrados 3.459 óbitos de interesse para o estudo, 881 deles decorrentes de acidentes de transporte terrestre e 2.578 atribuídos a homicídios. Apenas um dos óbitos por homicídio, ocorrido em 2003, não teve o sexo identificado; mais de 80% das mortes por esta causa ocorreram em homens (dados não apresentados).
As taxas de mortalidade podem ser observadas nas Figuras 1 e 2. O ano de 2006 foi o que registrou maior taxa de mortalidade por homicídios: 97,6 por 100 mil hab. (Figura 2). A maior taxa de mortalidade por ATT foi observada em 2010: 39,0 por 100 mil hab. (Figura 1). As taxas de mortalidade por ATT e por homicídios mantiveram-se estáveis entre 2000 e 2010 (p=0,772 para ATT e p=0,546 para homicídios). Essa estabilidade também foi observada nas análises segundo sexo. Em relação às mortes por homicídios, especialmente, houve uma redução acentuada a partir de 2006, retomando uma pequena ascensão no ano de 2010 (Figura 2).
Apesar de apresentar uma diminuição de mais da metade nas taxas de mortalidade durante os 11 anos de estudo, os pedestres foram as maiores vítimas de acidentes de transporte terrestre no período de 2000 a 2010, representando 28,9% dos óbitos, seguidos pelos ocupantes de veículos (15,7%) e motociclistas (11,1%) (Figura 3) - excetuando-se o grupo 'Outros ATT'.
Entre os óbitos por homicídios, as mortes ocasionadas pelo uso de armas de fogo representaram 88,7% do total de óbitos por homicídios, sendo que esse instrumento esteve presente em 94,2% dos casos ocorridos no sexo masculino. Tendência de diminuição foi observada para homicídios com envolvimento de instrumentos perfurocortantes (p=0,004) (Figura 4).
As maiores taxas de mortalidade por ATT e homicídios foram observadas entre adultos jovens, na faixa de 20-39 anos de idade. O grupo etário de 40-59 anos foi o segundo com maior mortalidade por ATT, enquanto para homicídios, a segunda maior taxa correspondeu aos adolescentes (10-19 anos). Tendências significativas de diminuição da mortalidade foram observadas para homicídios entre homens com 60 anos ou mais (p=0,001) e entre mulheres de 40 a 59 anos (p=0,023). Observou-se aumento na mortalidade por ATT entre homens de 40 a 59 anos (p=0,009) (Tabela1).
a) APC: annual percent change, ou variação percentual anual.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c) Teste de Wald, obtido por meio de regressão de Prais-Winsten.
d) Variação percentual anual (APC), IC95% e valor-p não calculados, devido ao baixo número de informações válidas para avaliação da tendência.
Discussão
O estudo evidenciou estabilidade nas taxas de mortalidade por ATT e por homicídios relativas ao município de Foz do Iguaçu, no período de 2000 a 2010. Segundo o Foztrans - Instituto de Trânsito de Foz do Iguaçu, durante o período 2004-2006, houve redução dos acidentes como consequência de uma série de medidas, como adequações de vias e ações preventivas para educação no trânsito.13 Apesar da redução dos acidentes, a taxa de mortalidade por ATT evidenciada no município em 2010, de 39,0 por 100 mil habitantes, ainda foi - significativamente - maior do que a média nacional (22,5 por 100 mil hab.) e a média do estado do Paraná (32,2 por 100 mil hab.).14 Um fator que pode ter contribuído para a manutenção das elevadas taxas de mortalidade, foi o aumento considerável na frota de veículos ocorrido no período. Em 2010, Foz do Iguaçu possuía uma frota de 74.801 automóveis e 20.302 motocicletas, apresentando aumentos de 31,8% e 72,7%, respectivamente, em relação ao ano de 2005.15 A complexidade do problema é agravada pela baixa adesão a medidas protetoras no uso de transporte terrestre, principalmente entre a população mais jovem. Resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada em 2009, evidenciaram que 26,3% (IC95%: 25,5%;27,0%) e 18,7% (IC95%: 18,1%;19,2%) dos adolescentes, nos trinta dias anteriores à entrevista, referiram nunca usar cinto de segurança e ser transportados em veículo conduzido por alguém que consumiu bebida alcoólica, respectivamente.16 Esses resultados são condizentes com a tendência de aumento observado para as internações hospitalares por ATT no Sistema Único de Saúde (SUS), em todo o Brasil, no período de 2002 a 2011.17
As maiores taxas de mortalidade por acidentes de transporte terrestre foram observadas na categoria 'Outros ATT' (V80-V89). Este grupo merece atenção especial em sua análise pelos técnicos dos setores responsáveis, tanto no registro das informações quanto na observação e fiscalização de tipos de transporte menos utilizados;18 esses códigos incluem acidentes com veículos de tração animal, trens, bondes e veículos industriais, além dos acidentes nos quais o modo de transporte da vítima é desconhecido.
Em relação aos homicídios, segundo Waiselfisz,19 a diminuição das taxas de mortalidade no Brasil, decorrentes da implantação do Estatuto do Desarmamento no país, não tiveram os mesmos efeitos no estado do Paraná, que ultrapassou a taxa de mortalidade média nacional já em 2004.20 Considerando-se a taxa de mortalidade média dos anos de 2008, 2009 e 2010, Foz do Iguaçu ocupa a 51ª posição nacional, com 70,3 óbitos por 100 mil habitantes.21 Porém, a análise do presente estudo revelou que o município já apresentava, no ano 2000, uma taxa de mortalidade por homicídios de 63,5 por 100 mil habitantes, mantendo praticamente os mesmos índices em 2010 (58,4 por 100 mil hab.).
Os municípios situados na fronteira do estado do Paraná com o Paraguai apresentaram as maiores taxas de mortalidade entre homens de 15 a 29 anos de idade, no período de 2002 a 2004.22 Já o município de Foz do Iguaçu ocupava a 35a colocação entre os 100 municípios brasileiros com as maiores taxas de homicídios juvenis, na média dos anos 2009, 2010 e 2011.4 Ademais, o município era o 34o colocado em números de homicídios e de óbitos por armas de fogo, consideradas as taxas médias de óbitos por arma de fogo nos municípios brasileiros com mais de 20 mil habitantes, no período 2008-2010.19
Mascarenhas et al.,2 ao avaliarem as taxas de mortalidade por causas externas no Brasil, relataram que a taxa de mortalidade por homicídios entre os homens foi de 50,8 por 100 mil homens, enquanto este estudo revelou para o município de Foz do Iguaçu uma taxa de 112,97 óbitos por 100 mil homens. Quando considerada a taxa de mortalidade por ATT entre os homens do município, para o ano de 2009, o valor foi semelhante aos indicadores da região Centro-Oeste do país para o mesmo ano: 47,0 por 100 mil habitantes.2
Achados de um estudo realizado em Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, com vítimas de homicídios notificadas no período 2000-2009, evidenciou importante proporção (29,7%) de exames post mortem positivos para álcool, maconha e/ou cocaína-crack, sinalizando a importância desses fatores na ocorrência dos homicídios.23 A influência exercida pelo uso de álcool e drogas nos homicídios em Foz do Iguaçu-PR é destacada, já que os municípios de fronteira são, normalmente, dominados por grandes estruturas dedicadas ao contrabando de armas, outros produtos, pirataria e/ou rotas de tráfico.24 Quando da disseminação do uso da cocaína na década de 1980, o território brasileiro foi inserido na rota do tráfico, e as cidades de fronteira tornaram-se caminho fácil para os países produtores da droga; e como consequência, surgiram os fatores que colaboram para o aumento da violência, como o crime organizado relacionado ao tráfico de drogas e o comércio ilegal de armas.20 Em torno de 88,7% dos homicídios ocorridos durante os 11 anos deste estudo no município tiveram como instrumento o uso de arma de fogo.
O presente trabalho apresenta algumas limitações, inerentes a pesquisas com dados secundários. O Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM -, apesar de ser um dos primeiros sistemas de informações implantado pelo Ministério da Saúde e apresentar melhorias ao longo do tempo, seja na cobertura, seja na qualidade dos registros, pode apresentar notificações insuficientes e deficientes em relação à causa básica dos óbitos por causas externas.2,20
Considerando-se as elevadas taxas de mortalidade por homicídios e acidentes de transporte terrestre no município de Foz do Iguaçu, eventos que representam a segunda ou terceira causa principal de mortes na população geral do município, evidencia-se a necessidade de organizar ações políticas de intervenção. Medidas preventivas e de promoção da saúde devem ser discutidas pelos vários segmentos relacionados, sempre com articulação internacional com os países da tríplice fronteira.