Introdução
A dengue é uma doença infecciosa febril aguda, que pode ser benigna ou grave, classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como dengue sem e com sinais de alarme e dengue grave.1 É considerada um problema de Saúde Pública em todo o mundo, especialmente nos países tropicais, cujas condições socioambientais favorecem o desenvolvimento e a proliferação de seu principal vetor, o mosquito Aedes aegypti.2
Em 2002, observou-se uma pandemia de dengue nos países das Américas. No Brasil, em 2008, a incidência da doença alcançou aproximadamente 800 casos por 100 mil habitantes.2 As hospitalizações pela doença chegaram a cerca de 50 mil nos anos de 2002 e 2008.2 No país, as condições ambientais, em geral, propiciam a proliferação do vetor devido à localização geográfica próxima à faixa do Equador. O aumento de casos notificados tem se tornado preocupante, uma vez que pode levar ao aumento do número de internações e de mortes decorrentes da doença.2,3
As consequências da dengue estão além dos problemas gerados para o setor da Saúde, podendo afetar a economia. Por exemplo, os surtos de dengue acarretam gastos e absenteísmo, mantendo indivíduos, enquanto adoecidos, fora do mercado de trabalho.4 Não há consenso na literatura sobre a relação da doença com determinantes socioeconômicos. Porém, os casos vêm atingindo grande número de cidadãos independentemente de sua classificação social e econômica.5 Falta de infraestrutura e de saneamento básico, bem como condições precárias de moradia, têm sido apontadas como fatores contribuintes para o aumento das taxas de incidência da doença.6,7
Estudos que investigam medidas de prevenção e controle da dengue no Brasil não têm mostrado resultados positivos. As estratégias focam principalmente o controle do vetor e não têm sido muito efetivas, o que torna o cenário mais alarmante.8 Alguns autores sugerem que os períodos de baixa incidência sejam resultantes da diminuição da população suscetível à doença e não da efetividade das medidas preventivas.9,10
Embora o país ainda passe por desigualdades no acesso e na utilização dos serviços de saúde,11 é importante destacar que a dengue é um agravo de notificação compulsória e todos os casos suspeitos ou confirmados devem ser notificados ao Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan),12 facilitando a vigilância epidemiológica da doença. Todavia, há poucas pesquisas13,14 que buscam demonstrar como a incidência de dengue se comporta no Brasil, ao longo dos anos, dimensionar o problema e identificar os locais mais afetados. O objetivo deste estudo foi analisar a tendência da incidência de dengue no Brasil, no período de 2002 a 2012.
Métodos
Foi conduzido um estudo ecológico com análise de série temporal referente ao período de 2002 a 2012, utilizando dados do Sinan. Este sistema de informações incorpora uma lista de doenças e agravos de notificação obrigatória, mediante ficha padronizada na qual são registrados dados do indivíduo, sintomas, necessidade de hospitalização, exames laboratoriais e classificação final do caso. O instrumento de registro é preenchido por profissionais de saúde e posteriormente enviado aos núcleos de vigilância epidemiológica. Mais informações são disponibilizadas no sítio eletrônico do Sinan.12
A taxa de incidência de dengue foi calculada como o número de casos novos da doença (clássica e hemorrágica) notificados ao Sinan dividido pela população residente no local e ano, multiplicado por 100 mil habitantes.15 As taxas foram calculadas segundo grandes regiões nacionais, unidades da federação (UF) e grupos etários (em anos: menores de 5; 5 a 9; 10 a 19; 20 a 39; 40 a 59; e 60 ou mais).
Para a análise de tendência, foi utilizada a regressão de Prais-Winsten, considerando-se a autocorrelação serial.16 A partir das taxas de incremento anual (TIA), intervalos de confiança de 95% (IC95%) e valores de p (nível de significância de 5%), classificou-se a tendência das taxas como crescente, estável ou decrescente. Valores de p não significativos resultaram em tendência de estabilidade (aceitando-se a hipótese nula de que as taxas de incidência não se modificaram ao longo dos anos). Já os valores de p significativos resultaram em classificação de tendência de crescimento (TIA positiva) e tendência de diminuição (TIA negativa). Para a taxa de incremento anual - TIA -, utilizou-se o cálculo proposto por Antunes17 {TIA= [-1+(10b)]*100}, em que b é o logaritmo de base natural resultante da regressão Prais-Winsten.
Em outra análise, as UF foram categorizadas segundo o critério do Programa Nacional de Controle de Dengue:18 baixa incidência (até 100 casos por 100 mil hab.); média incidência (101 a 299 casos por 100 mil hab.); e alta incidência (300 casos ou mais por 100 mil hab.). Por fim, foram apresentadas as frequências de UF classificadas em cada categoria, no período de 2002 a 2012.
Os downloads dos bancos de dados foram realizados em arquivos .csv pelo programa Microsoft(r) Office Excel(r) 2010 e posteriormente tabulados e analisados utilizando-se o programa Stata 12.1 (College Station, Texas, USA).
O estudo foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, uma vez que utilizou exclusivamente dados agregados de acesso público.
Resultados
No Brasil, as taxas de incidência de dengue foram de 401,6 por 100 mil habitantes em 2002, e de 301,5 por 100 mil hab. em 2012. A taxa de incremento anual no período foi de 21,4% (IC95% -19,8;83,7), revelando estabilidade das taxas de incidência (Tabela 1).
Também se observou estabilidade das taxas de incidência de dengue na maioria das UF e regiões. Apenas Alagoas e Tocantins apresentaram aumento, com taxas de incremento anual de 38,9% (IC95% 5,1;83,5) e 50,4% (IC95% 12,6;100,7), respectivamente. A única grande região que apresentou crescimento nas taxas foi a região Norte (34,6%; IC95% 10,9;63,3) (Tabela 1).
As UF com maior incidência, em 2002, foram Rio de Janeiro (1.691,6 por 100 mil hab.), Pernambuco (1.235,3 por 100 mil hab.), Espírito Santo (796,0 por 100 mil hab.) e Rio Grande do Norte (764,8 por 100 mil hab.). Em 2012, Rio de Janeiro (1.100,7 por 100 mil hab.) e Rio Grande do Norte (822,1 por 100 mil hab.) permaneceram entre as UF com maior incidência, seguidas por Mato Grosso (1.069,1por 100 mil hab.), Alagoas (856,8 por 100 mil hab.) e Tocantins (826,6 por 100 mil hab.) (Tabela 1).
As regiões que apresentaram maiores taxas de incidência de dengue em 2002 foram Nordeste (548,2 por 100 mil hab.) e Sudeste (480,7 por 100 mil hab.). Em 2012, as maiores taxas de incidência foram registradas nas regiões Nordeste (403,3 por 100 mil hab.) e Centro-Oeste (483,4 por 100 mil hab.) (Tabela 1).
Também foi observada estabilidade nas taxas de incidência de dengue em todas as faixas etárias estudadas. Embora o maior incremento na incidência de dengue tenha ocorrido entre os menores de cinco anos de idade, esse aumento não foi significativo (38,4; IC95% -16,3;128,6) (Tabela 2).
Em 2002, havia menor proporção de UF classificadas como de alta incidência (11/27), na comparação com o fim do período: 16/27 em 2010; e 14/27 em 2012 (Figura 1).
Nos anos de 2002 e 2012, as UF da região Sul se mantiveram com baixa incidência. A maioria das UF da região Norte do país permaneceu com incidência média, observando-se modificações apenas no Acre (média incidência em 2002 e alta incidência em 2012) e Amazonas (baixa incidência em 2002 e média incidência em 2012). As UF da região Centro-Oeste mantiveram-se com alta incidência, à exceção do Distrito Federal, que passou da categoria média para a de baixa incidência. Em sua maioria, as UF da região Nordeste mantiveram-se com alta incidência, embora tenham havido modificações, por exemplo, no Ceará (média incidência em 2002 e alta incidência em 2012). A situação das UF da região Sudeste do país permaneceu entre média e alta incidência; exceto para o estado de São Paulo, que passou de média para baixa incidência (Figura 2).
Discussão
O presente estudo evidenciou que, apesar de a taxa de incidência de dengue ter se apresentado estável no Brasil, no período de 2002 a 2002, houve tendência de aumento na região Norte, assim como nos estados de Alagoas e Tocantins. As taxas de incidência também apresentaram estabilidade em todas as faixas etárias. Ainda que sem significância estatística, observou-se maior incremento entre os menores de cinco anos de idade.
Mesmo que a tendência de dengue no país tenha sido estável ao longo dos 11 anos avaliados, é importante ressaltar que, somada à alta ocorrência, a carga da doença gera grandes desafios para os sistemas de saúde.19
Todos os países das Américas, à exceção do Canadá, estão infestados pelo Aedes aegypti e 60% dos casos relatados à OMS são provenientes da América Latina.20 Nessas regiões, o processo de epidemias de dengue recorrentes tem sido explicado, basicamente, pela urbanização. Ademais, de acordo com as estimativas, as epidemias podem se difundir em países de média e baixa renda, onde a população urbana pode dobrar de tamanho até 2050.20 No Brasil, uma revisão de literatura indicou picos epidêmicos de dengue nos anos de 2002, 2008 e 2010,21 o que vai ao encontro dos achados desta pesquisa.
Estudos realizados no Brasil, entre 2000 e 2012, e na América Latina apontaram que a transmissão da doença tem apresentado um comportamento cíclico, variando entre altas e baixas incidências.20,21 Os picos das epidemias coincidem com as estações chuvosas, e um fator de risco importante observado é morar ou circular em áreas onde estejam ocorrendo casos da doença.22,23 Além dos aspectos relacionados à infraestrutura, que podem contribuir para a proliferação do vetor, o clima está fortemente relacionado com a disseminação do mosquito, que necessita de condições ideais para sua reprodução.24
Coelho3 ainda destaca a importância dos aspectos epidemiológicos e demográficos. Nas últimas décadas, principalmente a partir de 1960, o crescimento populacional ocorreu de forma acelerada no Brasil, além do que a maior parte da população migrou para zonas urbanas.2 A aglomeração urbana tem influência em outros problemas, como o abastecimento de água e o destino inadequado do lixo, características essas que favorecem a proliferação do vetor e consequente aparecimento da doença.2
No período estudado, todas as UF da região Sul apresentaram as menores incidências da doença em comparação com as demais. Este achado corrobora o estudo de Câmara e colaboradores,19 que identificaram menor número de notificações de casos na região Sul, responsável por apenas 1,2% do total das cinco macrorregiões. Uma das possíveis explicações para essa distinção é o clima: o Sul apresenta estações climáticas bem definidas, com temperaturas menores em relação às das demais regiões do país. Estas condições, embora não impeçam, desfavorecem a proliferação do mosquito.25
Tocantins e Alagoas, localizados nas regiões Norte e Nordeste respectivamente, apresentaram tendência de aumento das taxas de incidência de dengue. Câmara e cols.19 evidenciaram que a região Nordeste concentrou elevado número de notificações no Brasil, entre 2001 e 2003. O Norte apresenta a maior extensão em área geográfica no país, grande parte dela formada por matas nativas; porém, seus núcleos urbanos contam com alta densidade populacional, além de outros fatores relacionados à proliferação do vetor da dengue, como falta de infraestrutura, planejamento desordenado e urbanização acelerada.24 Essas condições, em conjunto com as particularidades de cada município, podem contribuir para o aumento das taxas da doença na região.
Na maioria das UF, a dengue continua a representar um problema de Saúde Pública importante. Apesar de ter sido observado incremento em apenas duas UF, nas demais houve estabilidade da taxa de incidência da dengue e em nenhuma delas verificou-se diminuição, não obstante as campanhas de combate ao vetor.2 Embora estáveis, em muitas UF, as taxas foram altas, indicando a necessidade de novas estratégias de prevenção e controle, e reforço daquelas já existentes, para o combate de novos casos da doença.
Ao se observar a tendência de incidência de dengue segundo faixas etárias, percebe-se que as incidências se mantiveram estáveis, tanto em 2002 como em 2012, ainda que se tenham mostrado maiores no grupo entre 20 e 39 anos e menores no grupo com menos de cinco anos de vida. É possível que fatores individuais, como idade, exerçam pouca influência na incidência da dengue. Já fatores contextuais, como clima, densidade populacional, entre outros, estão bem estabelecidos na literatura como associados à incidência da doença.19,24,25
Em relação às menores incidências em crianças com menos de cinco anos, Rodrigues e cols.26 levantaram uma série de questões relativas ao diagnóstico de dengue, como as diferenças entre os critérios de definição ou a dificuldade para diferenciar a dengue de outras doenças febris presentes na infância. Os mesmos autores ressaltam que a dengue na infância pode ser assintomática, na maioria das vezes. Portanto, é possível que o número de casos de dengue entre crianças ainda seja subnotificado, não obstante a melhora do diagnóstico nessa faixa etária.26
Uma das possíveis explicações para o presente estudo não encontrar uma tendência de redução ou de aumento nas taxas de incidência de dengue na maioria das UF e das cinco macrorregiões do país é a alta variabilidade observada1: mudanças relativamente grandes, de um ano para outro, embora, em grande parte das vezes, essas mudanças tivessem sentidos diferentes, ora de aumento, ora de redução da incidência.2 Isto acabou resultando em intervalos de confiança muito amplos e, consequentemente, falta de precisão nas medidas encontradas - fato que não constitui, necessariamente, uma limitação mas expressa a real variação anual de cada UF e macrorregião ao longo do período avaliado.
Por se basear em dados secundários, cabe sim apontar algumas limitações inerentes ao presente estudo. Primeiramente, o subdiagnóstico e a subnotificação são reconhecidos, sendo possível que as taxas apresentadas subestimem a real incidência da doença. Segundamente, a cobertura e a qualidade do preenchimento das fichas de notificação pode variar de uma região para outra, representando mais uma dificuldade para a comparação das taxas de incidência entre diferentes unidades geográficas. Da mesma forma, essas taxas podem variar ao longo do tempo, afetando as tendências apresentadas.
Supondo-se que a cobertura e a qualidade do Sinan tenham-se aprimorado com o passar do tempo, tais melhorias explicariam, ao menos parcialmente, as tendências de incremento observadas. Entretanto, outros fatores poderiam influenciar nos resultados aqui apresentados, como por exemplo, temperatura, sazonalidade, comportamento do vetor e aspectos socioculturais e imunológicos da população.27,28 Cabe destacar que este estudo não explorou análises com variáveis climáticas, territoriais, pluviométricas, além do índice de infestação predial, fatores que se têm revelado úteis como indicadores na transmissão da dengue.29
Os achados deste trabalho contribuem para o entendimento da dinâmica da dengue no Brasil e nas UF. O fato de as tendências encontradas serem somente de estabilidade ou aumento sugere a necessidade de ações mais efetivas para o controle da doença, inclusive de reestruturação da vigilância epidemiológica, revisão das políticas, inclusão das realidades locais, gestão ambiental e integração das ações da Saúde com outros setores dos governos e da sociedade.
São necessários esforços e ações tendo por objetivo reduzir os casos de dengue, com foco principal nas unidades da federação com alta incidência. Embora já exista uma vacina aprovada no Brasil e outras em desenvolvimento, estudos mostram que estratégias como a incorporação dos chamados Agentes de Controle de Vetores na atenção primária à saúde, ações educativas nas escolas, abordagens na mídia e a implementação de atividades com a participação da comunidade podem ajudar na conscientização da população e consequente controle do vetor.30 Políticas públicas mais amplas mostram-se necessárias, como medidas destinadas a reduzir a aglomeração urbana, melhorar as condições de saneamento e evitar enchentes, e que aumentem o escoamento de água em períodos de chuva. Sugere-se, também, que estudos com delineamentos mais robustos sejam realizados para investigar fatores individuais e do ambiente capazes de contribuir para o aumento substancial no número de casos de dengue em alguns locais.