O perfil epidemiológico da doença de Chagas no Brasil foi substancialmente alterado com o exitoso resultado das ações de controle, além das transformações ambientais e de ordem socioeconômica pelas quais vem passando o país.1 O cenário tradicional de transmissão vetorial intradomiciliar, majoritário desde a descoberta da doença e responsável por dezenas de milhares de casos ocorridos anualmente, cedeu lugar à transmissão ligada ao ciclo silvestre do parasito e atualmente, concentra-se na Região Amazônica, refletido em cerca de 150 casos novos/ano.2,3
Como marcador do impacto positivo do controle, em paralelo com a drástica redução da infestação domiciliar pelos principais vetores, a prevalência de infecção por Trypanosoma cruzi, estimada em mais de 5% entre crianças de áreas endêmicas durante a década de 1960, reduziu-se a menos de 2% nos anos 1990. Os achados do último inquérito nacional, realizado em 2008, indicam que atualmente, essa prevalência é inferior a 0,1%.4
Acrescentou-se aos avanços do controle a mudança do perfil tradicional da enfermidade, como consequência dos movimentos de migração rural-urbana ocorridos na América Latina entre os anos 1970 e 1980. A urbanização da doença, inicialmente, aumentou a prevalência da infecção por transfusão de sangue.5 Dada a relevância do problema detectado, no contexto da implementação do controle da transmissão transfusional de outras infecções - especialmente do vírus da imunodeficiência humana (HIV) a partir de 1980 -, procurou-se o controle dessa via de transmissão da doença de Chagas.6
Não obstante o considerável impacto das atividades de prevenção e controle adotadas no âmbito das políticas nacionais, estima-se que ainda exista mais de um milhão de pessoas vivendo com a infecção por T. cruzi no Brasil, revelando a magnitude da doença como condição crônica.7 Entre os anos de 2009 e 2013, foram registrados 23.568 óbitos cuja causa básica foi a doença de Chagas.8 Tal volume de casos fatais demanda esforços de articulação das ações de vigilância em saúde, com envolvimento multissetorial, principalmente concentrados no eixo da participação efetiva da rede assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS).
Esses esforços envolvem processos de tomada de decisão, fundamentados em evidências científicas. Os desafios para sua consecução encontram-se no controle ou eliminação das doenças negligenciadas. Como exemplo, apesar do crescente aumento em investimentos mundiais em saúde, observa-se um desequilíbrio na injeção de recursos dirigidos às doenças negligenciadas.9
No Brasil, torna-se imprescindível o papel do Estado na superação dessa lacuna e na priorização e financiamento de pesquisas relacionadas aos agravos negligenciados. Em relação à doença de Chagas, editais publicados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pelo Ministério da Saúde (MS), por seu Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (Decit/SCTIE/MS), lançaram chamadas para pesquisas em doenças negligenciadas e mais recentemente, um edital específico para doença de Chagas.
Particularmente, destaca-se o papel de outras organizações, brasileiras e internacionais, as quais vêm conduzindo ensaios clínicos de novos compostos para o tratamento da doença de Chagas, buscando um melhor perfil de segurança e eficácia que o oferecido pelos tratamentos atuais, ou a avaliação de sua associação com outros fármacos.10
Publicado em 2015, os resultados do estudo prospectivo multicêntrico randomizado, denominado BENEFIT, mostraram que em pacientes com cardiopatia instalada, a deterioração clínica cardíaca não foi reduzida significantemente com o uso do benznidazol, apesar da redução da detecção do parasito, avaliada pela reação em cadeia da polimerase (PCR). O estudo também revelou diferenças regionais na resposta terapêutica, e boa tolerabilidade, em geral, ao fármaco empregado.11 Sobre o benefício clínico, os resultados vão de encontro a outros estudos e da própria experiência acumulada nos diversos países, que sugerem, fortemente, o tratamento etiológico como um procedimento capaz de (i) minimizar ou retardar a progressão da doença em percentual significativo de casos na forma indeterminada e naqueles com ausência de cardiopatia avançada,12-14 além de (ii) diminuir a chance de transmissão congênita quando mulheres infectadas são tratadas previamente à gestação.15,16
Mostra-se evidente, portanto, a necessidade de revisão dos critérios de inclusão e exclusão no protocolo de tratamento antiparasitário, dentro de rigorosos parâmetros, conforme a evidência científica disponível e a precisão de indicação. Frente ao cenário atual da doença, especialmente na América Latina, corre-se um risco importante de perda da oportunidade de tratar alguns milhões de infectados na forma indeterminada ou mesmo em formas clínicas iniciais.
Nessa conjuntura, destaca-se a importância da elaboração de um Protocolo Clínico e de Diretrizes Terapêuticas da doença de Chagas (PCDT), mediante a revisão e atualização periódica das diretrizes nacionais para diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos indivíduos infectados em suas diferentes fases e formas clínicas. O Ministério da Saúde vem trabalhando na construção desse protocolo, com o objetivo de garantir que as diretrizes nacionais atendam à integralidade dos serviços de saúde e subsidiem gestores, profissionais e usuários do SUS no cumprimento desse princípio.
Da mesma forma, a revisão e atualização do Consenso Brasileiro em doença de Chagas17 fez-se necessária e extremamente oportuna, seja para corresponder aos constantes avanços científicos, seja para responder ao desafio dos cambiantes cenários eco-epidemiológicos e sociais da enfermidade no país.
O Consenso Brasileiro em doença de Chagas, publicado em 2005, fruto do trabalho conjunto da comunidade acadêmica e de instituições do SUS, é um precursor da mudança do olhar sobre a doença no Brasil, resumido em três grandes eixos: a (i) necessidade da manutenção da vigilância nas áreas de controle da transmissão intradomiciliar; a (ii) emergência de formas de transmissão ligadas ao ciclo silvestre, especialmente a transmissão por via oral, pouco suscetível às estratégias tradicionais de controle; e a (iii) atenção aos indivíduos com a infecção crônica.
Progressivamente, tem-se ressaltado que o tratamento das pessoas infectadas por T. cruzi não deve se restringir apenas à farmacoterapia específica e sintomática, cabendo proporcionar-lhes uma atenção integral, independentemente da forma clínica.
O Decreto no 7.508, de 28 de junho de 2011, ao dispor sobre a organização do SUS e a assistência à saúde, preconiza que, para garantir a integralidade, os serviços devem ser organizados na forma de uma Rede de Atenção à Saúde (RAS), caracterizada pela proposição de relações horizontais entre os pontos de atenção, promovendo a integração sistêmica de ações e serviços de saúde, a centralidade nas necessidades em saúde da população e a responsabilização na atenção contínua de qualidade, responsável e humanizada.18,19
A partir dos fundamentos conceituais e operativos essenciais ao processo de organização da RAS, o Ministério da Saúde elaborou as diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas pelas redes de atenção à saúde, com linhas de cuidado prioritárias20 para as doenças/fatores de risco mais prevalentes: doenças renocardiovasculares; diabetes; obesidade; doenças respiratórias crônicas; e câncer (de mama e de colo do útero).
Apesar de esses agravos serem não transmissíveis, as diretrizes também são aplicáveis à doença de Chagas, cuja cronicidade - a despeito de sua especificidade clínica -, relaciona-se principalmente a alterações cardiovasculares e digestivas. Ademais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) trouxe uma nova e mais abrangente contribuição à definição das condições crônicas, ao considerar: quando as doenças transmissíveis tornam-se crônicas, essa delimitação entre ‘transmissível’ e ‘não transmissível’ mostra-se artificial e desnecessária, e pode não ser tão útil quanto são os termos ‘agudo’ e ‘crônico’ para descrever o espectro dos problemas de saúde.21
A atenção ao portador de doença de Chagas no SUS exige o desenvolvimento de uma ampla rede hierarquizada de serviços que, uma vez distribuída geograficamente, segundo a endemicidade da região, proveja o atendimento ambulatorial básico, nas diversas modalidades clínicas da infecção. Concomitantemente, devem ser desenvolvidas ações de Saúde Pública22 com envolvimento de equipes multidisciplinares, não somente para o tratamento antiparasitário como também para promover melhora da qualidade de vida, considerando-se, inclusive, os aspectos psicossociais e todo o estigma relacionado à enfermidade.