Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
- Citado por SciELO
Links relacionados
- Similares en SciELO
Compartir
Epidemiologia e Serviços de Saúde
versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.21 n.2 Brasília jun. 2012
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742012000200012
ARTIGO ORIGINAL
Violência interpessoal: estudo descritivo dos casos não fatais atendidos em uma unidade de urgência e emergência referência de sete municípios do estado de São Paulo, Brasil, 2008 a 2010*
Interpersonal violence: descriptive study of not fatal cases assisted in an emergency reference unity to seven municipalities of the state of São Paulo, Brazil, from 2008 to 2010
Lenise Patrocínio Pires CecilioI; Cléa Adas Saliba GarbinII; Tânia Adas Saliba RovidaII; Ana Paula Dossi de Guimarães e QueirózII; Artênio José Ísper GarbinII
IDepartamento de Odontologia Infantil e Social, Universidade Estadual Paulista, Araçatuba-SP, Brasil. Prefeitura Municipal de Penápolis-SP, Brasil
IIDepartamento de Odontologia Infantil e Social, Universidade Estadual Paulista, Araçatuba-SP, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: descrever o perfil dos casos não fatais de violência interpessoal atendidos em uma unidade de urgência e emergência de referência para sete municípios do estado de São Paulo, no período 2008-2010.
MÉTODOS: os dados dos casos notificados à Vigilância Epidemiológica de Penápolis foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan); as variáveis foram apresentadas conforme a Ficha de Notificação/Investigação Individual de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências.
RESULTADOS: foram estudados 109 casos; a maior parte das vítimas eram jovens do sexo feminino (93,6%) e os agressores, majoritariamente homens (57,8%), cônjuges ou parentes/conhecidos das vítimas. A violência física foi a principal forma de agressão (93,6%), ocorrida, principalmente, nas residências (67,9%), aos domingos (16,5%), entre 18:01 e 24:00 horas (57,8%).
CONCLUSÃO: os casos notificados apresentaram perfil compatível com violência intrafamiliar doméstica contra mulheres, diferentemente dos estudos sobre violência interpessoal nas grandes cidades e Regiões Metropolitanas.
Palavras-chave: Violência; Serviços Médicos de Emergência; Agressão; Epidemiologia Descritiva; Saúde Pública.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to describe the profile of non-fatal cases related to interpersonal violence treated in an emergency care unit of reference that serves seven municipalities of the state of São Paulo, Brazil, from 2008 to 2010.
METHODS: the study data came from the cases reported from the Epidemiological Vigilance in Penápolis-SP to the Brazilian Information System for Notifiable Diseases; variables were shown according to the Notification/Investigation Individual Formulary of Domestic, Sexual, and/or other Types of Violences.
RESULTS: 109 occurrences were studied; most of the victims were young andfemale (93.6%); and the aggressors, mostly were men (57.8%), partners or relatives/acquaintances of victims. Physical violence was the main form of aggression (93.6%), principally in the home (67.9%), on Sunday (16.5%), between 6:01pm and 12:00pm (57.8%).
CONCLUSION: the cases reported had a consistent profile of domesticfamily violence against women, differentfrom other studies about interpersonal violence in large cities and metropolitan regions.
Key words: Violence; Emergency Medical Services; Aggression; Epidemiology, Descriptive; Public Health.
Introdução
No Brasil, a violência representa a terceira causa geral de óbitos - a primeira entre adolescentes e adultos - e provoca graves prejuízos sociais, familiares, pessoais e econômicos. No ano de 2004, aproximadamente 90 bilhões de reais, 5,0% do produto interno bruto (PIB) brasileiro, foram gastos diretamente na assistência às vítimas e, de forma indireta, na reparação dos danos causados pela violência no país.1 A magnitude do problema evidencia a necessidade de um enfrentamento contundente e imediato e as estratégias para tal devem-se embasar em dados que identifiquem suas principais características.
Embora apresente várias manifestações (agressão física, abuso sexual, abuso psicológico, omissões e violência interpessoal nas relações institucionais, sociais e de trabalho, políticas, estruturais, culturais, criminais e de resistência),2 perceber a violência como um fenômeno controlável e transformável, a ser abordado por diversos atores sociais,3 é fundamental para o avanço das ações intersetoriais de intervenção sobre esse agravo.
Compreender as características epidemiológicas de qualquer tipo de violência é o primeiro passo para o desenvolvimento de estratégias de atuação.
Vista, sobretudo, como um processo social, a violência exerce grande influência na área da Saúde e suas consequências implicam elevados gastos com estruturas pré-hospitalares, de emergência, assistência e reabilitação. Além de atender suas vítimas, a Saúde Pública tem a missão de elaborar estratégias de prevenção de modo a promover a saúde da população.4,5
O Brasil foi pioneiro ao adotar, desde 2001, uma Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências.4 Na última década, houve um avanço nas pesquisas sobre o tema junto ao Ministério da Saúde, universidades e outras instituições. Porém, os estudos e as políticas concentram-se nas capitais e grandes cidades do país, na abordagem mais frequente da mortalidade.
Em todo o mundo, os dados referentes à mortalidade têm sido mais utilizados pela maior facilidade de sua obtenção.6 É difícil quantificar o impacto da violência não fatal, seja pela escassez, seja pela imprecisão dos dados disponíveis.5,7 A maior parte das informações encontradas em estudos caracteriza os casos mais graves, com morte ou internação como desfecho, impossibilitando o conhecimento das lesões menos graves,8,9 geralmente subestimadas e subnotificadas embora frequentemente atendidas nos serviços pré-hospitalares, prontos-socorros e unidades de urgência e emergência.
As informações disponíveis sobre óbitos e internações são úteis para monitorar a vigilância epidemiológica das causas externas, apesar de que "... não fornecem dados sobre as lesões de menor gravidade, ... responsáveis por uma grande demanda de atendimento nos serviços de emergência."10 Estimativas apontam que para cada homicídio, 20 a 40 casos de violência não fatal são atendidos pelos serviços de saúde.7 Em 1998, Minayo e Souza5 já apontavam para a pouca visibilidade concedida a esse tipo de agravos.
Não obstante a criação de uma Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde em 200411 e a implantação do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) em 2006,9,12 as informações referentes à morbidade por violência, agressão e maus tratos permanecem, de certa forma, escassas, principalmente quando se trata de municípios menores e regiões interioranas.
Na literatura, foram encontrados poucos estudos sobre violência em municípios de pequeno e médio porte. Os dados e informações sobre a situação de violência em capitais ou regiões metropolitanas, outrossim, são frequentes, porém, devido às suas particularidades, podem não contribuir acertadamente para a criação de políticas adequadas às características loco-regionais. Neste trabalho, tomou-se por hipótese que a ocorrência da violência interpessoal no interior dos Estados, em pequenos municípios, tenha características distintas das encontradas nas grandes cidades e, portanto, necessite diferentes estratégias de enfrentamento.
O objetivo deste estudo foi descrever o perfil dos casos não fatais de violência interpessoal. Foram analisados os casos atendidos em uma unidade de urgência e emergência de referência para sete municípios do interior do estado de São Paulo e notificados à Vigilância Epidemiológica da cidade de Penápolis-SP, para mostrar as características da violência interpessoal fora das capitais e Regiões Metropolitanas.
Métodos
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo transversal, realizado na região do primeiro Consórcio Intermunicipal de Saúde do Brasil, o CISA, implantado em 1986, com sede no município de Penápolis, interior de São Paulo. O CISA congrega o município-sede e outros seis, de pequeno porte: Alto Alegre-SP; Avanhandava-SP; Barbosa-SP; Braúna-SP; Glicério-SP; e Luiziânia-SP. O universo populacional da região consorciada é de aproximadamente 112 mil pessoas, 45% delas concentradas no município-sede. Para efeitos deste estudo, considerou-se como municípios de pequeno porte aqueles com população inferior a 20 mil habitantes, e de médio porte os que contam entre 20 e 100 mil habitantes.
Foram objeto do estudo os casos de violência interpessoal ocorridos nos sete municípios consorciados, notificados junto à Vigilância Epidemiológica e atendidos pela Unidade de Urgência e Emergência (Pronto-Socorro) de referência nos anos de 2008, 2009 e 2010.
A Unidade de Urgência e Emergência atua 24 horas/dia, conta com dois médicos plantonistas e realiza, aproximadamente, 5 mil atendimentos/mês. Após a detecção ou suspeita da ocorrência de violência, a equipe de enfermagem preenche a Ficha de Notificação, enviada para a Vigilância Epidemiológica do município de Penápolis-SP semanalmente. É nesse município que são registrados os dados de todos os demais municípios atendidos pela Unidade de Urgência e Emergência.
Entende-se como 'violência' a relação, processo ou condição em que há violação da integridade física, psicológica ou social mediante uso de força física, poder real ou ameaça a um indivíduo, classe, grupos ou nações, contra si próprio ou contra a coletividade, que resulte ou possa resultar em morte, danos físicos, psicológicos, emocionais e espirituais, deficiência de desenvolvimento ou privação.2,13,14
Neste trabalho, a expressão 'violência interpessoal' foi adotada para designar a situação relacional em que há uso intencional da força física ou do poder, real ou na forma de ameaça, de uma pessoa contra outra, destacando a intencionalidade do ato violento. Particularmente neste estudo, ademais, foi considerado 'caso de violência interpessoal' todo atendimento resultante de agressão/maus tratos desferidos a outrem, que tenha como desfecho a alta do paciente. Foram excluídos, portanto, os casos de morte e internação seguida de óbito, com o propósito de estudar apenas a morbidade por essa causa.
Os dados foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). As variáveis foram apresentadas conforme constam na Ficha de Notificação/Investigação Individual de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências, do Sinan, e as escolhidas para o presente trabalho foram: sexo, faixa etária, raça ou cor, escolaridade e situação conjugal da vítima; sexo do agressor e seu vínculo/grau de parentesco com a vítima; e dados referentes à agressão sofrida, como tipo, natureza, parte do corpo atingida, meio de agressão, frequência, local, dia da semana e horário da ocorrência.
A consolidação dos dados foi realizada na forma de tabelas de distribuição de frequência, geradas pelo aplicativo TabNet e importadas pelo programa TabWin (Tab para Windows 2,0), ambos desenvolvidos pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus). As informações foram analisadas sob a forma de números absolutos e proporções, uma vez determinadas as prevalências e razões entre os sexos.
Os dados foram agrupados conforme categorias: características da vítima e do autor da agressão/violência sofrida, e características da ocorrência. Os casos com resultado zero não foram excluídos, a fim de auxiliar na caracterização epidemiológica.
A pesquisa utilizou dados secundários, sem risco para a população do estudo ou identificação nominal dos sujeitos. Foram cumpridas as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos, estabelecidas pela Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde - CNS. O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista 'Júlio de Mesquita Filho' - Unesp -, Campus de Araçatuba-SP: Processo no 00645/2010.
Resultados
No período estudado, foram notificados 109 casos de violência interpessoal. Entre as principais características das vítimas, a maioria era do sexo feminino, 93,6%, contra 6,4% do sexo masculino, implicando uma razão feminino/masculino (F/M) de 14,6:1. A faixa etária predominante entre as vítimas atendidas foi a de 20 a 34 anos (43,1%), seguida do estrato de 35 a 49 anos de idade (21,1%). A maioria das vítimas era da cor ou raça branca (69,7%) e 23,8% tinham Ensino Fundamental incompleto. Quanto à situação conjugal, observou-se a mesma proporção de solteiras ou casadas/união consensual (35,8%) (Tabela 1).
Em relação ao autor da agressão, a maioria era do sexo masculino (63,3%), tanto para as vítimas masculinas quanto para as femininas. Em 8,2% das ocorrências houve envolvimento de ambos os sexos. Suspeitou-se do uso de álcool pelo agressor em 35,8% dos casos mas a maior parte das vítimas (55,0%) informou não suspeitar do uso da substância. O vínculo/ grau de parentesco mais frequente entre agressores e vítimas foi o de cônjuges (22,9%), seguido de amigos/ conhecidos (21,0%) (Tabela 2).
Quanto às características da violência, em 41,3% dos casos ela era repetida, ou seja, já havia ocorrido outras vezes. O tipo de violência mais frequente foi a física (93,6%), seguida de psicológica/moral (50,5%) e da tortura (20,2%). Nesta avaliação, observou-se uma frequência maior que 100,0% na soma dos tipos de violência sofridos, o que demonstra que a mesma vítima sofreu mais de um tipo de violência.
O meio de agressão mais utilizado foi a força corporal/espancamento (80,7%). A prática de ameaça, o uso de objeto contundente e o enforcamento foram encontrados, respectivamente, em 22,0%, 12,8% e 11,0% dos casos. Também foi observada a ocorrência de mais de um meio de agressão por notificação. O tipo de lesão que apareceu com valor proporcional mais expressivo foi a contusão (36,7%). Corte/perfuração/ laceração vem em seguida, com 21,0%. As partes do corpo mais atingidas pela agressão foram a cabeça/face (47,7%) e os membros superiores (20,18%), sendo a primeira mais comum nas mulheres, e a segunda, nos homens (Tabela 3).
As características da ocorrência de violência demonstram que a residência foi o locus privilegiado, alcançando o índice de 67,9%, e, com menos da metade dessa proporção, a via pública (23,8%). Da totalidade dos casos, 89,9% foram confirmados, 4,6% considerados prováveis e 5,5% inconclusivos (Tabela 4).
A maioria dos atendimentos aconteceu aos finais de semana, com predominância no domingo (16,5%), no horário compreendido entre 18:01 e 24:00 horas (57,8%), e o período do ano predominante de ocorrências foi o mês de fevereiro (12,8%) (Tabela 5).
Discussão
A violência interpessoal, um fato que se tem apresentado habitual em nossa sociedade, é um fenômeno universal a afetar diferentes grupos sociais e etários e exibir uma multiplicidade de manifestações. Observa-se, entretanto, uma escassez de estudos que trabalhem com a morbidade causada por violências, principalmente em cidades de pequeno e médio porte e regiões interioranas.
Esta pesquisa apresenta algumas considerações importantes. A despeito da possibilidade de subnotificação dos atendimentos por violência, a subprocura por atendimento médico das vítimas do sexo masculino, muito provavelmente, está mais relacionada a fatores culturais que epidemiológicos. Assim, esses dados não devem ser generalizados, tampouco desprezados uma vez que podem fornecer subsídios para a formulação de políticas e intervenções sociais por parte dos entes públicos.
Entre os pontos fortes do trabalho, está a relevância dos dados em relação às regiões interioranas. Estas não são foco preferencial dos pesquisadores mas podem apresentar perfil epidemiológico diferente das grandes cidades e regiões metropolitanas e carecerem, portanto, de mais estudos e informações sobre os diversos agravos que atingem sua população.
Embora este seja um trabalho descritivo, o tema da violência traz a necessidade de discussões e reflexões sobre as principais características - não só epidemiológicas como também sociais - e tendências de ocorrência da violência, capazes de ajudar no direcionamento das ações para públicos-alvo específicos.
A intencionalidade relacionada à ocorrência de atos violentos sugere que este seja um agravo passível de atuação dos mais diversos setores da sociedade. Minayo4 afirma que, embora a intencionalidade possa ocorrer também de forma indireta, a ideia da intenção demonstra que existe a responsabilidade dos sujeitos. Estes, em seus contextos sociais, seriam os principais alvos de intervenções e, para tal, dever-se-ia conhecê-los.
Os resultados deste estudo demonstraram a predominância de vítimas do sexo feminino, na proporção de 14,6:1 sobre o sexo masculino, o que difere da maioria dos trabalhos relacionados à violência interpessoal como um todo, que apontam a prevalência de homens.1,4,8,9,15-19 Diante dos achados aqui apresentados, supõe-se que esta diferença esteja associada às características da violência mais prevalente nos municípios. Os municípios maiores apresentam mais casos de violência interpessoal nas formas criminais e deliquenciais, que atingem mais vítimas do sexo masculino, e que são menos frequentes nas regiões interioranas, onde são encontrados mais casos de violência intrafamiliar, doméstica e de gênero, fenômenos sociais de caráter histórico abrangente não exclusivo das grandes cidades. Quando se analisa estudos específicos sobre violência intrafamiliar, o sexo feminino é o mais atingido,3,20 como foi encontrado neste trabalho.
Outro aspecto que pode estar relacionado aos resultados encontrados é que, conforme dados estatísticos da Unidade de Urgência e Emergência focada neste estudo, 61,0% dos atendimentos são de ambulatório.21 Excluídas as internações e os óbitos, estima-se que os casos avaliados, não letais e menos graves, ainda que tenham sido atendidos em uma unidade de urgência e emergência, possam-se tratar, em sua maioria, de ocorrências ambulatoriais. Pesquisas demonstram: a população que mais procura atendimento médico ambulatorial é a feminina, principalmente por questões culturais relacionadas a masculinidade e vulnerabilidade.22,23
Este trabalho teve como foco a violência interpessoal geral mas os resultados encontrados são compatíveis com o perfil da violência interpessoal doméstica, intrafamiliar e de gênero - em relação a esta última, sem apresentar simetria, sendo mais expressiva a violência contra a mulher.
Qaunto à faixa etária, independentemente de gênero, os resultados coincidem com os achados de muitos autores,9,15-17,24-27 ainda que se analise tipos de violências diversos. A população adulta é a mais atingida por esse agravo, e vale destacar que a incidência da violência, intencional ou não, sobre adultos jovens em idade produtiva pode ser de grande impacto para a sociedade e as famílias, em 'anos potenciais de vida perdidos'. Conforme afirma Norman e colaboradores,28 a violência interpessoal é o segundo maior fator de risco para a perda de anos saudáveis de vida.
Também é mportante salientar a especificidade do local de coleta dos dados notificados. Por se tratar de uma unidade de saúde, a busca por atendimento cabe exclusivamente à vítima. Quando pensamos nas crianças e idosos agredidos, que não têm condição de fazê-lo ou mesmo efetuar uma denúncia ou notificação formal, eis aqui mais um fator relevante para esta discussão. Se os dados fossem retirados das bases de dados do Conselho Tutelar, Conselho do Idoso, ou de documentos e inquéritos policiais, a distribuição epidemiológica do agravo por faixas etárias poderia ser diferente, ampliando a possibilidade de novas pesquisas nessa região.
A observância da cor de pele ou raça das vítimas revelou maior proporção de brancos, população predominante nos municípios. Porém, a identificação da cor da pele ainda é questão complexa e controversa, não havendo consenso quanto a essa classificação. Sendo assim, este achado não será alvo de discussão aqui. Ademais, quando associada a outras variáveis, a raça ou a cor da pele pode estar relacionada à ocorrência da violência, no entanto, isoladamente, constitui atributo biológico que não deve ser considerado como fator determinante do fenômeno.5
Quanto ao tipo de violência, a mais frequente foi a física (93,6%), seguida de psicológica/moral (50,5%). Um fato, causador de estranhamento, é a tortura posicionada em terceiro lugar nessa lista de frequências, representando 20,2% dos casos e indicando a necessidade de se definir o que vem a ser tortura para fins de notificação. Como a ficha do Sinan não o faz e os funcionários que a preenchem não têm um protocolo definido com esse objetivo, a hipótese suscitada por estes autores é de que o termo 'tortura' tenha sido utilizado para os casos violentos de maior gravidade e crueldade. Há divergências na definição desse conceito entre as áreas da Justiça e da Saúde, o que remete à oportuna padronização e qualificação dos profissionais para sua utilização adequada.
A situação conjugal das vítimas e seu grau de parentesco com os autores da violência demonstram que a maior parte das ocorrências envolve relações afetivas (ou "desafetivas") entre parceiros ou ex-parceiros. Isto corrobora o resultado de estudo sobre a arqueologia da agressividade humana desenvolvido por Lessa,29 que aponta a ruptura temporária dos mecanismos e relações de convívio e o rearranjo permanente dos papéis sociais como combustível para situações potenciais de violência. Confirma-se, mais uma vez, a importante contribuição dos dados relativos à violência intrafamiliar e de gênero no que concerne à epidemiologia da morbidade das agressões e maus-tratos.
A informação e os resultados do presente estudo, de que a maior parte das ocorrências tenha-se dado no interior da residência, com o sexo feminino como vítima de agressões diversas provocadas por familiares, vai ao encontro dos achados de Oliveira25 e Mascarenhas8,9 quando separarem seus resultados por sexo. Em maior ou menor grau, a violência intrafamiliar está presente - e dispersa - na maioria das pesquisas sobre a violência interpessoal. Estima-se que 12,0% das famílias apresentem episódios de violência e, em 40,0% dos casos, associados a diferentes tipos de agressão (psicológica, física, por negligência).3
Seja qual for a tipologia da violência, um achado alarmante e preocupante, a requerer atenção e iniciativa de toda uma sociedade, relaciona-se ao perfil do agressor. Dados de mortalidade, morbidade, criminalidade e delinquência, violência contra mulheres, idosos e até mesmo crianças, todos apontam para o sexo masculino como o mais prevalente autor de agressão.4,10,12,17 Ainda que estudos recentes e específicos sobre violência conjugal comecem a apresentar simetria e reciprocidade nas agressões entre parceiros íntimos, quando se observa o conjunto dos eventos de violência, encontra-se o sexo masculino como principal autor. As formas tradicionais de violência praticadas pelos homens têm conservado as mesmas características históricas, independentemente da condição da vítima, talvez herança de um comportamento cultural machista, de origem patriarcal, a atravessar as gerações.4
Ao se analisar o sítio das lesões, a cabeça/face e os membros superiores foram as regiões do corpo mais atingidas, de acordo com a maioria dos artigos pesquisados. Essa informação pode estar relacionada tanto ao caráter simbólico de humilhação, que o agente imprime ao atingir o rosto da vítima, quanto ao comportamento defensivo por parte da vítima, que usa os membros superiores como defesa.27
Já a prevalência de um número maior de casos nos finais de semana pode estar relacionada ao fato de os indivíduos concentrarem seu lazer nesse período, quando ingerem bebida alcoólica e assumem comportamentos propiciadores de um ambiente mais fértil para o conflito.30 Esta também pode ser a explicação para fevereiro ter apresentado maior proporção de casos que os demais meses do ano, pois é naquele mês que ocorre o carnaval, festa associada ao maior consumo de bebidas alcoólicas.
Grande parte dos problemas com violência não acontece no confronto com bandidos e sim onde vive, trabalha e se diverte a população comum. É principalmente nos conflitos interpessoais, desavenças, brigas de vizinhos, contendas conjugais e pós-bebedeira em bares que as pessoas perdem o controle emocional e criam a oportunidade para o ato violento.4
A maior parte das vítimas de violência interpessoal nos sete municípios avaliados e que procurou atendimento na Unidade de Urgência e Emergência de referência foi do sexo feminino, brancas, com idade entre 20 e 34 anos e Ensino Fundamental incompleto, sem distinção entre solteiras e casadas ou vivendo em união consensual, agredidas por homens, cônjuges ou conhecidos das vítimas dentro da própria residência, durante os finais de semana, entre as 18:01 e 24:00 horas. O tipo de violência mais prevalente foi a física, acompanhada da psicológica; e o meio de agressão utilizado foi a força corporal, seguida de ameaça. Grande parte das vítimas sofreu contusão nas regiões da cabeça/face e dos membros superiores e, em muitos casos, além do autor poder estar sob uso de álcool, a agressão já ocorrera outras vezes.
Os resultados demonstraram que o perfil epidemiológico mais frequente da morbidade causada por violência interpessoal fora das grandes cidades e regiões metropolitanas, quando se analisa os casos que procuram por atendimento médico de urgência, é compatível com violência intrafamiliar e doméstica. A coleta de dados mediante inquéritos policiais ou entrevistas pessoais poderia revelar outros aspectos, não encontrados aqui, o que abre um leque de alternativas para o desenvolvimento de próximos estudos nessas regiões.
Há que se avançar na compreensão do fenômeno da violência. Mais do que agir sobre um agravo gerador de estatísticas, deve-se encontrar maneiras de atuar nas diversas formas de violência velada, não notificada e, muitas vezes, quase imperceptível ou mesmo ignorada. Explícita ou não, a complexidade que envolve o assunto requer abordagem multidisciplinar, multifatorial e intersetorial, com foco nas diversas características sociodemográficas e culturais associadas a sua ocorrência.
Com suas múltiplas faces, a violência continuará a impactar a sociedade, diminuir a qualidade de vida das pessoas, provocar danos físicos, emocionais e sociais aos indivíduos, acarretando elevados gastos para os serviços públicos. E avançar ainda mais, na medida em que não formos capazes de uma visão ampliada sobre as questões que a envolvem, com uma atuação preventiva e assistencial mais efetiva. A desvalorização das hierarquias tradicionais e da autoridade familiar e comunitária contribuem para tanto4 e cabe a todos os atores sociais a responsabilidade do enxergar, pensar e atuar no sentido de uma mudança desse paradigma.
O presente estudo dá visibilidade à violência manifesta dentro de uma infinidade de lares brasileiros, de uma população significativa, frequentemente distante do olhar da maior parte de nossos estudiosos. Trabalhos deste tipo, na medida em que agregam novos conhecimentos, permitem ampliar as possibilidades de ação dos diversos setores da sociedade na prevenção de violências e promoção de uma cultura de paz.
Contribuição dos autores
Cecilio LPP participou do delineamento da pesquisa, levantamento bibliográfico, coleta e análise dos dados, redação e revisão do artigo.
Garbin CAS contribuiu na orientação para a realização do trabalho, concepção e delineamento do estudo, análise dos dados e revisão do artigo.
Rovida TAS colaborou na análise dos dados e revisão da redação do artigo.
Queiroz APDG auxiliou no levantamento bibliográfico e revisão do artigo.
Garbin AJI contribuiu no delineamento da pesquisa, análise dos dados e orientação estatística.
Referências
1. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Monitoramento e Avaliação da Gestão do SUS. Temático prevenção de violência e cultura da paz III. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. (Painel de indicadores do SUS no 5)
2. Portaria n. 737, de 16 de Maio de 2001. O Ministro de Estado da Saúde, interino, 'no uso de suas atribuições, considerando a necessidade de definição, no setor saúde, de uma política decisiva' no sentido da redução da morbimortalidade por acidentes e violências. Diário Oficial da União, Brasília, 18 maio 2001. Seção 1
3. Aleaga MA, Bernal IL, Gómez MTO. Comportamiento de la violencia intrafamiliar. Revista Cubana de Medicina General Integral. 1999; 15(3):285-292.
4. Minayo MCS. Violência e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006. (Coleção Temas em Saúde).
5. Minayo MCS, Souza ER. Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História Ciências Saúde - Manguinhos. 1998; 4(3):513-531.
6. Mello Jorge MHP, Koizumi MS. Gastos governamentais do SUS com internações hospitalares por causas externas: análise no Estado de São Paulo, 2000. Revista Brasileira de Epidemiologia. 2004; 7(2):228-238.
7. Rosenberg ML, Butchart A, Mercy J, Narasimhan V, Waters H, Marshall MS. Interpersonal violence. In: Jamison DT, Breman JG, Measham AR, George A, Claeson M, Evans DB, et al. Disease control priorities in developing countries. 2a ed. Washington: Oxford University Press; 2006. p.755-770
8. Mascarenhas MDM, Pedrosa AAG. Atendimentos de emergência por violência em serviços públicos de Teresina, PI. Revista Brasileira de Enfermagem. 2008; 61(4):493-499.
9. Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC, Moura L, Macário EM, Gawryszewski VP, et al. Perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por violência no Sistema de Serviços Sentinelas de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) - Brasil, 2006. Epidemiologia e Serviços de Saúde. 2009; 18(1):17-28.
10. Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC, Moura L, Gawryszewski VP, Costa VC, et al. Atendimentos de emergência por acidentes na Rede de Vigilância de Violências e Acidentes - Brasil, 2006. Ciência e Saúde Coletiva. 2009; 14(5):1657-1668.
11. Portaria no 936, 18 de maio de 2004. Dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 18 maio 2004. Seção 1.
12. Mascarenhas MDM, Malta DC, Silva MMA, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cadernos de Saúde Pública. 2010; 26(2):347-357.
13. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002.
14. Organização Pan-americana de Saúde. Violencia y salud. Resolución XIX. Washington: Organização Pan-americana de Saúde; 1994.
15. Minayo MCS, Souza ER. Violência para todos. Cadernos de Saúde Pública. 1993;9(1):65-78.
16. Ferreira TFA, Ribeiro LA. Epidemiologia das agressões atendidas pelo Hospital das Clínicas de Uberlândia e dos homicídios ocorridos no município de 2000 a 2004. Bioscience Journal. 2009; 25(2):161-170.
17. Soares BAC, Scatena JH, Galvão ND. Evolução e características da morbidade por acidentes e violência na Grande Cuiabá - Mato Grosso. Revista Espaço para a Saúde. 2008; 9(2):26-38.
18. Abath MB, Leal MCC, Melo Filho DA, Marques APO. Physical abuse of older people reported at the Institute of Forensic Medicine in Recife, Pernambuco State, Brazil. Cadernos de Saúde Pública. 2010; 26(9):1797-1806.
19. Anyanechi CE. Mandibular fractures associated with domestic violence in Calabar, Nigéria. Ghana Medical Journal. 2010; 44(4):155-158.
20. Lima MLC, Souza ER, Deslandes SF, Kelly A, Cabral APS. An analysis of prehospital care for victims of accidents and violence in Recife, Brazil. Revista de Saúde Pública. 2010; 12(1):27-37.
21. Cecilio L. Impacto da demanda de atendimentos ambulatoriais na Unidade de Urgências e Emergências do município de Penápolis - SP. [Monografia]. São Paulo (SP): Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; 2010.
22. Travassos C, Viacava F, Pinheiro R, Brito A. Utilização dos serviços de saúde no Brasil: gênero, características familiares e condição social. Revista Panamericana de Salud Publica. 2002; 11(5/6):365-373.
23. Costa RG. Saúde e masculinidade: reflexões de uma perspectiva de gênero. Revista Brasileira de Estudos de População. 2003; 20(1):79-92.
24. Gawryszewski VP, Scarpelini S, Dib JA, Mello Jorge MHP, Pereira Júnior GA, Morita M. Atendimentos de emergência por lesões decorrentes de causas externas: características das vítimas e local de ocorrência, Estado de São Paulo, Brasil, 2005. Cadernos de Saúde Pública. 2008; 24(5):1121-1129.
25. Oliveira CMCS, Santos JS, Brasileiro BF, Santos TS. Epidemiologia dos traumatismos buco-maxilo-faciais por agressões em Aracaju/SE. Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial. 2008; 8(3):57-68.
26. Minayo MCS, Deslandes SF. Análise da implantação da rede de atenção às vítimas de acidentes e violências segundo diretrizes da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade sobre Violência e Saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 2009; 14(5):1641-1649.
27. Garbin CAS, Garbin AJI, Dossi AP, Dossi MO. Violência doméstica: análise das lesões em mulheres. Cadernos de Saúde Pública. 2006; 22(12):2567-2573.
28. Norman R, Schneider M, Bradshaw D, Jewkes R, Abranans N, Matzopoulos R, Vos T. Interpersonal violence: an important risk factor for disease and injury in South Africa. Population Health Metrics. 2010;8:32. (acessado em 10 abr. 2010). Disponível em http://www.pophealthmetrics.com/content/8/1/32.
29. Lessa A. Arqueologia da agressividade humana: a violência sob uma perspectiva paleoepidemiológica. História Ciências Saúde - Manguinhos. 2004; 11(2):279-296.
30. Mello Jorge MHP. Mortalidade por causas violentas no município de São Paulo, Brasil. IV - A situação em 1980. Revista de Saúde Pública. 1982; 16(1):19-41.
Endereço para correspondência:
Universidade Estadual Paulista,
Departamento de Odontologia Infantil e Social,
Rua José Bonifácio, 1193,
Araçatuba-SP, Brasil.
CEP: 16015-050
E-mail: cgarbin@foa.unesp.br
Recebido em 07/07/2011
Aprovado em 05/06/2012
* Manuscrito redigido com base na Dissertação de Mestrado de Lenise Patrocinio Pires Cecilio, apresentada à Universidade Estadual Paulista 'Júlio de Mesquita Filho' (Unesp)/Araçatuba-SP e defendida em abril de 2012.