Introdução
Em outubro de 2014, em municípios do estado do Rio Grande do Norte, foi notificada a ocorrência de uma doença exantemática, acompanhada de prurido, febre baixa e dor articular, que não se enquadrava nas definições de caso suspeito de sarampo, rubéola e dengue. Com isso, suspeitou-se de febre causada pelo vírus CHIKV, ou febre chikungunya, doença de introdução recente no país, com autoctonia reconhecida em 2014;1 entretanto, foram realizadas sorologias de detecção de IgM para a doença, com resultados não reagentes.
O exantema é uma erupção cutânea, composta por máculas ou pápulas, associado ou não com prurido, lesões bolhosas e crostas, acometendo uma região específica ou todo o corpo.2-4 O exantema pode estar relacionado a diversas condições, embora as causas infecciosas (vírus, bactérias, fungos e protozoários) sejam responsáveis por mais de 70% dos episódios,2 e pode estar presente em várias doenças, entre elas sarampo, rubéola, parvovírus, dengue, febre chikungunya e febre pelo vírus Zika.5,6-8
Em fevereiro de 2015, o estado da Paraíba registrou indivíduos que apresentavam o mesmo quadro observado no Rio Grande do Norte. Em março do mesmo ano, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde do Estado do Maranhão (CIEVS/MA) iniciou, no município de Barra do Corda-MA, uma investigação dos casos de síndrome exantemática de origem indeterminada.
Além do Rio Grande do Norte, Maranhão e Paraíba, mais seis estados da região Nordeste notificaram a ocorrência de síndrome exantemática ao CIEVS nacional, no período de outubro de 2014 a março de 2015. Em abril de 2015, passados seis meses desde as primeiras notificações dessa síndrome exantemática de etiologia desconhecida no nordeste brasileiro, havia a necessidade de esclarecer os possíveis agentes etiológicos envolvidos. Em 15 de maio de 2015, confirmou-se autoctonia de vírus Zika no Brasil, conforme nota divulgada pelo Ministério da Saúde.9
Nesse contexto, propôs-se a realização de investigação com o objetivo de confirmar a circulação do vírus Zika e descartar outros agentes etiológicos em surto ocorrido no Rio Grande do Norte (RN), Maranhão (MA) e Paraíba (PB), em maio de 2015.
Métodos
Realizou-se estudo descritivo de série de casos, com busca ativa de suspeitos de infecção pelo vírus Zika, prospectivamente, nos municípios de Natal-RN, Barra do Corda-MA, São Luís-MA e João Pessoa-PB.
Foram selecionados 20 indivíduos por estado, atendidos nos serviços de saúde sugeridos pelas Secretarias de Estado e Municipais de Saúde. O número de indivíduos foi limitado pela capacidade de processamento laboratorial das amostras coletadas no curso da investigação. Os indivíduos foram captados no momento em que buscaram o serviço.
Utilizou-se a seguinte definição de caso suspeito de febre pelo vírus Zika: indivíduo residente nos municípios do estudo que, no período de 11 a 22 de maio de 2015, foi atendido nas unidades sugeridas pelas Secretarias de Estado de Saúde e apresentou, até cinco dias anteriores ao atendimento (infecção recente), exantema e ausência de febre ou febre baixa (até 37,7ºC) com pelo menos mais um dos seguintes sinais/sintomas:
- hiperemia conjuntival ou artralgia ou edema de membros; e
- não se enquadrou nas definições de caso do Guia de Vigilância em Saúde da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) para dengue, febre chikungunya, sarampo e rubéola.7
A coleta de dados foi realizada por meio de questionário padronizado, semiestruturado, elaborado especialmente para a investigação, contemplando variáveis sociodemográficas, data de início dos sintomas, sinais e sintomas, uso de medicamentos, exames inespecíficos e específicos, presença de alergia, vacinação, história de contato com outra pessoa que apresentou sintomas, hospitalização, história de viagem nos últimos 15 dias e comorbidades. As entrevistas foram realizadas pela equipe de resposta rápida da SVS/MS, no momento do atendimento do indivíduo ou por telefone.
Foram coletadas duas amostras de sangue (soro e sangue total) de cada indivíduo, destinadas à (i) realização de sorologias IgM para dengue, sarampo, rubéola e parvovírus, com o objetivo de descartar estes agentes etiológicos, e (ii) reação de transcriptase reversa seguida de reação em cadeia de polimerase (RT-PCR), para detecção do vírus Zika. O teste laboratorial empregado no diagnóstico das viroses mencionadas - mediante detecção de IgM específico - foi o ensaio imunoenzimático (EIE) por captura de IgM (Elisa - IgM).
A primeira amostra foi coletada até o quinto dia a partir do início dos sinais e sintomas. A segunda amostra foi coletada 10 dias após a coleta da primeira amostra.
Para análise dos dados, foram utilizados os programas Epi InfoTM 7.1.5.0 e Microsoft Office Excel 2010.
Antes da entrevista, foi lido um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e obtido o consentimento verbal dos participantes, aos quais foi assegurada a não divulgação dos dados individualizados e a manutenção do sigilo das informações, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012. Os dados analisados foram obtidos no contexto das ações de vigilância epidemiológica, situação na qual é dispensada a apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Dos 60 indivíduos incluídos no estudo, 20 eram de Natal-RN, 20 de João Pessoa-PB, quatro de Barra do Corda-MA e 16 de São Luís-MA. Entre os indivíduos selecionados, a maior parte era constituída de adultos, com a maior frequência na faixa etária de 20 a 39 anos em Natal-RN, 40 a 59 anos no Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA) e João Pessoa-PB (Tabela 1).
A presença do exantema foi observada no mesmo dia do início dos outros sintomas ou posterior a estes; não houve casos em que o início do exantema foi anterior ao aparecimento de outros sintomas. Em 10/20 casos do Rio Grande do Norte, o aparecimento do exantema deu-se no mesmo dia dos demais sintomas, e no Maranhão e na Paraíba, isso ocorreu em 13/20 e 18/20 dos casos, respectivamente.
Quanto ao local do corpo de início do exantema, o tronco foi o mais frequente em Natal-RN (14/20) e João Pessoa (12/20); para os dois municípios do Maranhão, foi a face/pescoço em 10/20 casos. O exantema observado foi do tipo maculopapular, em todos os indivíduos entrevistados nos quatro municípios (Tabela 2).
a) Rio Grande do Norte
b) Maranhão
c) Paraíba
d) O exantema pode ter iniciado em mais que um local do corpo
Em Natal-RN, a febre baixa esteve presente em duas pessoas; 18 relataram não ter tido febre e destas, 12 fizeram uso de analgésico/antipirético (Tabela 3). No Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA), 15 não tiveram febre e 8 relataram uso de analgésico e antipirético. Os residentes em João Pessoa-PB não relataram febre.
a) Rio Grande do Norte
b) Maranhão
c) Paraíba
d) Linfoadenopatia retroauricular ou cervical posterior ou occipital
O exantema esteve presente em 100% dos indivíduos entrevistados. Além deste, entre os residentes no Rio Grande do Norte, o sintoma mais referido foi prurido em 17/20. Os indivíduos da Paraíba, embora tenham referido prurido em 17/20 dos casos, queixaram-se mais de dor articular (19/20) (Tabela 3). Um indivíduo foi hospitalizado em Natal-RN.
Em João Pessoa-PB e em Natal-RN, os casos apresentaram, com maior frequência, acometimento das articulações das mãos e tornozelos. Nos municípios do Maranhão, tornozelos, joelhos e punhos foram as articulações mais acometidas. Quanto à simetria, em todos os municípios, 55 indivíduos tiveram acometimento de articulações nos lados direito e esquerdo (Tabela 4).
Nota: um indivíduo pode ter tido mais de uma articulação acometida
a) Rio Grande do Norte
b) Maranhão
c) Paraíba
Em Natal-RN, foi realizado hemograma com amostra de 14 indivíduos: a contagem de plaquetas foi inferior a 100 mil em um indivíduo; e a média do valor do hematócrito, nos indivíduos que realizaram o hemograma foi de 35,8 (variação de 28,2 a 40,0).
Em João Pessoa-PB, realizou-se hemograma com amostra de nove indivíduos e a média do hematócrito foi de 41,7 (variação de 34,8 a 46,2) (Tabela 5).
Nota: em Barra do Corda-MA e São Luís-MA, não foi realizado hemograma.
a) Rio Grande do Norte
b) Paraíba
Informaram presença de alergia alimentar - diagnosticada por médico - cinco, duas e três pessoas em Natal-RN, Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA) e João Pessoa-PB, respectivamente. Foram vacinadas com a dupla viral (sarampo/rubéola) ou tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) 15 (RN), 10 (MA) e 12 (PB) indivíduos.
Das primeiras amostras de sorologias IgM testadas para dengue, sarampo, rubéola e parvovírus B19, 11 resultaram positivas para dengue: sete, três e uma em Natal-RN, Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA) e João Pessoa-PB, respectivamente. Para sarampo, rubéola e parvovírus, não houve reagentes. Das segundas amostras, seis foram reagentes para dengue no Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA), sendo que três destas já haviam sido reagentes na primeira amostra.
A pesquisa de RT-PCR detectou vírus Zika em 18 casos: 12 em João Pessoa, quatro no Maranhão (Barra do Corda-MA e São Luís-MA) e dois em Natal-RN. Destes 18 casos, cinco foram IgM reagentes para dengue.
Discussão
O presente estudo descreveu os primeiros casos investigados de febre pelo vírus Zika confirmados nos municípios de Barra do Corda-MA, São Luís-MA, João Pessoa-PB e Natal-RN. Também foi observada a ocorrência de casos de dengue.
O vírus Zika é um vírus RNA, do gênero Flavivírus, família Flaviviridae,10,11 com duas linhagens descritas até o momento: africana e asiática.12 O primeiro isolamento do vírus foi feito em primatas não humanos, na floresta Zika, em Uganda, no ano de 1947.13-15 Atualmente, há registro de sua circulação esporádica na África, Ásia e Oceania.5,14 O vírus Zika foi identificado nas Américas pela primeira vez em 2014, na Ilha de Páscoa, território do Chile no Oceano Pacífico, distante 3.500 km do continente.16
Os sintomas observados nos casos descritos no presente estudo foram característicos de febre pelo vírus Zika. A doença produz, como sintomatologia: artralgia, edema de extremidades, febre baixa, cefaleia, dor retrorbital, hiperemia conjuntival e exantema maculopapular frequentemente prurigininoso.5
O exantema pode estar presente em várias doenças infecciosas, entre elas sarampo, rubéola, parvovírus, dengue, febre chikungunya, e febre pelo vírus Zika;5,6-8 a maioria destas doenças, em suas definições, trazem a febre como um dos sintomas característicos - à exceção da rubéola, a qual apresenta febre baixa e precisa estar acompanhada do exantema e da linfadenopatia retroauricular, occipital e cervical, este último presente em uma minoria dos casos identificados de febre pelo vírus Zika.
Neste estudo, não houve amostras reagentes para sarampo e rubéola, corroborando a condição de vacinação dos entrevistados, cuja maioria recebeu vacina dupla viral (sarampo e rubéola) ou tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola). No calendário nacional de imunização, a vacina tríplice viral está indicada a partir dos 12 meses de idade.17 Também não houve amostras reagentes para parvovírus B19.
Entre os indivíduos que relataram febre baixa, a maioria havia tomado analgésico e antitérmico, o que pode ter resultado na ausência de febre ou presença de febre baixa no momento da aferição da temperatura corporal. Por sua vez, a febre, em algumas doenças como a dengue, exantema súbito, sarampo ou parvovírus, tem duração maior que um dia e reaparece após o uso do analgésico,18 reforçando os diagnósticos não reagentes para sarampo e parvovírus.
A doença nos casos investigados mostrou-se benigna, havendo registro de apenas uma internação no total dos entrevistados. Na febre pelo vírus Zika, a hospitalização é pouco frequente.19
Houve acometimento de grande número de articulações, principalmente nas mãos e tornozelos. Sabe-se que agentes virais são implicados na ocorrência aguda ou crônica de manifestações articulares, e as articulações mais atingidas são interfalangianas proximais, metacarpofalangianas, dos joelhos, tornozelos e cotovelos.20
O exantema foi maculopapular em todos os casos, com início no tronco, membros superiores e face/pescoço, evolução difusa e início, principalmente, de forma precoce, na mesma data que os demais sintomas.
Doenças como sarampo, rubéola, parvovírus, dengue, exantema súbito e febre pelo vírus Zika apresentam exantema do tipo maculopapular.5,7,21 Na dengue, as lesões são mais comuns na face, tronco e membros, com ou sem prurido, e início - frequentemente - quando do desaparecimento da febre, por volta do quinto dia. Na febre pelo vírus Zika, as erupções geralmente se espalham pelo tronco e membros, e são pruriginosas, com início no primeiro ou segundo dia.5,21
Na maioria dos hemogramas, não foram observadas alterações relacionadas à contagem de plaquetas, leucócitos e hematócrito. A dengue, por exemplo, pode causar alterações hematológicas detectáveis por hemograma.22
Entre os entrevistados, o fato de haverem sido incluídas mais mulheres no Rio Grande do Norte e no Maranhão (Barra do Corda e São Luís-MA) pode estar relacionado a sua maior busca pelos serviços de saúde do que os homens, por relatarem com mais facilidade as doenças e por terem maior percepção quanto aos próprios sinais e sintomas.23
A investigação laboratorial identificou a presença do vírus Zika, além de casos IgM reagentes para dengue, sugerindo reação cruzada. Os resultados apresentados neste trabalho ressaltam a importância da implantação do diagnóstico diferencial para as doenças exantemáticas. Recomenda-se: implantar protocolo de vigilância sentinela de febre pelo vírus Zika para monitoramento dos casos, de forma oportuna, contribuindo para a adoção precoce e precisa de medidas de controle; e seguir o fluxo laboratorial preconizado no protocolo da vigilância sentinela para o diagnóstico da doença, com o objetivo de identificar circulação viral nos demais estados. Evidencia-se, outrossim, a necessidade de desenvolver testes diagnósticos para febre pelo vírus Zika, com adequada sensibilidade e especificidade, que minimizem a reação cruzada com sorologia para dengue.