Introdução
O acesso aos serviços de saúde é um direito constitucional da população brasileira, garantido com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990.1,2 Desde então, várias melhorias no desempenho do sistema de saúde vêm sendo observadas, principalmente relacionadas com a expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF), implantada em 1994.1-5
O uso de serviços de saúde, principalmente consulta médica, vem aumentando no Brasil, em boa medida como fruto da expansão dos serviços de atenção básica.6 Entretanto, a utilização dos serviços de saúde não depende somente da quantidade de oferta mas também da percepção de necessidade e busca de serviços de saúde pelos indivíduos.7
Não obstante a utilização ser um bom proxy do acesso aos serviços de saúde, sua definição exclui indivíduos que buscaram e não conseguiram atendimento, o que também se denomina falta de acesso.8-13 Apesar da escassez de informações sobre a falta de acesso a serviços de saúde no Brasil, inquéritos de base populacional revelaram prevalências inferiores a 7% do total dos indivíduos que buscaram atendimento.8,9,14 Ao extrapolar esses achados para a população brasileira, a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), estima-se que, em 2003, aproximadamente um milhão de pessoas não conseguiram acesso aos serviços de saúde nos quinze dias anteriores à pesquisa.14 Outro estudo nacional, realizado em 2009, encontrou que 1,1% dos adultos não obtiveram acesso a consulta médica nos três meses anteriores à entrevista, e 3% não tiveram acesso à hospitalização nos doze meses anteriores à entrevista.9 Achados de um estudo realizado em 2012, no Sul do Brasil, mostraram uma falta de acesso de 6,5% no mês anterior à entrevista, representando aproximadamente 4.500 dos 220 mil adultos residentes na zona urbana do município de Pelotas, Rio Grande do Sul.8
Identificar a tendência da falta de acesso à saúde no país poderá ajudar na sinalização dos desafios ainda existentes para o SUS, além de contribuir para subsidiar políticas e ações necessárias no sentido de garantir, de fato, o acesso universal aos serviços de saúde estabelecido na Constituição Federal de 1988. O objetivo deste estudo foi analisar a tendência temporal da procura e da falta de acesso aos serviços de saúde no Brasil no período de 1998 a 2013.
Métodos
Trata-se de um painel de estudos transversais de base nacional realizados com dados das PNAD e da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), ambas as iniciativas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. Utilizou-se os dados das PNAD realizadas em 1998, 2003 e 2008, que contaram com um suplemento sobre saúde, e da PNS realizada em 2013.
O procedimento de amostragem da PNAD e da PNS foi realizado por conglomerados, em três estágios. As quatro amostras são representativas do país, regiões, Unidades da Federação e algumas regiões metropolitanas, à exceção das PNAD 1998 e 2003, cujas amostras não incluíram os domicílios situados na área rural da região Norte. Nos três anos que contemplam a PNAD, aproximadamente um milhão de pessoas foram entrevistadas (1998 = 344.975; 2003 = 384.844; 2008 = 391.868). A amostra final da PNS foi composta por 64.348 entrevistas domiciliares. Foram obtidas informações sobre utilização de serviços de saúde por 205.546 moradores desses domicílios, e informações sobre morbidade autorreferida por 60.202 moradores. No total, 1.327.233 indivíduos, de todas as idades, participaram dos inquéritos. Mais informações podem ser obtidas em outras publicações.15-18
Os desfechos analisados neste estudo foram a procura e a falta de acesso aos serviços de saúde, autorreferidos pelos indivíduos. A procura por atendimento foi identificada nos inquéritos a partir da seguinte questão: "Nas duas últimas semanas, o Sr.(a) procurou algum lugar, serviço ou profissional de saúde para atendimento relacionado à própria saúde?". A falta de acesso foi mensurada mediante a seguinte pergunta: "Nessa primeira vez que procurou atendimento de saúde, nas duas últimas semanas, foi atendido(a)?". As perguntas utilizadas foram as mesmas em todas as pesquisas.
Obtiveram-se as prevalências da procura e da falta de acesso e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), de acordo com as seguintes variáveis:
- sexo (masculino; feminino);
- idade (em anos: crianças, de 0 a 9; adolescentes, de 10 a 19; adultos, de 20 a 59; idosos, de 60 ou mais);
- cor da pele (branca; preta; parda);
- escolaridade (sem instrução; Ensino Fundamental; Ensino Médio; Ensino Superior);
- zona de residência (urbana; rural);
- região do país (Norte; Nordeste; Sul; Sudeste; Centro-Oeste);
- diagnóstico médico autorreferido de hipertensão arterial (não; sim) e diabetes mellitus (sim; não);
- número de doenças (diagnóstico médico autorreferido de hipertensão arterial, diabetes mellitus, problema cardíaco, asma, artrite, problema de coluna e depressão, assim quantificado: zero; uma; duas; três ou mais doenças diagnosticadas);
- cobertura da ESF (sim; não, apenas para os anos de 2008 e 2013); e
- posse de plano privado de saúde (sim; não)
A tendência temporal da falta de acesso também foi avaliada segundo os motivos da busca por atendimento (rotina ou prevenção; doença; problema odontológico), motivos para o não atendimento nos serviços de saúde (falta de vaga ou senha; falta de médico; falta de serviço ou profissional especializado; serviço ou equipamento não estava funcionando; falta de capacidade de pagamento pelo indivíduo; espera prolongada) e tipo de serviço procurado (unidades básicas de saúde [UBS]; pronto-socorro e hospitais; ambulatórios; consultórios de outros profissionais de saúde; consultório médico particular).
A análise descritiva dos dados incluiu o cálculo de proporções (%) e intervalos de confiança de 95% (IC95%). A variação anual da procura e da falta de acesso aos serviços de saúde foi calculada utilizando-se os valores observados em 1998 e 2013, sendo obtida pela seguinte fórmula:
Onde p1998 e p2013 são as prevalências observadas nos respectivos anos. A tendência foi classificada como crescente, decrescente ou estável, conforme o valor da variação anual (positiva, negativa ou nula, respectivamente) e valor-p. Tendências com valor-p<0,05 no teste de Wald para tendência linear foram consideradas estatisticamente significativas. As análises brutas e ajustadas foram estimadas por meio da regressão de Poisson.19 Para a tendência ajustada, foram incluídas todas as variáveis independentes na regressão. As variáveis referentes a morbidades autorreferidas não foram incluídas no ajuste, uma vez que essas informações foram colhidas junto a um menor número de entrevistados no ano de 2013, de acordo com a metodologia da PNS.17,18
Os bancos de dados foram obtidos no sítio eletrônico do IBGE (www.ibge.gov.br/home). As análises foram realizadas pelo programa estatístico Stata(r) 12.1. Todas as análises foram realizadas utilizando-se o módulo survey, sendo considerado o processo amostral adotado nas pesquisas.
Os projetos da PNAD e da PNS foram submetidos e aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).15,16,18 Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A descrição das amostras das quatro pesquisas está apresentada na Tabela 1 e revela as mudanças sociodemográficas e epidemiológicas ocorridas na população brasileira. De 2008 a 2013, a população idosa aumentou de 8,8 para 13,0%; a proporção de indivíduos que se declararam de cor da pele branca diminuiu de 54,0 para 45,6%; e o percentual de indivíduos sem instrução diminuiu de 27,7 para 16,2%. Observou-se aumento da prevalência das doenças crônicas. A cobertura da ESF aumentou 12,3 pontos percentuais entre 2008 e 2013 (de 50,9 para 63,2%). A cobertura por plano de saúde se manteve estável, com sutil aumento em 2013, alcançando 27,9% da população brasileira (Tabela 1).
a) Cor da pele: as categorias amarela e indígena representaram menos de 1% da população, para todos os anos.
b) Somente para indivíduos com idade de18 anos ou mais, para o ano de 2013.
A procura por serviços de saúde nos quinze dias anteriores à entrevista foi de 13,0% (IC95% 12,3-13,7) em 1998 e de 15,0% (IC95% 14,5-15,4) em 2013. Observou-se tendência temporal crescente da procura por serviços de saúde na população total (variação anual de 1,0%; p<0,001) e para a maioria das variáveis analisadas. O maior aumento anual foi observado para indivíduos que reportaram não ter diabetes (+2,0%) (Tabela 2).
a) Total de indivíduos que buscaram atendimento em serviços de saúde nos quinze dias anteriores à entrevista
b) %: prevalência
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%
d) Valor-p: teste de Wald de tendência linear, obtido por meio da regressão de Poisson ajustada para as outras variáveis da tabela - à exceção das morbidades.
e) Somente para indivíduos com idade de 18 anos ou mais, para o ano de 2013.
A falta de acesso foi estável no período (crescimento anual de 1,3%; p=0,565), variando de 3,7% (IC95% 3,2-4,2) em 1998 a 4,5% (IC95% 4,0-5,0) em 2013. A tendência mostrou-se estável em quase todas as categorias das variáveis analisadas; a exceção coube aos residentes na região Sul do país, que tiveram tendência decrescente para falta de acesso aos serviços: variação anual de -0,4%; p=0,006 (Tabela 3).
a) Total de indivíduos que buscaram atendimento em serviços de saúde nos quinze dias anteriores à entrevista
b) %: prevalência
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%
d) Valor-p: teste de Wald de tendência linear, obtido por meio da regressão de Poisson ajustada para as outras variáveis da tabela - à exceção das morbidades.
e) Somente para indivíduos com idade de 18 anos ou mais, para o ano de 2013.
A tendência de falta de acesso foi decrescente para a busca pelo serviço de saúde motivada por rotina ou prevenção (diminuição anual de 7,1%; p<0,001), e crescente para busca por motivo de doença (crescimento anual de 3,2%; p<0,001). Os motivos de falta de acesso apresentaram tendência estável, sendo a falta de vaga ou senha e a falta de médico as razões mais referidas (80,0% dos motivos de falta de acesso). A falta de capacidade de pagamento foi um motivo virtualmente inexistente no período (Tabela 4).
A Figura 1 ilustra a tendência temporal da falta de acesso segundo o tipo de serviço procurado. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas. Contudo, foi possível identificar que os serviços de saúde com maior percentual de falta de acesso, em todos os períodos, foram aqueles prestados pelas UBS (entre 6,0 e 8,0%).
Discussão
De 2008 a 2013, a procura por serviços de saúde aumentou de maneira significativa na população brasileira, principalmente entre indivíduos sem plano de saúde, com menor escolaridade e residentes em zona rural. Por sua vez, a prevalência da falta de acesso foi baixa e estável. Em 2013, a cada 20 indivíduos que buscaram atendimento nos quinze dias anteriores à entrevista, um não conseguiu ser atendido no primeiro local onde buscou atendimento. A maioria dos motivos para falta de acesso esteve relacionada à falta de profissionais para o atendimento, principalmente médicos.
O estudo apresenta algumas limitações que devem ser ponderadas. Uma delas relaciona-se à pergunta utilizada para medir a falta de acesso. Apesar de ser utilizada na literatura,8,9,20 a forma com que a pergunta foi feita pode não levar em consideração a organização dos serviços de atenção primária, que, em alguns casos, acolhem o usuário e agendam o atendimento para data posterior. Por sua vez, a busca inadequada de serviços de nível secundário e terciário de assistência a saúde por problemas pertinentes à atenção primaria também resultaria em relato de falta de acesso, conforme mensurado. Uma proporção importante da demanda dos serviços de emergência, por exemplo, poderia ser atendida na atenção primária mas, por diferentes razões, principalmente culturais, a população busca, primeiramente, por serviços considerados mais especializados, em vez de recorrer diretamente às UBS.21 Estas situações podem ter resultado em superestimação da prevalência da falta de acesso. Não obstante, esse possível viés no estudo é minimizado pela alta na proporção de busca de UBS entre os indivíduos que tiveram falta de acesso. Outra limitação refere-se às diferenças metodológicas entre a PNAD e a PNS, como a não inclusão dos domicílios rurais nas PNAD 1998 e 2003, e diferenças no espalhamento geográfico da amostra, tendo em vista que houve diferença quanto aos municípios incluídos nas pesquisas. Entretanto, por haver-se realizado comparações entre municípios específicos, espera-se, em geral, baixa influência dessas diferenças metodológicas nas estimativas de tendência temporal. Ao restringir os resultados para as capitais brasileiras, municípios iguais entre os estudos (dados não apresentados), os achados são muito semelhantes aos descritos neste artigo.
Os resultados deste estudo refletem avanços do sistema de saúde brasileiro. Ao garantir a atenção à saúde sem necessidade de desembolso direto pelo cidadão, o SUS contribui para que a falta de acesso tenha sido percentualmente baixa e estável no período estudado, apesar do crescimento da procura. Ademais, a falta de acesso decrescente na região Sul do país pode decorrer da rápida e recente expansão da Estratégia Saúde da Família e serviços de atenção primária, principalmente no Rio Grande do Sul. Os estados da região Sul sempre apresentaram indicadores de cobertura populacional de serviços inferiores aos dos estados do Nordeste, por exemplo, onde a ESF foi inicialmente implantada.4 Todavia, a universalização do acesso depende da superação de barreiras ainda observadas, principalmente para os usuários da atenção básica, setor que atende maior contingente de brasileiros. Ao extrapolar as prevalências encontradas em 2013 para a população brasileira, estima-se que 874.496 pessoas não tiveram acesso a serviços de atenção básica quando buscaram atendimento.
Entre os indivíduos que buscaram atendimento nas UBS, observou-se estabilidade na falta de acesso, com maior frequência do que naqueles que procuraram atendimento em outros locais. Em 2013, a cada 13 indivíduos que buscaram atendimento em uma UBS nos 15 dias anteriores à entrevista, um não conseguiu ser atendido no primeiro local em que buscou atendimento. Contudo, deve-se destacar que a procura por atendimento nas UBS aumentou de maneira significativa no período estudado, concomitantemente à expansão da rede de atenção primária, especialmente da ESF.
Apesar da baixa relevância em termos percentuais, a magnitude da falta de acesso observada no Brasil é um problema importante. Cabe destacar que o desfecho avaliado se refere à falta de atendimento no primeiro serviço procurado e não a barreiras no acesso. Isto é, não foram considerados aqueles indivíduos que não procuraram os serviços de saúde por enfrentarem diferentes dificuldades de acesso, relacionadas a seu comportamento na busca por atendimento, questões pessoais,1 discriminação22 e problemas organizacionais.
Os problemas organizacionais dos serviços de saúde4,5 parecem explicar, de forma mais contundente, a falta de acesso aos serviços. Sem desconhecer a importância das barreiras relacionadas aos indivíduos, aquelas impostas pelos serviços de saúde podem ser mais facilmente solucionadas pela gestão e pelos trabalhadores de saúde. Destaca-se que o primeiro contato com o serviço de saúde é, geralmente, decorrente do comportamento pessoal de quem procura por esse serviço11,12 mas o êxito na busca e a continuidade da atenção dependem, essencialmente, das características dos serviços e da atuação dos profissionais envolvidos.5,7,23,24
Outrossim, o crescimento da demanda por serviços de saúde no Brasil pode ter contribuído para a manutenção do problema da falta de acesso. O aumento na busca por atendimento, em quase todos os grupos avaliados, embora maior entre os mais pobres e aqueles sem doença crônica, sugere uma demanda mais abrangente e diversificada. Este achado sinaliza um acesso aos serviços de forma mais igualitária e apropriada, independentemente das condições econômicas e de saúde. A mudança no modelo de atenção necessário para o adequado enfrentamento do aumento das doenças crônicas não transmissíveis não deve se restringir ao tratamento de indivíduos com alto risco, requerendo o aumento de ações de prevenção primária e secundária para evitar o paradoxo preventivo destacado por Rose,25 quando o foco em ações para os indivíduos é minizado pela influência negativa dos determinantes sociais da saúde.
Os achados aqui apresentados são condizentes com resultados de outro estudo de base nacional e de um estudo de base populacional realizado no sul do Brasil,8,9 os quais também destacam que os principais motivos da falta de acesso estão relacionados a problemas de recursos humanos e da forma de organização da demanda. A falta de profissionais de saúde, um problema histórico para o sistema de saúde brasileiro, impacta de forma importante no acesso à atenção. Somado a isso, boa parte do acesso às UBS do país se dá por meio de fichas de atendimento, uma forma precária e obsoleta, dificultando a garantia de universalidade, equidade e integralidade no SUS.26 Normalmente, as pessoas precisam esperar horas antes da abertura das UBS até conseguir a ficha para atendimento, o que perpetua as desigualdades em saúde já que os indivíduos mais vulneráveis e com piores condições socioeconômicas são os maiores usuários dos serviços cujo atendimento é organizados dessa maneira.5
Reestruturar a forma de atendimento nos serviços básicos de saúde, garantindo o atendimento à demanda espontânea e humanização no acesso aos serviços, tornam-se tarefas prioritárias para a melhoria do desempenho do sistema brasileiro.26-28 Nesse sentido, uma das iniciativas já implementada é o Programa Mais Médicos, que aumentou a disponibilidade de médicos em regiões mais pobres do país e deverá garantir maior acesso da população a seu serviço.29 Além disso, o Mais Médicos pretende aumentar a oferta de vagas para faculdades de medicina no país.29 Entretanto, com os dados aqui apresentados, não é possível avaliar algum efeito do programa já que sua implementação começou em 2013, ano da última pesquisa incluída neste estudo.
Apesar dos avanços conquistados, os achados ratificam a relevância da análise da falta de acesso aos serviços de saúde, principalmente para orientar a tomada de decisão de gestores e trabalhadores de saúde, no intuito de alcançar a universalidade e integralidade no SUS. O aumento da procura e a estabilidade na falta de acesso indicam avanços no desempenho do sistema público de saúde. Desafios ainda permanecem. Melhorias na gestão e na oferta dos serviços, incluindo a provisão de recursos humanos, são necessárias para a melhoria do desempenho do Sistema Único de Saúde e garantia do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde no Brasil.