Introdução
A manutenção da saúde bucal durante a gravidez tem sido reconhecida como um importante desafio de Saúde Pública mundial,1 já que há registro de alta freqüência de inflamação gengival entre gestantes.2,3 Alguns estudos sugerem associação entre prematuridade e (ou) baixo peso ao nascer e a doença periodontal,4-7 enquanto outros discordam dessa associação.8 Baixo peso ao nascer e (ou) prematuridade representam não somente um dos maiores problemas obstétricos, como também podem comprometer o desenvolvimento do bebê, além do maior risco de apresentarem alterações bucais como hipoplasia do esmalte dental e cárie precoce na infância.9
Visando garantir o bem-estar da gestante e orientá-la quanto aos cuidados odontológicos, o Ministério da Saúde recomenda, em seu manual de assistência à saúde durante o pré-natal,10 que a gestante deve ser referenciada ao atendimento odontológico como uma ação complementar. O estabelecimento precoce de hábitos saudáveis de higiene bucal e dieta alimentar devem ser enfatizados durante a gestação.11 Nesse sentido, consultas odontológicas e tratamento dental são necessários no decorrer do período pré-natal,3,5,12 não devendo ser interrompidos durante a gravidez e sim incentivados.13
Na maioria dos casos, entretanto, o cuidado pré-natal odontológico é negligenciado; mulheres grávidas visitam o dentista com menos frequência do que as mulheres não-grávidas.14 Dados recentes indicam que aproximadamente 50% das mulheres grávidas não visitam um dentista, mesmo quando percebem a necessidade de tratamento.15 Várias razões têm sido citadas como barreiras à procura de serviços de saúde bucal, entre as quais o medo e a ansiedade provocados pelo tratamento, baixa percepção de problemas dentários e de necessidade de tratamento, e equívocos sobre os efeitos adversos do tratamento dental no desenvolvimento do feto, apesar do sangramento gengival estar entre os sintomas bucais comuns às grávidas.16
Considerando-se a existência de poucas informações sobre o uso de serviços odontológicos pela população brasileira e a importância da saúde bucal durante a gestação, o presente estudo teve por objetivo identificar as características dos cuidados de saúde bucal durante o pré-natal e o conhecimento sobre saúde bucal entre gestantes usuárias de serviços de saúde publico e privado no município de São Luís, Maranhão, Brasil.
Métodos
Foi realizado um estudo descritivo com amostra de conveniência, composta por 600 gestantes divididas em dois grupos: 300 usuárias do serviço público e 300 usuárias do serviço privado de saúde na cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, no período de agosto de 2007 a julho de 2008.
Em 2008, a cidade de São Luís tinha uma população de 365.536 mulheres em idade fértil e o registro de 18.255 nascidos vivos.17 A coleta de dados para este estudo foi realizada por uma equipe de dois entrevistadores, previamente treinados, em duas unidades de serviço de saúde, uma pública e outra privada, uma vez por semana, durante a manhã e tarde. Todas as participantes foram abordadas na sala de espera dessas unidades, sendo incluídas gestantes em acompanhamento pré-natal desde o 1º trimestre e excluídas gestantes menores de 18 anos de idade. Todas foram convidadas a participar da pesquisa e, uma vez esclarecidas sobre a natureza do estudo, assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com reposição de participantes nos casos de recusa, até completar o total de 300 usuárias em cada serviço de saúde - público e privado.
As entrevistas foram realizadas mediante aplicação de um questionário estruturado contemplando as seguintes questões:
a) Características socioeconômicas
- estado civil (sem ou com companheiro)
- anos de estudo (≤7; 8 a 10; >10)
- situação de trabalho (sem trabalho; jornada parcial; jornada integral)
- renda familiar, em salários mínimos (<1; 1 a 3; 4 a 5; >5)
b) Pré-natal
- início do pré-natal (no 1º trimestre; após o 1º trimestre)
- frequência de consultas no pré-natal (uma vez durante a gestação; a cada mês; a cada trimestre)
- número de gestações (1; 2; 3 ou mais)
c) Hábitos de higiene bucal
- escovação dentária (nenhuma; 1 vez ao dia; 2 vezes ao dia; 3 vezes ao dia)
- uso do fio dental (nenhuma; 1 vez ao dia; 2 vezes ao dia; 3 vezes ao dia)
- uso de colutórios (sim; não)
d) Utilização de serviço odontológico durante a gravidez e o trimestre da gestação no qual foi realizado o serviço
e) Conhecimentos sobre saúde bucal durante a gravidez questionados conforme definiram Honkala e Al-Ansari18 e Habashneh e colaboradores,19 a partir da proposição das seguintes questões às entrevistadas:
Você já ouviu falar sobre a possível associação entre saúde bucal e gravidez?
Você acha que os dentes e os problemas gengivais podem afetar a gravidez?
Você acha que há um aumento do sangramento gengival durante a gravidez?
Você acredita no ditado "um dente por bebê?
Os dados foram descritos por meio de frequências absolutas e relativas (percentuais). Para identificar diferenças na distribuição de frequências entre os grupos, conforme o serviço de saúde (público e privado), foi aplicado o teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher, com nível de significância de 5%.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Maranhão em 28 de fevereiro de 2007: Protocolo nº 2315011679/2007-44.
Resultados
Entre 300 gestantes entrevistadas no serviço público e 300 no serviço privado, foram observadas diferenças significativas quanto ao perfil socioeconômico. No serviço público, 38,0% das usuárias não tinham companheiro, 60,0% estavam sem trabalho e somente 10,7% tinham mais de 10 anos de estudo, enquanto no serviço privado, 29,7% das usuárias não tinham companheiro, 41,6% trabalhavam em tempo integral e 47,0% possuíam mais de 10 anos de estudo. A proporção de gestantes com renda familiar <1 salario mínimo foi maior entre as usuárias do serviço público (33,0%), em relação ao privado (16,0%) (Tabela 1).
O início do acompanhamento pré-natal no 1º trimestre da gravidez foi mais frequente entre as usuárias do serviço privado, em relação ao serviço público (87,3% e 78,0%, respectivamente; p=0,002) (Tabela 2). A frequência mensal das consultas de pré-natal foi idêntica entre usuárias de ambos os serviços (98,7%; p>0,999). A maioria das entrevistadas teve apenas uma gestação, com maior proporção entre as usuárias do serviço privado (58,7%) na comparação com as do serviço público (47,0%) (Tabela 2).
Não houve diferenças significativas entre as proporções de gestantes usuárias dos serviços público e privado quanto ao relato do hábito de escovação dentária (98,3% e 99,3%, respectivamente; p=0,450) e frequência de escovação (p=0,156) (Tabela 3). No que se refere ao uso de fio dental, entretanto, foi mais frequente o relato desse hábito entre as usuárias do serviço privado, em relação ao público (64,0% e 47,0%, respectivamente; p<0,001), bem como do uso de colutórios (39,7% e 27,0%, respectivamente; p=0,001) (Tabela 3).
Proporções semelhantes - e elevadas - de gestantes usuárias dos serviços público e privado (81,0% e 80,0%, respectivamente; p=0,614) não visitaram o dentista no transcurso da gestação, evidenciando a baixa utilização dos serviços odontológicos durante o período pré-natal (Figura 1).
A maioria das gestantes usuárias do serviço público (60,3%) e privado (65,7%) responderam desconhecer a associação entre saúde bucal e gravidez (p=0,176), embora 57,0% de gestantes do serviço público e 58,3% do privado tenham afirmado acreditar que os dentes e problemas gengivais podem afetar a gestação. A maior parte das gestantes entrevistadas desconhece a possibilidade de aumento do sangramento gengival durante a gravidez, principalmente no serviço público, na comparação com as usuárias do serviço privado de saúde (73,3% e 63,7%, respectivamente; p=0,010). A maioria das usuárias relataram que não acreditam no ditado popular "um dente por filho", especialmente no serviço privado, em comparação com o serviço público (78,0% e 69,3%, respectivamente; p=0,016) (Tabela 4).
Discussão
No presente estudo, foram comparados os comportamentos e conhecimentos das gestantes usuárias de um serviço público e um privado, quanto aos cuidados de saúde bucal durante o acompanhamento pré-natal. As usuárias do serviço público possuíam menos anos de estudos, menor renda familiar, maior número de gestações e menor adesão ao início do pré-natal no 1º trimestre da gestação, quando comparadas às usuárias do serviço de saúde privado. Também se verificou que o uso diário de fio dental e de colutórios, bem como as visitas ao dentista durante a gestação, não foram hábitos comuns entre as grávidas, nos dois grupos. Tais resultados sugerem que há deficiências no atendimento às gestantes, como o limitado acesso aos serviços de saúde bucal, e que as recomendações necessitam ser reformuladas para melhorar a educação odontológica no pré-natal.20
O hábito de escovar os dentes pelo menos três vezes ao dia era comum entre as gestantes, realidade mais adequada que a registrada em Brunei no ano de 2010, por Bamanikar e Kee:20 segundo esses pesquisadores, todas as gestantes entrevistadas escovavam os dentes pelo menos duas vezes ao dia. Ressalta-se a importância da adequada escovação dentária no sentido de minimizar os danos provenientes dessas variações, pois uma das principais razões para os problemas bucais maternos são as variações hormonais e mudanças na dieta durante esse período, colocando as gestantes em maior risco de sofrer problemas dentais.1
O uso do fio dental pelas gestantes mostrou ser pouco frequente, especialmente entre as usuárias dos serviços públicos de saúde. A higiene com fio dental é relevante, seu uso frequente previne cáries interproximais e doenças periodontais, sendo muito importante para a saúde bucal.1 O hábito de higiene oral parece não ser muito comum em outros países, como observaram Bamanikar e Kee20 em Brunei (2010), e George e cols.1 em seu relato de estudo de 2013, realizado na Austrália, onde cerca de 40% das gestantes faziam uso do fio dental diariamente.
Aqui, encontrou-se baixo percentual de gestantes que procuraram atendimento odontológico no período gestacional, de modo semelhante ao encontrado no recém-citado estudo australiano, no qual menos de 30% das mulheres participaram de atendimento odontológico na gestação.1 É provável que esse comportamento decorra de um mito - baseado em crenças antigas e argumentos pautados na insegurança e (ou) no medo das gestantes, sem qualquer fundamentação científica - de que a mulher grávida não pode realizar tratamento odontológico.20,21 A gravidez não contraindica o tratamento odontológico, desde que se leve em conta o estágio da gravidez e a extensão dos procedimentos adotados.22
Mulheres grávidas tendem a apresentar maior nível de inflamação gengival,2 como também há registros da possível associação de problemas bucais com resultados adversos na gravidez,4-6 o que torna relevante a investigação do conhecimento sobre saúde bucal entre gestantes. No presente estudo, mais da metade das mulheres acreditavam que os problemas bucais poderiam afetar a gravidez; algumas delas já tinham ouvido falar sobre uma possível associação entre saúde bucal e gravidez e acreditavam no ditado "um dente por bebê", como já observaram Habashneh e cols. em estudo realizado no período 2001-2002, nos Estados Unidos da América.19
Em relação ao pré-natal, ressalta-se a importância de ser iniciado no primeiro trimestre gestacional, com acompanhamento mensal da gestação.1 Essa realidade foi observada entre as gestantes do estudo em tela: a maioria iniciou o pré-natal no primeiro trimestre de gravidez, embora esse fato se apresentasse significativamente mais frequente no serviço de saúde privado, na comparação com o serviço público.
As principais limitações ao desenvolvimento deste trabalho foram o uso de amostra de conveniência, restrita aos dados-resultados das entrevistas com as mulheres participantes e do autorrelato dos comportamentos de saúde bucal, passível de viés de informação: as respondentes podem ter relatado comportamentos que não adotam, por saberem que são mais aceitáveis socialmente. Contudo, o emprego de um instrumento de coleta de dados previamente utilizado em outros estudos18,19 contribui para minimizar possíveis vieses de informação.23
Não obstante essas limitações, o estudo permitiu conhecer algumas características do pré-natal e hábitos de higiene bucal entre as gestantes entrevistadas. Esse conhecimento configura-se como critério fundamental para o planejamento de ações e estratégias em saúde bucal, tanto para o setor público como para o setor privado, podendo auxiliar na elaboração e implementação de políticas públicas voltadas à saúde das mulheres grávidas.
É mister integrar os conhecimentos médicos e odontológicos, para melhor atender as gestantes durante o pré-natal.24 Faz-se necessária uma maior atuação interdisciplinar, entre cirurgiões-dentistas e médicos dedicados ao acompanhamento da gestante, em que o cirurgião-dentista se integre - efetivamente - à equipe de atendimento pré-natal, incluindo ações de promoção de saúde bucal da gestante e de seus filhos25 que vão além da função de indicador de saúde bucal, justamente a cobertura da primeira consulta de atendimento odontológico à gestante. Realidade esta distante, todavia. Distante da realidade proposta, a situação detectada nesta pesquisa revelou pouca realização de serviço odontológico às gestantes, em ambos os serviços de saúde.
Conclui-se que as gestantes usuárias dos serviços público e privado de saúde em São Luís, Maranhão, apresentam frequências de cuidados no pré-natal similares, não obstante as diferenças notadas quanto ao início do pré-natal, estado civil, nível de instrução, jornada de trabalho, renda familiar e número de gestações. A associação entre saúde bucal e gravidez, assim como as alterações da condição bucal no período de gestação, é pouco conhecida pelas gestantes.