Introdução
As doenças cardiovasculares constituem problema de grande magnitude, ocupam a primeira causa de mortes no Brasil e respondem por aproximadamente um terço do total de óbitos no país.1 Elas contribuem, de forma importante, para a carga global de doenças, com comportamento ascendente em países em desenvolvimento e descendente em países desenvolvidos.2 Os países asiáticos apresentam os maiores percentuais de contribuição, a exemplo da Ucrânia com 33,9% e da Rússia com 31,18% em 2013.2 No Brasil, tal contribuição passou de 11,9% em 1990 para 14,5% em 2013.2
A carga do óbito relacionada às doenças cardiovasculares aumentou em torno de 41% no período de 1990 a 2013, embora tenha reduzido 39% em algumas idades específicas.3
Entre as doenças cardiovasculares, as doenças isquêmicas do coração e cerebrovasculares constituem os subgrupos com maior contribuição para a carga global de doenças.2 No estudo brasileiro de Carga Global de Doenças de 2008, responderam pelo primeiro (7,2%) e quarto lugar (4,4%) entre homens, e segundo (6,4%) e quarto lugar (4,8%) entre mulheres.4
A estimação da carga de doença, caracterizada pela composição em uma mesma medida de indicadores de mortalidade precoce e morbidade, revela prioridades na prevenção em saúde e fornece subsídios para a formulação de políticas públicas eficazes em seu controle. Idealizado por Murray,5 o indicador de estimativa de anos de vida ajustados por incapacidade (ou Disability-Adjusted Life Years [DALYs], na denominação original em inglês) tem sido utilizado mundialmente, nos estudos de Carga Global de Doença de 1990,2 20106 e 2013.7
No Brasil, a carga global foi estimada em 19988 e atualizada em 2008.4 O estado de Minas Gerais teve sua carga global estimada em 2011.9 No estado de Santa Catarina foram, realizados estudos para alguns grupos de agravos, em nível estadual10-15 e municipal.16-18 Ressalta-se a importância do monitoramento de indicadores de carga, tanto para nortear novas ações como ratificar as ações em curso. Desconhece-se, até o momento da conclusão deste artigo, estudos brasileiros que tenham aferido a carga das doenças cardiovasculares em nível local. O objetivo desse estudo foi estimar a carga das doenças cardiovasculares no estado de Santa Catarina, Brasil.
Métodos
Foi desenvolvido um estudo ecológico, baseado nos registros de indivíduos residentes em Santa Catarina, internados ou tratados em hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) por doenças cardiovasculares ou que tenham ido a óbito por esse mesmo motivo no ano de 2009.
Foram utilizadas informações sobre a população residente estimada para o mesmo ano, por sexo e faixa etária, no estado como um todo e em suas nove macrorregiões de saúde: Sul, Grande Florianópolis, Nordeste, Planalto Norte, Serra Catarinense, Foz do Rio Itajaí, Vale do Itajaí, Meio Oeste e Grande Oeste. A variável ‘idade’ foi categorizada em nove grupos etários, em anos: menor de 1, 1 a 4, 5 a 14, 15 a 29, 30 a 44, 45 a 59, 60 a 69, 70 a 79 e 80 ou mais.
Os dados de mortalidade por doenças cardiovasculares foram obtidos do banco de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponível no sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus): www.datasus.gov.br (acesso em 10/03/2011). Os óbitos com idade ou sexo ignorado foram redistribuídos proporcionalmente.
Foram utilizados dados de pacientes tratados ou internados por doenças cardiovasculares, obtidos do banco de Autorização de Internação Hospitalar (AIH-SUS) do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), disponibilizado pelo Datasus. Foram excluídos do banco de dados os registros de internações e/ou tratamento do mesmo paciente, em casos de mais de uma internação, mantendo-se os primeiros.
Todos os casos cujos códigos da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) não correspondiam a doenças reumáticas do coração (I01 a I09), doenças isquêmicas do coração (I20 a I25), doenças cerebrovasculares (I60 a I69), doenças inflamatórias do coração (I30 a I33, I38, I40, I42), doença cardíaca hipertensiva (I10 a I13), embolia pulmonar (I26) e aneurisma e dissecção da aorta (I71) foram incluídos em uma categoria denominada “residual”. Entretanto, os códigos relativos a doenças/sintomas não especificados (I47-I51 e I70), denominados “códigos-lixo”, foram redistribuídos proporcionalmente entre os demais tipos de doenças cardiovasculares, conforme proposta de correção utilizada no Estudo de Carga Global de Doenças no Brasil,8 que, por sua vez, baseou-se no Estudo de Carga de Doença da Austrália.19 Em síntese, o código I50 (insuficiência cardíaca) foi redistribuído em diferentes proporções, segundo grupos etários, entre doenças isquêmicas do coração, doenças inflamatórias do coração e doença cardíaca hipertensiva. O mesmo foi feito com os demais códigos relativos a doenças/sintomas não especificados, porém alocados no grupo de doenças isquêmicas do coração e no grupo de outras doenças cardíacas.
O número de anos de vida perdidos (ou Years of Life Lost [YLLs]) devido à morte prematura foi estimado pela diferença entre a idade do óbito e a esperança de vida padronizada. Neste estudo, foram utilizados os mesmos parâmetros dos estudos de carga global de doenças2 e da estimativa da carga de doença do Brasil8 em sua revisão de 2008,4 isto é, esperança de vida ao nascer de 80 anos para homens e 82,5 para mulheres. Estes valores são padronizados para possibilitar comparabilidade internacional entre os resultados de estudos que utilizaram os mesmos parâmetros (o estudo de carga global de doenças realizado em 2015 utiliza parâmetros distintos). Para o cálculo do YLLs, os dados do SIM foram classificadas por tipo de doença cardiovascular de acordo com os códigos da CID-10 (Tabela 1).
a) Códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10a Revisão (CID-10)
b) Fonte: World Health Organization, Global Burden of Disease 2004 update: disability weights for diseases and conditions. WHO: Geneva, 2004.20
Foi aplicada uma taxa de desconto de 3% sobre cada ano de vida perdido no futuro, para o cálculo de YLLs.4,8 Sendo assim, os anos futuros sofreram o efeito da taxa de desconto, de maneira que cada ano de vida saudável perdido foi contabilizado como 97% do anterior e assim sucessivamente.
O número de anos vividos com incapacidade (Years Lived with Disability [YLDs]) foi estimado pelo produto do peso da doença/sequela e sua duração. Para casos de embolia pulmonar e agravos classificados como de comportamento agudo de ordem reumática, bacteriana ou viral, a duração considerada foi o tempo de internação. Para os demais casos, a duração foi considerada permanente, calculada a partir da diferença entre a idade do indivíduo na internação e a expectativa de vida padronizada.4,8
Foram utilizados os pesos das incapacidades recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS)20 para as diversas doenças cardiovasculares (Tabela 1).
O número de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade - DALYs - foi calculado pela soma de YLLs e YLDs.
Todos os dados foram inseridos em planilhas da plataforma Excel e, posteriormente, exportados para o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 18.0, pelo qual foram analisados. Foram calculadas as taxas de YLLs, YLDs e DALYs por 100 mil habitantes, tomando por base a população residente no estado e em suas macrorregiões de saúde no ano estudado, posteriormente padronizadas pelo método direto, tendo a população do estado de Santa Catarina em 2010 como população-padrão.
O estudo respeitou as diretrizes definidas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012, e utilizou dados de sistemas oficiais de informações em saúde, de domínio público, de modo que o projeto foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Foram registrados 9.597 óbitos (SIM) e 45.320 casos de internação (SIH/SUS) por doenças cardiovasculares em Santa Catarina, no ano de 2009 (Tabela 1). Do total de casos, 13.763 (30,3%) foram redistribuídos por ser tratar de casos com códigos não especificados.
Foram estimados 358.777,5 DALYs, o que gerou uma taxa de 5.852,5 DALYs/100 mil habitantes, sendo 51,1% no sexo masculino e 48,9% no feminino (Tabela 2).
As faixas etárias que apresentaram as maiores taxas foram as de 60-69 (22.083,5 DALYs/100 mil hab.), 70-79 (19.861,2 DALYs/100 mil hab.) e 45-59 anos (13.391,8 DALYs/100 mil hab.) (Figura 1). As doenças que mais contribuíram para DALYs foram doenças isquêmicas do coração (36,5%), doenças cerebrovasculares (32,7%) e doença cardíaca hipertensiva (7,8%) (Figura 2).
As macrorregiões de saúde de Santa Catarina com maiores taxas globais de DALYs foram Planalto Norte (9.238,8 DALYs/100 mil hab.), Sul (7.563,7 DALYs/100 mil hab.) e Serra Catarinense (6.437,7 DALYs/100 mil hab.). Ressalta-se que o Planalto Norte apresentou as maiores taxas em seis das sete doenças estudadas; a exceção coube à doença cardíaca hipertensiva, para a qual a maior taxa foi observada na macrorregião de saúde Sul (Figura 3).
Discussão
Este estudo apontou alta carga atribuída às doenças cardiovasculares em todo o estado de Santa Catarina, em 2009. Isto corrobora o comportamento dessas doenças identificado em nível nacional e mundial, conforme foi demonstrado nos estudos de Carga Global de Doença de 1990, 2010, 2013,2 para os quais as doenças isquêmicas do coração e os acidentes cerebrovasculares corresponderam à quarta e sexta causas globais de DALYs no Brasil, representando 5,7% e 4,1% do total de DALYs respectivamente, no ano de 1990. Em 2010, essas doenças já haviam subido no ranking para a primeira e a quarta posições, representadas em percentuais de 6,5% e 4,7% do total de DALYs respectivamente.21 Dados de 2013 confirmaram o posicionamento de ambas no ranking, sendo que a contribuição das doenças isquêmicas subiu para 6,8%.22 Importante ressaltar a redução de 14% nas doenças isquêmicas e de 8% nos acidentes cerebrovasculares, no período de 1990 a 2013.22
Vale destacar que a estimação da carga das doenças cardiovasculares em nível local não é comum no Brasil. Logo é desconhecido seu comportamento, seja entre as 27 Unidades da Federação, seja dentro de cada uma delas. Assim, o cálculo dos DALYs nas macrorregiões de saúde de Santa Catarina disponibiliza, para os serviços, gestores e técnicos, informações conjuntas de óbito precoce e incapacidade gerada pelas doenças cardiovasculares. O presente estudo aponta diferenças regionais no comportamento do indicador, evidenciando que embora seja alta a carga em todo o estado, há regiões a apresentar maior carga, como o Planalto Norte, onde seis das sete doenças estudadas tiveram as mais altas taxas do estado. Por sua vez, o Sul de Santa Catarina apresentou a maior carga atribuída à doença cardíaca hipertensiva, revelando diferenças de condições de saúde entre as macrorregiões do estado; possivelmente, tais diferenças não são suficientemente sensíveis à detecção de outros indicadores utilizados em estudos epidemiológicos das doenças cardiovasculares. Os resultados aqui apresentados refletem a necessidade de desenvolvimento de pesquisas com delineamentos adequados, para apontar as razões da maior carga das doenças cardiovasculares em determinadas regiões do estado catarinense.
Não se trata de uma novidade o fato de as doenças crônicas não transmissíveis, com destaque para as doenças cardiovasculares, serem a maior prioridade da Saúde Pública no Brasil. As prevalências de diabetes e hipertensão arterial sistêmica emergem em paralelo ao excesso de peso, desfavoravelmente associadas ao sedentarismo. Dados da carga global de doença de 2013 demonstram que os maiores fatores de risco para aumento do DALYs foram aspectos alimentares, hipertensão arterial sistêmica e alto índice de massa corpórea (IMC).21-22 Encontra-se bem estabelecido o tratamento adequado da hipertensão arterial sistêmica enquanto fator de redução da carga das doenças cardiovasculares.23
Não obstante os esforços na implementação de políticas públicas de saúde para prevenção e tratamento das doenças crônicas não transmissíveis, a redução da mortalidade a elas atribuída, ajustada pela idade, tem sido de apenas 1 a 8% ao ano.24
Para reduzir a carga das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, foi pactuada intervenção em seis pontos de mais alta prioridade: (i) controle de hipertensão arterial sistêmica, (ii) rastreamento de pacientes em relação à hipertensão arterial sistêmica, (iii) combate ao sedentarismo, (iv) controle da hipercolesterolemia, (v) cessação do tabagismo e (vi) do etilismo. Também foi apontado, como prioridade intermediária, o combate ao sobrepeso e à obesidade.25
Um agravo de saúde bastante comum, cuja abordagem no cuidado primário faz-se igualmente necessária, é a hipertensão arterial sistêmica,23 a ser detectada precocemente e tratada de maneira adequada para evitar o desenvolvimento de infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca, insuficiência renal e morte.23 A diretriz adotada pelos Estados Unidos da América no tratamento da hipertensão arterial sistêmica apresenta as seguintes recomendações para seu manejo em adultos: na população de baixo risco com idade maior que 60 anos, manter a pressão arterial em níveis inferiores a 150/90mmHg; e na população de alto risco, manter a pressão arterial abaixo de 140/90mmHg. Os autores reforçam a necessidade de correlacionar a diretriz com as recomendações do risco cardiovascular, para a consecução de uma estratégia de prevenção geral e uniforme.23
A Sociedade Europeia de Hipertensão, em sua diretriz atualizada no ano de 2013, apresenta recomendações mais simplificadas, segundo as quais todos os indivíduos devem manter a pressão arterial abaixo de 140/90mmHg; contudo, ela apresenta objetivos e metas específicas para a modificação de estilos de vida, como limitar a ingestão de sal de 5 a 6g ao dia e manter o IMC abaixo de 25kg/m2.26
Os conhecimentos da fisiopatologia das doenças cardiovasculares deixam claro que os benefícios da prevenção cardiovascular são alcançáveis no futuro de longo prazo; já as barreiras para mudança de estilo de vida são desafios a serem superados no presente. A educação e a informação em saúde são prioritárias, uma vez que indivíduos com conhecimento de sua doença e informação precisa sobre seu manejo tendem a desenvolver maior adesão ao tratamento.27
Embora o estudo em tela tenha detectado alta carga das doenças cardiovasculares em Santa Catarina, é importante ressaltar que se utilizou de dados relativamente antigos (2009), secundários, portanto susceptíveis a diferentes problemas como o possível sub-registro de ocorrência desses casos. Trata-se de uma restrição de efeito desconhecido, recomendando-se cautela na interpretação dos resultados apresentados neste relato. Outras limitações do estudo com poder de interferência nos resultados e conclusões da pesquisa devem ser igualmente consideradas. Por exemplo, a não inclusão de dados de hospitais não financiados pelo SUS pode ter subestimado a carga da incapacidade encontrada. Por sua vez, a impossibilidade de distinguir casos que deixaram o hospital sem sequelas pode ter sobre-estimado essa carga. Finalmente, proporções diferentes da população que utiliza o SUS, referidas pelas diversas macrorregiões de saúde, poderiam - eventualmente - alterar sua posição no ranking da carga de doenças cardiovasculares no estado.
Mesmo adotando o procedimento metodológico recomendado para estudos de carga de doença, preocupa o percentual significativo de casos com códigos sem especificação, e com idade ou sexo ignorados. O achado suscita uma reflexão sobre a necessidade de maior cuidado no correto preenchimento dos dados e monitoramento dos registros, para que se possa contar com fontes de informações mais precisas e fidedignas. O percentual de casos com código sem especificação também implica cautela na leitura dos resultados por agravo.
Pode-se concluir que a carga das doenças cardiovasculares em Santa Catarina é alta, obrigando os gestores da Saúde a intensificar as ações de promoção de saúde e de prevenção desses agravos em todas as regiões do estado.