Introdução
A violência comunitária, cometida por pessoas desconhecidas, é um dos diferentes tipos de violência, com características diversas da violência familiar.1 A ocorrência de crimes violentos dentro de uma comunidade e a percepção sobre a insegurança do local pela pessoa que ali mora geram impactos negativos para a saúde da população idosa, especialmente, como o aparecimento de sintomas depressivos2 e a redução dos níveis de atividade.3 As principais formas de violência contra o idoso são os abusos físico, psicológico e sexual, abusos financeiros, abandono, negligência e autonegligência.
No Brasil, a proporção de idosos (60 ou mais anos) correspondia a 7,3% em 1991, 8,6% em 2000 e 14,3% da população total no ano de 2015.4,5 Estima-se que os idosos corresponderiam a, aproximadamente, 30% da população brasileira em 2050.6 Quando se levam em consideração as pessoas idosas, são especialmente as mais pobres que tendem a apresentar mais problemas de saúde, maior dependência econômica e maior suscetibilidade a situações de sofrimento por abandono, negligência, maus-tratos e internação em instituições de longa permanência.7
No que tange à violência cometida por desconhecidos, verificou-se uma prevalência de 1,6% no período de 2008 a 2012, em Araçatuba, município de São Paulo.8 Já na cidade do Recife, Pernambuco, essa prevalência foi de 8,9% no período de 2009 a 2012.9 Em outro estudo, realizado no ano de 2010, este de âmbito nacional, observou-se que 15,6% dos casos de violência contra idosos tiveram por agressores desconhecidos.10
O rápido envelhecimento da população brasileira pode representar um grave problema se a longevidade não for acompanhada por políticas públicas adequadas. É preciso garantir políticas e ações preventivas dirigidas aos idosos, de modo a promover melhorias na qualidade de vida, assegurando-lhes oportunidades de saúde, participação social e segurança.7
Tendo em vista a escassez de estudos no Brasil sobre violência contra idosos cometida por pessoas desconhecidas, enquanto maior enfoque é dado ao âmbito familiar,11-13 o presente artigo teve como objetivo analisar a associação entre características sociodemográficas, comportamentais e de saúde e a prevalência de violência contra o idoso cometida por pessoa desconhecida.
Métodos
Foi realizado estudo transversal, com dados levantados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013. Trata-se de uma pesquisa de abrangência nacional, por amostragem domiciliar, realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) juntamente com o Ministério da Saúde.14
A amostra de domicílios foi selecionada utilizando-se um plano amostral complexo, considerando-se a estratificação e conglomeração em três estágios de seleção: (i) os setores - ou conjunto de setores - censitários representaram as unidades primárias de amostragem, (ii) os domicílios, as unidades secundárias, e (iii) os moradores com 18 ou mais anos de idade, as unidades terciárias.14
Foram incluídos todos os idosos (60 ou mais anos de idade) residentes em domicílios particulares permanentes (DPP) no Brasil, que participaram da PNS 2013. Foram, portanto, excluídos do estudo indivíduos não idosos (idade inferior a 60 anos) e idosos que não forneceram informação sobre o desfecho ou alguma das variáveis utilizadas no estudo.
O desfecho ‘violência cometida por pessoa desconhecida’ é uma variável binária, obtida a partir da seguinte pergunta contida no questionário da PNS 2013:
Nos últimos 12 meses, o(a) Sr(a) sofreu alguma violência ou agressão de pessoa desconhecida (como bandido, policial, assaltante etc.)?
Esta pergunta prevê duas alternativas de resposta possíveis: ‘sim’ e ‘não’.
As variáveis consideradas na modelagem estatística referem-se às características sociodemográficas, comportamentais e de saúde dos idosos:
- sexo (masculino, feminino);
- faixa etária (em anos: 60 a 69, 70 a 79, 80 ou mais);
- cor da pele/raça (branca; não branca [preta/parda/amarela/indígena]);
- região nacional de residência (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-Oeste);
- situação do domicílio (urbana, rural);
- escolaridade (sem instrução, sem nível superior, com nível superior);
- estado civil (casado, separado/desquitado judicialmente/divorciado, viúvo, solteiro);
- qualidade da construção da moradia (adequada, inadequada);
- consumo de bebida alcoólica (não [não bebe nunca], sim [menos de uma vez por mês/uma vez ou mais por mês]);
- prática de exercício físico nos últimos três meses (sim, não);
- autoavaliação de saúde geral (boa, regular, ruim);
- frequência de visita da Estratégia Saúde da Família (ESF) nos últimos 12 meses (não cadastrado, não sabe, cadastrado mas nunca recebeu visita, cadastrado com pelo menos uma visita); e
- portador de alguma deficiência física, intelectual, auditiva ou visual (nenhuma, uma, duas, três ou mais).
Na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), o indicador ‘autoavaliação de saúde’ foi obtido mediante a proposição de uma questão única, em que o próprio morador classifica sua saúde segundo uma escala de cinco graus, logo combinados em apenas três: boa (muito boa ou boa), regular ou ruim (ruim ou muito ruim). No que concerne à qualidade da construção da moradia, esta foi considerada adequada quando o domicílio apresentava materiais adequados na constituição de suas paredes e cobertura (teto), e considerada inadequada no caso do domicílio ter utilizado materiais inadequados em termos de parede ou cobertura (teto), ou ambos (parede e teto).15
Foi utilizado o modelo de regressão log-linear de Poisson com variância robusta,16-18 por meio do método de máxima pseudoverossimilhança. No ajuste, foram incorporados os estratos (V0024), as unidades primárias de amostragem (UPA_PNS) e os pesos amostrais (V00291), utilizando-se o módulo survey do software Stata, recomendado para a análise de dados provenientes de planos amostrais complexos. Quanto à estratégia de modelagem, primeiramente foram ajustados modelos bivariáveis; a partir desses modelos, foram estimadas razões de prevalência (RP) brutas e seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). Foram consideradas no modelo multivariável as variáveis cuja associação com o desfecho na análise bruta apresentou p-valor ≤0,20. Foram mantidas no modelo selecionado apenas as variáveis que apresentaram associação estatística em um nível de significância de 5%. Para avaliar a adequação do modelo e sua capacidade preditiva, foi realizada a análise dos resíduos de Pearson e calculadas as medidas de sensibilidade e especificidade. As análises estatísticas foram realizadas pelo Stata versão 11.0.
O estudo utilizou apenas dados secundários, sem identificação dos sujeitos, em conformidade com os princípios éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
A amostra deste estudo foi composta por 11.143 idosos, dos quais 1,61% (IC95% 1,28;1,94) reportaram ter sofrido violência cometida por pessoa desconhecida nos últimos 12 meses, o que corresponde a mais de 423 mil idosos.
Do total de idosos, 56,3% eram mulheres, 56,3% tinham entre 60 e 69 anos, 53,6% declararam-se de cor de pele branca e mais da metade deles (53,3%) eram casados. Observou-se, também, que 85,2% dos idosos residiam em áreas urbanas. Apenas 9,6% dos idosos tinham ensino superior completo, enquanto 18,4% não tinham instrução formal. A maioria deles (97,7%) residia em domicílios considerados adequados quanto à qualidade da construção, em termos de paredes e teto (Tabela 1).
Características | Percentual de idosos (%) n=11.143 | Violência cometida por pessoa desconhecida (%) | Análise bruta | Análise ajustada | |||||
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Sim | Não | RPa | IC95% b | p-valor | RPa | IC95% b | p-valor | ||
Sexo | |||||||||
Masculino (n=4.546) | 43,7 | 1,5 | 98,5 | 0,85 | 0,58;1,26 | 0,423 | |||
Feminino (n=6.597) | 56,3 | 1,7 | 98,3 | 1,00 | - | ||||
Faixa etária (em anos) | |||||||||
60-69 (n=6.213) | 56,3 | 1,9 | 98,1 | 2,54 | 1,29;5,00 | 0,017 | 2,03 | 1,02;4,06 | 0,044 |
70-79 (n=3.435) | 30,0 | 1,4 | 98,6 | 1,80 | 0,87;3,70 | 1,62 | 0,79;3,34 | 0,188 | |
≥80 (n=1.495) | 13,7 | 0,8 | 99,2 | 1,00 | - | 1,00 | - | - | |
Cor da pele/raça | |||||||||
Branca (n=5.294) | 53,6 | 1,9 | 98,1 | 1,52 | 1,01;2,30 | 0,046 | |||
Não branca (n=5.849) | 46,4 | 1,3 | 98,7 | 1,00 | - | ||||
Estado civil | |||||||||
Separado (n=1.126) | 7,8 | 1,8 | 98,2 | 1,06 | 0,62;1,81 | 0,684 | |||
Viúvo (n=3.417) | 26,6 | 1,3 | 98,7 | 0,75 | 0,44;1,26 | ||||
Solteiro (n=1.802) | 12,3 | 1,5 | 98,5 | 0,88 | 0,46;1,69 | ||||
Casado (n=4.798) | 53,3 | 1,7 | 98,3 | 1,00 | - | ||||
Região nacional de residência | |||||||||
Norte (n=1.678) | 5,4 | 1,9 | 98,1 | 0,76 | 0,41;1,42 | 0,205 | 0,80 | 0,42;1,49 | 0,479 |
Nordeste (n=3.387) | 25,2 | 1,4 | 98,6 | 0,58 | 0,33;1,02 | 0,67 | 0,38;1,19 | 0,169 | |
Sudeste (n=3.197) | 47,9 | 1,4 | 98,6 | 0,56 | 0,32;0,98 | 0,50 | 0,29;0,86 | 0,013 | |
Sul (n=1.620) | 15,1 | 2,1 | 97,9 | 0,87 | 0,46;1,62 | 0,82 | 0,44;1,52 | 0,537 | |
Centro-Oeste (n=1.261) | 6,4 | 2,5 | 97,5 | 1,00 | - | 1,00 | - | - | |
Situação do domicílio | |||||||||
Urbano (n=8.966) | 85,2 | 1,7 | 98,3 | 1,77 | 0,79;3,99 | 0,166 | |||
Rural (n=2.177) | 14,8 | 1,0 | 99,0 | 1,00 | - | ||||
Escolaridade | |||||||||
Sem instrução (n=2.329) | 18,4 | 0,6 | 99,4 | 0,20 | 0,10;0,43 | <0,001 | 0,25 | 0,12;0,53 | <0,001 |
Sem nível superior (n=7.731) | 72,0 | 1,7 | 98,3 | 0,58 | 0,31;1,09 | 0,65 | 0,35;1,20 | 0,168 | |
Com nível superior (n=1.083) | 9,6 | 2,9 | 97,1 | 1,00 | - | 1,00 | - | - | |
Qualidade da construção da moradia | |||||||||
Inadequado (n=366) | 2,3 | 2,1 | 97,9 | 1,29 | 0,46;3,59 | 0,627 | |||
Adequado (n=10.777) | 97,7 | 1,6 | 98,4 | 1,00 | - | ||||
Consumo de bebida alcoólica | |||||||||
Não (n=8.723) | 76,0 | 1,6 | 98,4 | 0,93 | 0,60;1,45 | 0,746 | |||
Sim (n=2.420) | 24,0 | 1,7 | 98,3 | 1,00 | - | ||||
Prática de exercício físico nos últimos três meses | |||||||||
Não (n=8.798) | 78,2 | 1,4 | 98,6 | 0,65 | 0,43;0,98 | 0,039 | |||
Sim (n=2.345) | 21,8 | 2,2 | 97,8 | 1,00 | - | ||||
Autoavaliação de saúde geral | |||||||||
Boa (n=4.913) | 45,0 | 1,6 | 98,4 | 1,56 | 0,80;3,04 | 0,330 | |||
Regular (n=4.769) | 43,1 | 1,7 | 98,3 | 1,64 | 0,85;3,19 | ||||
Ruim (n=1.461) | 11,9 | 1,1 | 98,9 | 1,00 | - | ||||
Frequência de visita da Estratégia Saúde da Família | |||||||||
Não cadastrado (n=3.754) | 34,8 | 2,0 | 98,0 | 1,73 | 1,08;2,76 | 0,095 | 1,57 | 1,00;2,48 | 0,050 |
Não sabe (n=1.200) | 9,1 | 1,6 | 98,4 | 1,32 | 0,67;2,63 | 1,29 | 0,66;2,54 | 0,450 | |
Cadastrado, nunca recebeu visita (n=1.082) | 9,9 | 2,1 | 97,9 | 1,82 | 0,96;3,44 | 1,73 | 0,92;3,29 | 0,090 | |
Cadastrado, com ao menos uma visita (n=5.107) | 46,2 | 1,2 | 98,8 | 1,00 | - | 1,00 | - | - | |
Portador de alguma deficiência | |||||||||
Nenhuma (n=8.822) | 78,6 | 1,4 | 98,6 | 0,39 | 0,05;2,79 | 0,206 | |||
Uma (n=1.921) | 17,9 | 2,4 | 97,6 | 0,68 | 0,09;5,07 | ||||
Duas (n=362) | 3,2 | 1,7 | 98,3 | 0,47 | 0,06;3,75 | ||||
Três ou mais (n=38) | 0,3 | 3,6 | 96,4 | 1,00 | - |
a) RP: razão de prevalência.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Nota: Amostra expandida: 26.326.806.
Quanto às características comportamentais e de saúde, constatou-se que 24,0% dos idosos consultados faziam uso de bebidas alcoólicas e 78,2% não haviam praticado exercício físico nos últimos três meses; 45,0% reportaram estado de saúde bom, enquanto 43,1% saúde regular e 11,9%, saúde ruim (Tabela 1).
Quanto à frequência das visitas da equipe da ESF recebidas nos últimos 12 meses e ao cadastramento do domicílio nessa estratégia, 46,2% dos idosos estavam cadastrados e receberam pelo menos uma visita da equipe, e 9,9%, apesar de residirem em domicílios cadastrados, relataram nunca ter recebido uma visita da equipe. Dos demais idosos, 34,8% informaram não estarem cadastrados na ESF e 9,1% não souberam responder se sua residência o estava (Tabela 1).
Sobre a presença de deficiência física, intelectual, auditiva ou visual, 78,6% dos idosos informaram não ter nenhuma deficiência, enquanto 21,4% informaram portar ao menos uma dessas deficiências (Tabela 1).
Na análise bruta, verificou-se que a violência cometida por pessoa desconhecida tendo como vítimas idosos foi mais prevalente na faixa etária de 60 a 69 anos (RP=2,54; IC95% 1,29;5,00), nos idosos de cor da pele branca (RP=1,52; IC95% 1,01;2,30), com nível de escolaridade superior, que praticavam atividade física e que reportaram melhores níveis de saúde. Observou-se, ainda, que a violência cometida por pessoa desconhecida foi mais prevalente entre idosos moradores de áreas urbanas (RP=1,77; IC95% 0,79;3,99), e entre residentes da região Centro-Oeste na comparação com residentes na região Sudeste (Tabela 1).
Os idosos que habitavam residências cadastradas na ESF e receberam ao menos uma visita da equipe (RP=0,58; IC95% 0,36;0,92) apresentaram menor prevalência de violência cometida por pessoa desconhecida, frente aos que moravam em residências não cadastradas (Tabela 1).
Na análise ajustada, idosos de 60 a 69 anos tiveram prevalência de violência cometida por pessoa desconhecida aproximadamente duas vezes maior que a mesma prevalência apresentada por idosos de 80 ou mais anos (RP=2,03; IC95% 1,02;4,06). Os idosos residentes no Sudeste do país tiveram prevalência de violência cometida por pessoa desconhecida 50,0% menor em comparação aos idosos do Centro-Oeste (RP=0,50; IC95% 0,29;0,86). Essa prevalência foi quatro vezes maior entre idosos com ensino superior completo na comparação com os que não apresentaram instrução formal (RP=4,00; IC95% 1,89;8,33) (Tabela 1).
Idosos que moram em domicílios não cadastrados na ESF possuíam prevalência de violência cometida por pessoa desconhecida 57% maior, comparativamente àqueles que residiam em domicílios cadastrados na ESF e receberam ao menos uma visita da equipe (RP=1,57; IC95% 1,00;2,48) (Tabela 1).
A partir da análise dos resíduos de Pearson referentes ao modelo ajustado, não se observou a presença de outliers (resíduos pequenos e entre -2 e 2), tampouco padrões sistemáticos de variação, indicando a adequação do modelo. Medidas de sensibilidade (S=56,0%) e especificidade (E=64,1%) superiores a 50% indicaram que o modelo conta com uma capacidade preditiva razoável.
Discussão
As características sociodemográficas e de saúde dos idosos consultados associaram-se a prevalência de violência contra o idoso cometida por pessoa desconhecida e sem laços afetivos ou de parentesco. Idosos mais jovens e os mais escolarizados foram os mais vitimizados, contrastando com o perfil das vítimas de violência intrafamiliar. Destaca-se a associação entre o cadastramento do domicílio na ESF (com pelo menos uma visita da equipe) e a menor prevalência de violência contra o idoso perpetrada por pessoas desconhecidas.
Os idosos na faixa de 60 a 69 anos de idade apresentaram maior prevalência de violência por pessoas desconhecidas, quando comparados àqueles com 80 ou mais anos. Segundo Minayo19 e Paz et al.,20 é na faixa de 60 a 69 anos que a vitimização por violência incide mais frequentemente. Uma possível explicação para este achado é o fato de os indivíduos com idade igual ou superior a 80 anos serem os que apresentam maior grau de dependência (psicológica, física e econômica) de sua família ou da instituição de seu abrigo, deixando pouco suas residências; e quando as deixam, geralmente são acompanhados de alguma pessoa ou cuidador, possível fator de proteção contra a violência.21
A maior prevalência de violência contra idosos cometida por pessoa desconhecida no Centro-Oeste pode ser explicado pelas maiores desigualdades econômicas e sociais e pelo crescimento populacional acelerado nessa região. Entre os seis estados brasileiros com maiores registros de violência contra os idosos no período de 1980 a 1998, destacam-se três da região Centro-Oeste: Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, os quais, juntamente com dois estados da região Norte - Rondônia e Roraima - e um do Sudeste - Rio de Janeiro -, possuíam taxas de mortalidade geral que variavam de 133,7 a 249,5 óbitos por 100 mil habitantes.19
No presente estudo, não se verificou associação entre a área de localização do domicílio (urbana versus rural) e o desfecho de violência contra idoso cometida por desconhecidos. Permanecem divergências entre os estudos quanto aos múltiplos resultados da urbanização. Embora a urbanização possa trazer efeitos negativos para a população, relacionados à pobreza, degradação ambiental e violência, implicando grandes custos para a população geral, o meio urbano também pode trazer oportunidades positivas, como melhores condições de emprego, educação, cuidados de saúde e cultura, entre outras.22
Não existe consenso na literatura científica sobre a relação entre a escolaridade e a ocorrência de violência. A maioria dos estudos sobre pessoas idosas no ambiente familiar conclui que a menor escolaridade do idoso está associada à maior ocorrência de violência contra ele, e justifica-se essa associação por uma série de fatores relativos às pessoas de maior idade, a exemplo do maior grau de dependência financeira, falta de apoio social, menor acesso à informação e medo de romper os laços familiares, entre outros.23,24 Contudo, no contexto em que o agressor é uma pessoa desconhecida da vítima, idosos mais escolarizados (com nível superior) exibiram maior prevalência de violência que os idosos sem instrução. Uma possível explicação para essa associação é que idosos com maior escolaridade tendem a contar maior renda e apresentar maiores bens financeiros e/ou materiais, estando, portanto, mais suscetíveis a roubos e à interpelação mais contundente de agressores.25
Neste trabalho, constatou-se que os idosos cadastrados na estratégia da ESF e que receberam pelo menos uma visita da equipe foram os que menos reportaram ter sofrido violência cometida por pessoa desconhecida, em comparação aos idosos residentes em domicílios não cadastrados. A ESF tem como missão prestar assistência integral, incorporando como objeto de suas ações a pessoa, o meio ambiente e os comportamentos interpessoais, além de buscar reduzir a violência.26 No que se refere ao enfrentamento da violência comunitária (ou extrafamiliar), a ESF conta com uma equipe multiprofissional que pode contribuir para a identificação e notificação dos casos às autoridades competentes, tomando por base os relatos recentes e passados de violência sofrida por idosos na comunidade, decorrentes da ação de pessoas desconhecidas, inclusive da sensação de medo e da percepção de insegurança pelos idosos. Evidencia-se a importância da ESF, particularmente dos agentes comunitários de saúde (ACS), cujo vínculo contínuo com a clientela coberta pela estratégia pode ajudar na prevenção das causas de maus-tratos contra o idoso, na melhor compreensão do problema, ademais de servir como guia à implementação de políticas públicas eficazes na promoção de intervenções e na redução da violência na comunidade.13 As ações da ESF em parceria com outros setores (Educação, Assistência Social, meios de comunicação, Segurança, organizações não governamentais [ONGs] etc.) podem contribuir para a promoção de sociedades mais seguras e sadias.1 Investimentos em segurança na comunidade e a implementação de estratégias para superação do sentimento de medo (e consequente imobilização), como a criação de atividades sociais voltadas ao estreitamento das relações entre as pessoas, podem contribuir para a redução da violência comunitária e para a promoção da saúde no Brasil.3,27
O presente estudo possui algumas potencialidades a serem destacadas. A primeira delas diz respeito à aplicação do modelo log-linear de Poisson16,17 com dados provenientes de estudos seccionais, como os da PNS. Trata-se de um método mais adequado - como medida de associação - ao cálculo da razão de prevalência (RP), ao invés da razão de chance (OR). A RP é uma medida de fácil interpretação, e de grande interesse em estudos seccionais.28 A segunda potencialidade deste estudo refere-se à adoção do método de máxima pseudoverossimilhança: um método de estimação que permite incluir as informações do plano amostral (conglomeração, estratificação e pesos amostrais) no ajuste do modelo, capaz de produzir estimadores robustos para os coeficientes e para os erros-padrão.29
No que se refere às limitações do estudo, pode-se citar a não inclusão de outras variáveis relevantes para a análise da violência contra idosos, tais como histórico de violência na família, uso de substâncias psicoativas, insegurança no local de moradia e rendimento domiciliar. Estas variáveis não foram incluídas no estudo por não se encontrarem no questionário da PNS, ou por não divulgação pelo instituto responsável. Além disso, há possibilidade de viés de informação não diferencial, pois o desfecho de violência trata de uma medida autorreferida levantada em um estudo populacional de abrangência nacional. Mais uma limitação a considerar é a própria natureza transversal da pesquisa, impossibilitando o estabelecimento de relação causal entre o desfecho e as variáveis investigadas.
Como ainda são escassos os estudos sobre violência contra idosos por desconhecidos no Brasil, este trabalho buscou contribuir para um maior conhecimento sobre o tema, além de ressaltar a necessidade de formulação e aplicação de políticas específicas dirigidas a essa população.
De modo geral, para reduzir e enfrentar os maus-tratos contra idosos, destaca-se, no âmbito da prevenção e intervenção, a importância dos serviços de saúde na identificação dos casos. Mediante o aperfeiçoamento das práticas desenvolvidas pela ESF e a incorporação crítica dos saberes e das tecnologias disponíveis, tendo em consideração as características específicas da população atendida - geralmente residente em áreas de risco -, é possível desenvolver ações territoriais de prevenção de doenças e agravos.30 A partir da percepção dos profissionais de saúde quanto aos riscos de violência comunitária e das queixas dos idosos sobre qualquer tipo de agressão vinda de pessoas desconhecidas, podem-se tomar medidas de assistência adequadas às vítimas, notificar e comunicar a violência à Delegacia de Proteção ao Idoso. Destaca-se, ainda no âmbito da prevenção da violência, a necessidade da promoção de iniciativas com o propósito de conscientizar e educar a população geral para o problema da violência contra o idoso. O uso de recursos midiáticos nessa conscientização e educação da população deve enfatizar o papel do idoso na sociedade, além de aumentar o saber popular sobre os direitos assegurados às pessoas idosas e as consequências da violação desses direitos. Destaca-se a necessidade de maior fiscalização da aplicação das leis de proteção do idoso, na disposição de (i) condenar os atos violentos, em suas diferentes formas, e (ii) intervir nos fatores de risco da violência, em seus diferentes níveis (do indivíduo às relações comunitárias e na sociedade geral).1
Entre as ações específicas para redução da violência contra o idoso, pode-se citar a ampliação da cobertura das Delegacias Especializadas de Proteção ao Idoso nos municípios brasileiros, e de centros de apoio psicológico e jurídico gratuito aos que são vítimas de violência. Além disso, recomenda-se a realização de debates periódicos sobre questões relacionadas à violência contra a pessoa idosa em escolas, universidades e espaços públicos, e a disseminação de informações sobre o tema via mídias impressas e digitais.