Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, houve uma grande preocupação diante de uma doença que se espalhou rapidamente em várias regiões do mundo, com diferentes impactos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 18 de março de 2020, os casos confirmados da Covid-19 já haviam ultrapassado 214 mil em todo o mundo. Não existiam planos estratégicos prontos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus - tudo é novo. Recomendações da OMS,1 do Ministério da Saúde do Brasil, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC, Estados Unidos)2 e outras organizações nacionais e internacionais têm sugerido a aplicação de planos de contingência de influenza e suas ferramentas, devido às semelhanças clínicas e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios. Esses planos de contingência preveem ações diferentes de acordo com a gravidade das pandemias.
O Plano de Influenza Pandêmica (Pandemic Influenza Plan - PIP), elaborado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos (Department of Health and Human Services3 dos Estados Unidos, em sua quarta atualização, publicada no ano de 2017, incluiu medidas para diferentes áreas do governo e da sociedade civil. Além disso, para que a resposta seja proporcional à gravidade da situação, usa o Quadro de Avaliação da Gravidade Pandêmica (Pandemic Severity Assessment Framework - PSAF)4 como ferramenta de avaliação de risco.
O PSAF propõe duas dimensões para análise.4 Para a dimensão de transmissibilidade, a pontuação varia de 1 a 5, e os indicadores são: taxa de ataque de sintomático em diferentes cenários; R0 (número reprodutivo básico); e o pico de percentual de consultas de síndrome gripal em prontos socorros. Por sua vez, para a dimensão da gravidade clínica, o escore varia de 1 a 7, e as variáveis utilizadas são: taxa de letalidade; proporção de casos hospitalizados entre os atendidos (proporção de hospitalização); e taxa de mortalidade hospitalar, considerando-se apenas casos de influenza, no situação atual da Covid-19. Esse quadro, portanto, utiliza dados que podem ser obtidos no início da ocorrência da transmissão do SARS-Cov-2, diferentemente da aplicação em epidemias de influenza, em que se usam a taxa de ataque e a letalidade, que são indicadores de base populacional e, portanto, difíceis de serem obtidos em bases confiáveis no início de qualquer epidemia.
Por meio do PSAF, as análises podem ser feitas com os dados disponíveis a qualquer momento e podem ser cada vez mais qualificadas durante a evolução da pandemia. Como estamos no início da epidemia de Covid-19, ainda não há clareza sobre vários aspectos clínicos e epidemiológicos dessa doença; no entanto, um grande número de artigos revistos por pares foi publicado recentemente em periódicos especializados. Dessa forma, para a presente análise, utilizamos dados de recente publicação sobre 44.415 casos de Covid-19 ocorridos na China, a partir de 11 de janeiro de 2020.5
Como muitos casos gravemente enfermos ainda estavam hospitalizados no momento em que os artigos foram elaborados, usamos, no cálculo da proporção de hospitalização, apenas os casos que já haviam tido um desfecho da doença (recuperados, alta hospitalar e óbitos).6 Para qualificar os resultados, cada um dos períodos da epidemia na China foi analisado separadamente. É sabido que a letalidade pode ser afetada por fatores como conhecimento sobre a doença, capacidade diagnóstica instalada e superlotação hospitalar. Além disso, os casos mais recentes podem ainda estar hospitalizados e não ser possível conhecer o resultado.
A aplicação de indicadores do PSAF (Tabela 1 e Figura 1) mostra uma doença altamente transmissível,1,7,8 e os indicadores de gravidade clínica também sugerem alta gravidade.9-11 Embora contenha pequenas discrepâncias na dimensão da gravidade clínica, que são esperadas em estudos observacionais não randomizados, a epidemia da Covid-19, analisada conforme o PSAF com dados chineses, pode ser comparada às epidemias severas da história, como a epidemia de influenza de 1918.
Transmissibilidade | População | Resultados% (IC95%) | Escore* | ||
China7 | 22,0 | 5 | |||
China8 | 2,2 (IC95% 1,4; 3.9) | 5 | |||
China1 | 2,0; 2,5 | 5 | |||
Gravidade clínica | População | Período | mortes/casos confirmados | Resultados% (IC95%) | Escore* |
Letalidade | Até 11/fev/2020 | ||||
China (população geral)5 | Antes de 31/dez./2019 | 15/104 | 14,4 (7,7; 21,2) | 7 | |
1-10/jan/2020 | 102/653 | 15,6 (12,8; 18,4) | 7 | ||
11-20/jan/2020 | 310/5.417 | 5,7 (5,1; 6,3) | 7 | ||
21-31/jan/2020 | 494/26.468 | 1,9 (1,7; 2,0) | 7 | ||
1/fev/2020 | 102/12.030 | 0,8 (0,7; 1,0) | 6 | ||
China (trabalhadores da saúde)5 | Antes de 31/dez/2019 | -/- | - | - | |
1-10/jan/2020 | 1/20 | 5,0 (0,0; 14,6) | 7 | ||
11-20/jan/2020 | 1/310 | 0,3 (0,0; 1,0) | 5 | ||
Gravidade clínica | População | Período | mortes/casos confirmados | Resultados % (IC95%) | Escore* |
21-31/jan/2020 | 2/1.036 | 0,2 (0,0; 0,5) | 4 | ||
1/fev/2020 | 1/322 | 0,3 (0,0; 0,9) | 5 | ||
Em 3/mar/2020 | |||||
Wuhan¹ | Período todo | 2.803/67.103 | 4,2 (4,0; 4,3) | 7 | |
Restante da China¹ | Período todo | 112/13.071 | 0,9 (0,7; 1,0) | 6 | |
Estados Unidos² | Período todo | 6/60 | 10,0 (2,4; 17,6) | 7 | |
Itália¹ | Período todo | 52/2.036 | 2,6 (1,9; 3,2) | 7 | |
Coreia do Sul¹ | Período todo | 28/4.812 | 0,6 (0,4; 0,8) | 6 | |
Japão¹ | Período todo | 6/268 | 2,2 (0,5; 4,0) | 7 | |
Irã¹ | Período todo | 66/1.501 | 4,4 (3,4; 5,4) | 7 | |
População | Período | Casos graves+críticos/total de casos | Resultados% (IC95%) | Escore | |
Proporção dehospitalização (por Covid-19) | China (trabalhadores de saúde)5 | Período todo até 11/fev/2020 | 247/1.688 | 14,6 (12,9; 16,3) | 7 |
China (população geral)5 | Período todo até 11/fev/2020 | 8.255/44.415 | 18,6 (18,2; 18,9) | 7 | |
População | Período | mortes/ (curas+altas+mortes) | Resultados (%) (IC95%) | Escore | |
Taxa de mortalidade hospitalar (por Covid-19) | Hospital Jinyintan (Wuhan9 | 1-20/jan/2020 | 11/42 | 26,2 (12,9; 39,5) | 7 |
Zhongnan Hospital da Universidadede Wuhan10 | 1-28 /jan/2020 | 6/53 | 11,3 (2,8; 19,9) | 4 | |
China11 | 11/dez/2019 a 29/jan/2020 | 15/79 | 19.0 (10.3; 27.6) | 7 |
* Escore de gravidade (1 a 7) a partir dos indicadores do Quadro de Avaliação da Gravidade Pandêmica (Pandemic Severity Assessment Framework).4
Fonte : Adaptado de: Reed C, Biggerstaff M, Finelli, Koonin LM, et al, Novel framework for assessingn epidemiologic effect of influenza epidemics pandemic. Emerg infect Dis 2013;19(1):85-91
Com base nessa avaliação inicial (Figura 1), a Covid-19 se apresenta como uma doença de grande transmissibilidade e gravidade clínica, conforme revelado pela letalidade observada em outros países onde a epidemia está em estágio inicial.1
Destacam-se ainda os indicadores encontrados para os profissionais de saúde. Entre os profissionais chineses, a letalidade foi menor do que entre a população geral daquele país (Tabela 1). Entretanto, em relação à incidência, o Grupo Itália para Medicina de Evidência (Italy Group for Evidence Medicine) reportou que 8,3% do total de casos da Covid-19 registrados na Itália ocorreram em profissionais de saúde, o dobro do reportado na China (3,8%).12 A falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) e coletiva nos serviços de saúde, além do grande volume de casos, contribuíram para este quadro. No Brasil, a orientação para os indivíduos sintomáticos (com coriza, febre e tosse) procurarem as unidades da atenção primária em saúde poderá desencadear altas taxas de incidência em profissionais dessa rede, frente à carência de estrutura e de EPIs, já constatada pelos órgãos públicos. Para superação desse desafio, vários países têm proposto a criação de unidades específicas para avaliação clínica de pessoas de média gravidade, possibilitando a concentração de investimentos em equipamentos e a liberação dos fluxos nas unidades de maior complexidade, necessária para os casos mais graves.
Apesar da relevância dos achados, é preciso considerar a heterogeneidade dos indicadores entre diferentes regiões com transmissão, uma vez que esses variam de acordo com ações, rotinas, disponibilidade de suprimentos, estrutura de serviços de saúde e de vigilância, questões culturais e políticas. O PSAF é uma ferramenta que foi desenvolvida com base nos dados dos Estados Unidos para a avaliação inicial da gripe pandêmica e, no próprio documento, é feita a ressalva de que reavaliações sucessivas são importantes, pois as informações são dinâmicas. O SARS-CoV-2 é um vírus respiratório diferente do vírus da influenza, cujo comportamento ainda não foi totalmente esclarecido; além disso, a aplicação desses indicadores no contexto social, político e epidemiológico de outros países pode levar a resultados diferentes do esperado.
Essa análise da epidemia de Covid-19 deve ser modificada quando novas informações forem sendo adicionadas. Contudo, ressalta-se a necessidade de que a comunidade científica e as equipes nacionais e internacionais de vigilância epidemiológica tenham muita cautela ao monitorar as tendências da epidemia, analisando criticamente os instrumentos disponíveis para entender a situação.