A COVID-19, doença identificada pela primeira vez em Wuhan, China, em dezembro de 2019, propagou-se rapidamente e tornou-se uma pandemia em pouco mais de dois meses. A elevada infectividade de seu agente etiológico, o coronavírus denominado SARS-CoV-2, aliada à ausência de imunidade prévia na população humana e à inexistência de vacina, faz com que o crescimento do número de casos seja exponencial, se não forem tomadas medidas para deter sua transmissão.1
Nesse contexto, são indicadas intervenções não farmacológicas (INF), que incluem medidas com alcance individual, ambiental e comunitário, como a lavagem das mãos, a etiqueta respiratória, o distanciamento social, o arejamento e a exposição solar de ambientes, a limpeza de objetos e superfícies, e a restrição ou proibição ao funcionamento de escolas, universidades, locais de convívio comunitário, transporte público, além de outros locais onde há aglomeração de pessoas.2
Tais medidas, quando adotadas no início de um período epidêmico, auxiliam na prevenção da transmissão, na diminuição da velocidade de espalhamento da doença, e consequentemente contribuem para achatar a curva epidêmica.3 Assim, é possível diminuir a demanda instantânea por cuidados de saúde e mitigar as consequências da doença sobre a saúde das populações, incluindo a redução da morbidade e da mortalidade associadas.4
Existem evidências de que as INF são métodos efetivos para reduzir a morbidade e a mortalidade por infecções respiratórias. Tais medidas são recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o enfrentamento da COVID-19. O uso ideal de INF para limitar a transmissão de doenças requer a aplicação de múltiplas estratégias parcialmente eficazes que são introduzidas em fases, ou em “camadas”, ao longo da pandemia, dependendo da gravidade da situação e dos padrões de transmissão local. Existem evidências de que as INF, quando usadas em combinação, podem agir de forma complementar, ou mesmo sinérgica, de modo que sua sobreposição venha a “cobrir os buracos” das “camadas” e restringir gradualmente a transmissão.3
A China adotou medidas rigorosas, envolvendo diversas INF, como determinações para distanciamento social, fechamento de estabelecimentos, bloqueio da cidade e quarentena em massa em Wuhan, bem como intensa busca de casos e contatos. A OMS declarou que a ação da China representou “o esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”.5 Evidências até o momento apontam que tal combinação de estratégias resultou na supressão da epidemia em Wuhan. Uma estratégia complementar adotada pela China no enfrentamento à COVID-19 foi o uso massivo de máscaras, inclusive por pessoas assintomáticas.6
Em contraste, a OMS recomenda o uso de máscaras somente para trabalhadores da saúde e para indivíduos com infecção pelo coronavírus confirmada ou suspeita, e seus cuidadores. O uso de máscaras por pessoas assintomáticas não é recomendado pela OMS, devido à falta de evidência de sua efetividade para redução da transmissão, aliada ao fato de que o uso da máscara pode dar falsa sensação de proteção e fazer com que as pessoas relaxem a adesão a outras medidas reconhecidamente efetivas, como a lavagem das mãos.7
Contudo, ausência de evidência de efetividade não equivale a evidência de inefetividade, especialmente diante de uma doença nova, cujas estratégias de enfrentamento são limitadas.6 Ademais, é sabido que as máscaras são barreiras físicas, e que são efetivas em limitar a transmissão em curta distância por contato direto ou indireto e dispersão de gotículas.8 Estudos apontam que as máscaras faciais, quando adaptadas adequadamente, interrompem efetivamente a dispersão das partículas expelidas por meio da tosse ou espirro, impedindo a transmissão de doenças respiratórias. Mesmo máscaras que não se adaptam perfeitamente, bem como máscaras de fabricação caseira, embora com desempenho inferior às máscaras cirúrgicas e N95, são capazes de reter partículas e vírus transportados pelo ar, de modo que esses não alcancem pessoas próximas.10 Estudo de revisão sistemática apontou que existe alguma evidência para apoiar o uso de máscaras por pessoas doentes para proteger outras pessoas, e de que recomendações de saúde pública para o uso de máscaras com essa finalidade podem ajudar a reduzir a transmissão do vírus influenza.12 Outro estudo de revisão sistemática da literatura concluiu que uma combinação de INF, incluindo higiene das mãos, uso de máscaras e isolamento de casos, ofereceu o maior grau de proteção contra vírus respiratórios.
De fato, não existem estudos sobre a efetividade do uso de máscaras por pessoas assintomáticas para prevenção da transmissão da COVID-19.13 Porém, a transmissão da doença a partir de indivíduos infectados assintomáticos e com sintomas leves foi documentada, e a carga viral é particularmente alta no estágio inicial da doença.15 Autores argumentaram que a recomendação para uso de máscaras por indivíduos assintomáticos, como intervenção de saúde pública, poderia interromper o elo de transmissão, ao bloquear fontes infecciosas aparentemente saudáveis.6 Ou seja, independentemente de proteger ou não quem está usando a máscara, seu uso poderia impedir a transmissão da doença, ao limitar o espalhamento de partículas infectantes. A transmissão comunitária poderia ser reduzida se todas as pessoas, incluindo as assintomáticas e contagiosas, usassem máscaras faciais.16
Resultados ainda incipientes de estudos reforçam essa estratégia. No contexto da epidemia de COVID-19 na China, foi publicado um relato de investigação da transmissão pós-exposição no transporte público. Um homem infectado e com tosse pegou dois ônibus; ele não usou máscara no primeiro veículo, mas usou no segundo. No primeiro ônibus, 5/39 passageiros se tornaram infectados, enquanto no segundo não foi detectada infecção, após investigação e seguimento por duas semanas de todos os 14 passageiros pelo Centro de Controle de Doenças da China (Chinese Center for Disease Control and Prevention – CDC).14
George Gao, Diretor-Geral do CDC da China, em entrevista à revista Science , afirmou:“O grande erro nos Estados Unidos da América e na Europa, é que as pessoas não estão usando máscaras. (…) Muitas pessoas têm infecções assintomáticas ou pré-sintomáticas. Se usam máscaras, isso pode impedir que gotículas que transportam o vírus se espalhem e infectem outras pessoas”.17
No enfrentamento à COVID-19, em outros países, além da China – como Hong Kong, Japão, Tailândia e Coreia do Sul –, as pessoas têm utilizado máscaras de diversos tipos, incluindo as de tecido, que podem ser reutilizadas, mediante procedimento adequado de lavagem. Na República Tcheca, onde o governo tornou obrigatório o uso de máscaras, o crescimento do número de casos novos da COVID-19 parece ser mais lento do que em outras nações europeias. Naquele país, em apenas 10 dias, quase a totalidade da população passou a usar máscaras, predominantemente feitas em casa com materiais facilmente acessíveis, como camisetas velhas.18
Especula-se que, embora ofereça um benefício protetor incerto, o uso de máscaras pode contribuir para a conscientização da responsabilidade coletiva e pessoal no enfrentamento a doenças infecciosas. O envolvimento da população na implementação de medidas de saúde pública claramente ajudou a controlar a pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), em 2002-2003, e também será crucial na pandemia da COVID-19. O significado para a saúde pública de símbolos potentes, como a máscara facial, pode ser considerado em estratégias para enfrentar infecções emergentes.19
Além disso, o fato de que países que foram capazes de testar em massa e isolar os casos positivos, como a Coreia do Sul e a Alemanha, exibiram melhores resultados no enfrentamento da epidemia, reforça a importância da transmissão da COVID-19 a partir de casos assintomáticos ou com sintomas leves. Isso permite supor que a recomendação para uso de máscaras por pessoas assintomáticas pode ser útil, especialmente em locais onde a cobertura da testagem é baixa, a exemplo do Brasil. Com o uso de máscaras, pode ser reduzida a transmissão do coronavírus em comunidades onde há indivíduos assintomáticos ou com sintomas leves que não recebem diagnóstico, e continuam a interagir com outras pessoas.
Nesse contexto, a recomendação21 do Ministério da Saúde do Brasil para o uso de máscaras por pessoas assintomáticas é acertada, como uma estratégia adicional a outras INF adotadas. Contudo, tal recomendação deve ser acompanhada por reforço às demais medidas preconizadas, educação da população para evitar o potencial estigma decorrente do uso de máscaras, e orientações claras a respeito do uso correto das máscaras. É necessário reforçar que a estocagem de máscaras descartáveis não é recomendada, uma vez que as máscaras cirúrgicas e N95 devem ser direcionadas para os trabalhadores de saúde. Quanto às máscaras de tecido, é importante atentar sobre o tempo adequado de uso e os procedimentos de lavagem para reutilização, de modo que seu uso não comprometa o efeito desejado, nem aumente o risco de infecção.
Entretanto, ainda existem grandes lacunas na literatura científica a respeito da efetividade das máscaras para reduzir a transmissão da COVID-19 na comunidade. Embora existam evidências experimentais de que as máscaras são capazes de reter gotículas infectantes e potencialmente reduzir a transmissão, e relatos sobre a diminuição da transmissão com o uso de máscaras, não existem evidências que demonstrem que tal redução ocorra em ambientes comunitários. Estudos epidemiológicos são necessários para elucidar essa questão. Estes devem ser realizados mediante protocolos consistentes, com tamanhos de amostra suficientes, e respeito aos princípios da ética na pesquisa. Além disso, estudos experimentais que comparem o desempenho de máscaras cirúrgicas e máscaras confeccionadas com diferentes tipos de tecidos, no contexto brasileiro, são desejáveis. O curso da pandemia exigirá revisão constante das estratégias de enfrentamento, com base na situação epidemiológica e nas novas evidências que surgirem.