Introdução
A sífilis representa um problema grave de saúde, desde sua descoberta, na Europa do século XVI, até os dias de hoje, quando uma prevalência estimada de 6,3 milhões de novos casos (dado de 2016), entre os quais 0,69% mulheres grávidas, resultou em 200 mil casos de óbito perinatal.1,2
No Brasil a vigilância dessa infecção, em suas formas congênita e gestacional, é considerada compulsória desde 1986 e 2005, respectivamente, mediante registro de notificação no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).3,4 A sífilis congênita (SC) pode ter graves repercussões na saúde do feto, razão por que há um esforço global para seu enfrentamento, expresso na definição da meta de redução da transmissão vertical da infecção a taxas inferiores a 0,5 caso para cada 1 mil nascidos vivos.1,5
Documentos norteadores para a gestão do cuidado e condução das políticas de saúde no combate à infecção foram elaborados nos últimos anos. Estudo de revisão, ao analisar as diretrizes para o manejo da sífilis gestacional (SG) nos países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), encontrou 64 diretrizes com recomendações sobre o gerenciamento da infecção em mulheres grávidas, publicadas ao longo de 15 anos.6
Na mesma perspectiva mundial de luta contra a sífilis e outros agravos materno-infantis, em 2011 foi instituída no Brasil a Rede Cegonha, uma importante rede de ações e serviços com o objetivo de oferecer atenção humanizada à gravidez, parto e puerpério, garantir o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. A implantação da Rede Cegonha trouxe a expansão da triagem pré-natal da sífilis, por meio da descentralização dos testes rápidos para a Atenção Básica à Saúde, ampliando a capacidade de detecção.7
Com o objetivo de fortalecer a política de prevenção da morbimortalidade materno-infantil no Brasil, os governos federal e estaduais têm se organizado em diversas ações, contempladas na Agenda de Resposta Rápida à Sífilis nas Redes de Atenção, lançada em 2017.8 Nesse mesmo ano, Goiás instituiu o Comitê de Investigação da Transmissão Vertical da Sífilis por meio da Portaria GAB/SES-GO nº 512, de 12 de junho de 2017, com o objetivo de investigar, planejar e monitorar as ações de prevenção e controle da sífilis congênita no estado.9,10
Diversas pesquisas são publicadas, mostrando a evolução da SC e da SG no cenário nacional, nos estados e no Distrito Federal. Cumpre lembrar que estudos voltados às regiões de saúde de cada estado serão importantes referências de comparação, na avaliação das recentes estratégias propostas, identificação dos avanços alcançados e desafios persistentes, visando eliminar a infecção dos cenários locais.
O presente estudo teve como objetivo avaliar a tendência temporal e a distribuição espacial da sífilis gestacional e da sífilis congênita no estado de Goiás, no período de 2007 a 2017.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de série temporal, juntamente com uma análise espacial, destinado a avaliar a tendência temporal e a distribuição geográfica da taxa de detecção de SG e da taxa de incidência de SC no estado de Goiás, região Centro-Oeste do Brasil, nos anos de 2007 a 2017.
A população do estado de Goiás, de acordo com o censo demográfico de 2015, foi estimada em 6.778.772 habitantes, distribuídos em 246 municípios, estes agrupados em cinco macrorregiões de saúde: Nordeste, Centro-Oeste, Centro-Norte, Centro-Sudeste e Sudoeste. A densidade demográfica de Goiás é de 17,6 hab. por km2, e o índice de desenvolvimento humano (IDH), de 0,73 – 8° lugar no ranking dos estados.11
Os critérios de notificação de SG e SC sofreram alterações, ao longo da série estudada. Seguiu-se uma definição prévia até o ano de 2014;12 a partir de 2015 até 2017, novos critérios foram propostos e, entre as alterações realizadas, a ausência de informação de tratamento do parceiro sexual da mãe deixou de ser um dos critérios de notificação de SC, mantendo-se apenas os casos de parcerias sexuais com sífilis sabidamente não tratada; ademais, a SG passou a incluir mulheres detectadas durante o puerpério.13
A população do presente estudo foi composta por todos os casos de SG e SC notificados nos municípios de Goiás, entre 2007 e 2017.
Os indicadores analisados foram a taxa de detecção de SG e a taxa de incidência de SC para Goiás, como um todo, e para cada macrorregião de saúde do estado.
O cálculo foi realizado da seguinte forma:
-
Taxa de detecção de SG (por 1 mil nascidos vivos)
Numerador – número de casos notificados de sífilis em gestantes, em um determinado ano de diagnóstico e local de residência.
Denominador – número total de nascidos vivos de mães residentes no mesmo local, no mesmo ano. Fator de multiplicação: 1.000
Este indicador mensura a frequência anual de SG e orienta o planejamento e ações de vigilância epidemiológica para controle da doença.13
-
Taxa de incidência de SC (por 1 mil nascidos vivos)
Numerador – número de casos notificados de sífilis congênita em menores de 1 ano de idade, em um determinado ano de diagnóstico e local de residência.
Denominador – número total de nascidos vivos de mães residentes no mesmo local, no mesmo ano.
Fator de multiplicação: 1.000
Este indicador mensura o risco de ocorrência de casos novos de SC por transmissão vertical do Treponema pallidum.13
Os casos de SG e SC em Goiás foram extraídos do Sinan, e o número de nascidos vivos, do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Ambos os sistemas de informações estão disponíveis no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).
Os dados foram analisados com uso do programa estatístico Stata, versão 14.0, e do programa cartográfico TerraView. Para o estudo da tendência temporal, a unidade de análise considerada foi o ano, dentro do período de 2007 a 2017, constituindo 11 pontos de série; a tendência foi verificada para Goiás e cada macrorregião de saúde do estado. Utilizou-se a regressão linear de Prais-Winsten com variância robusta. Na análise de regressão, considerou-se como variável dependente ‘Y’ os indicadores analisados (taxa de detecção de SG e taxa de incidência de SC) e como variável independente ‘X’ o ano do estudo, a partir da seguinte equação da regressão linear:14
Onde:
Log(Yt) corresponde ao valor
β0 é a constante ou intercepto
β1 é o coeficiente de tendência linear
X é o termo residual
As tendências foram classificadas como crescentes, decrescentes ou estacionárias. As tendências foram consideradas estacionárias nos casos em que o p valor não foi significativo, na análise de tendência; nos casos em que p foi significativo, se β1foi positivo, a tendência foi considerada crescente, e se β1foi negativo, a tendência foi considerada decrescente.
A significância estatística foi estabelecida pelo teste t da regressão. Valores de p <0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Após a análise de tendência, foi realizada análise espacial das taxas de detecção de SG e de incidência de SC. A unidade de análise da distribuição espacial foi constituída pelos 246 municípios de Goiás. As análises foram realizadas sobre os dados de três anos do estudo: 2007 (início), 2012 (meio) e 2017 (fim), com o objetivo de verificar a evolução espacial no período. Na análise de SC, os municípios foram classificados com taxas <0,5 ou ≥0,5 caso de SC por 1 mil nascidos vivos, para verificar o cumprimento ou não de Objetivo do Milênio, qual seja, a redução da SC a incidência inferior a 0,5/1 mil nascidos vivos.5 Para análise da taxa de detecção de SG, os municípios foram classificados considerando-se a mediana da taxa em Goiás no período (<5,0 ou ≥5,0/1 mil nascidos vivos). A presença de dependência espacial global em cada ano analisado foi verificada pelo índice global de Moran.15 Este método mede a correlação de uma variável com ela mesma no espaço, variando de -1 a +1: valores próximos de zero indicam aleatoriedade espacial, valores positivos indicam autocorrelação espacial positiva e valores negativos indicam autocorrelação espacial negativa. As análises espaciais foram realizadas utilizando-se software ArcGIS, versão 10.5.
Resultados
De 2007 a 2017, foram notificados 7.679 casos de SG e 1.554 casos de SC em Goiás. No estado, verificou-se um aumento na taxa de detecção de SG, de 2,8 em 2007 para 14,8/1 mil nascidos vivos em 2017 (Figura 1). A taxa de sífilis congênita passou de 0,3 em 2007 para 2,9/1 mil nascidos vivos em 2017, conforme mostra a Figura 2.
A Tabela 1 mostra a análise de tendência das taxas de detecção de SG e incidência de SC entre 2007 e 2017. Apontou-se tendência crescente, estatisticamente significante, da taxa de detecção de SG no estado de Goiás (VPA de 18,0% – IC95% 15,3;20,8), como também em cada uma das macrorregiões de saúde do estado: Centro-Oeste (VPA de 18,2% – IC95% 14,7;21,8), Nordeste (VPA de 12,1% – IC95% 5,8;18,6), Centro-Norte (VPA de 20,0% – IC95% 12,4;28,0), Sudoeste (VPA de 15,4% – IC95% 3,2;29,2) e Centro-Sudeste (VPA de 22,2% – IC95% 5,3;41,8).
Macrorregião de saúde de Goiás | VPAa (IC95%b) | p-valorc | R2d | Tendência |
---|---|---|---|---|
Taxa de detecção de sífilis gestacional | ||||
Centro-Oeste | 18,2 (14,7;21,8) | <0,001 | 0,938 | ↑ |
Nordeste | 12,1 (5,8;18,6) | 0,002 | 0,569 | ↑ |
Centro-Norte | 20,0 (12,4;28,0) | <0,001 | 0,812 | ↑ |
Sudoeste | 15,4 (3,2;29,2) | 0,021 | 0,415 | ↑ |
Centro-Sudeste | 22,2 (5,3;41,8) | 0,016 | 0,336 | ↑ |
Goiás | 18,0 (15,3;20,8) | <0,001 | 0,925 | ↑ |
Taxa de incidência de sífilis congênita | ||||
Centro-Oeste | 40,2 (33,1;47,6) | <0,001 | 0,933 | ↑ |
Nordeste | -1,4 (-17,7;18,3) | 0,872 | 0,001 | – |
Centro-Norte | 24,1 (17,6; 31,0) | <0,001 | 0,855 | ↑ |
Sudoeste | 45,5 (31,4; 61,0) | <0,001 | 0,867 | ↑ |
Centro-Sudeste | 33,4 (4,3;70,7) | 0,030 | 0,498 | ↑ |
Goiás | 16,8 (20,1;33,8) | <0,001 | 0,812 | ↑ |
a)VPA: variação percentual anual (%).
b)IC95%: intervalo de confiança de 95%.
c)Significância estatística estabelecida pelo teste t da regressão de Prais-Winsten.
d)R2: coeficiente de determinação.
Notas:↑ Crescente↑ Decrescente– Estável
Igualmente, foi identificada tendência crescente significativa da taxa de detecção de SC em Goiás, entre 2007 e 2017: VPA de 16,8% – IC95% 20,1;33,8. Essa tendência também foi crescente na maioria das macrorregiões de saúde: Centro-Oeste (VPA de 40,2% – IC95% 33,1;47,6), Centro-Norte (VPA de 24,1% – IC95% 17,6;31,0), Sudoeste (VPA de 45,5% – IC95% 31,4;61,0) e Centro-Sudeste (VPA de 33,4% – IC95% 4,3;70,7). Na macrorregião Nordeste, a taxa de detecção de SC se mostrou estacionária: VPA de -1,4% – IC95% -17,7;18,3 (Tabela 1).
A Figura 3 apresenta a análise da distribuição espacial das taxas de detecção de SG em 2007, 2012 e 2017. Os municípios foram classificados de acordo com a mediana da taxa de detecção de SG no período analisado (≅5,0). Observou-se aumento na taxa de detecção de SG entre os três anos selecionados na série. Em 2007, 26 municípios (10,6%) apresentaram taxas de detecção ≥5,0 casos por 1 mil nascidos vivos em Goiás. Em 2012, esse número atingiu 67 municípios (27,2%), e em 2017, 147 municípios (59,8%). Segundo o índice global de Moran, calculado para os anos de 2007 (I = 0,006; p = 0,390), 2012 (I = 0,075; p = 0,060) e 2017 (I = 0,010; p = 0,280), os municípios se mostraram espacialmente independentes na variação da taxa de incidência, indicando ausência de cluster espacial da sífilis gestacional em Goiás.
Fonte de dados epidemiológicos: Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Fonte de dados cartográficos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A Figura 4 apresenta a análise da distribuição espacial das taxas de incidência de SC nos mesmos anos de 2007, 2012 e 2017. As análises evidenciam aumento do número de municípios com taxa de incidência de SC ≥0,5 caso por 1 mil nascidos vivos, no decorrer do período entre os três anos selecionados. Em 2007, 15 (6,0%) municípios apresentaram taxas superiores à meta do milênio, enquanto em 2012 eram 18 (7,3%), e em 2017, 64 os municípios (26,0%) a se distanciarem do objetivo de eliminação da sífilis congênita. A evolução do índice global de Moran em 2007 (I = -0,015; p = 0,450), 2012 (I = -0,019; p = 0,230) e 2017 (I = 0,079; p = 0,070) mostra que os municípios foram espacialmente independentes na variação da taxa de incidência, indicando ausência de cluster espacial da sífilis congênita em Goiás.
Discussão
No estado de Goiás, o número de municípios notificantes e a ocorrência de SG e SC aumentaram no período entre 2007 e 2017. Essa tendência de aumento dos agravos ao longo dos anos acompanha o crescimento da taxa de sífilis gestacional observada no país, que passou de 2,3 casos em 2007 para 17,2 casos/1 mil nascidos vivos em 2017, assim como da taxa de incidência de SC, que subiu de 1,9 para 8,6 casos/1 mil nascidos vivos, no transcorrer daquela década.13
Como limitação deste estudo, destaca-se a utilização de dados secundários, oriundos de notificação passiva de casos de SG e SC, o que pode representar apenas uma parcela dos casos existentes. Outra questão a ser ressaltada reside nas alterações dos critérios de notificação, ao longo da série histórica, e sua possível influência na notificação dos casos. Além do mais, existe a possibilidade de os números de casos de SC estarem superestimados, uma vez que a confirmação da transmissão vertical da sífilis só acontece após o seguimento da criança por 18 meses a contar do nascimento, com testagem não treponêmica às idades de 1, 3 e 6 meses, e treponêmica ao final desse período, quando desaparecem os anticorpos maternos.9
O crescimento das taxas, observado ao longo dos anos, mostra um distanciamento do estado de Goiás, e de suas macrorregiões de saúde, da meta de redução da SC para índices inferiores a 0,5 caso em cada 1 mil nascidos vivos.5 Essa realidade de aumento de casos de SG e SC também é vivenciada em outros estados brasileiros, sendo mister reforçar o alerta a respeito do cenário epidemiológico da sífilis no país.16,17
A tendência de aumento de casos de SC, todavia, não pode ser interpretada como uma condição única de estados ou do Brasil como um todo. Estudo internacional revelou um quadro de altas taxas em países da América do Sul, África e Ásia, reafirmando a necessidade de ampliar o acesso à triagem da sífilis para mais de 90% das gestantes, e o mesmo percentual de tratamento entre aquelas diagnosticadas com a infecção.2,18,19
A macrorregião de saúde Nordeste do estado goiano apresentou uma tendência estacionaria de SC, no período observado. Este resultado deve ser analisado com cautela, por ser uma região onde se encontra parte dos municípios da região do chamado Entorno do Distrito Federal, caracterizada por fluxo intenso de pessoas a se deslocar de seu município de residência para o Distrito Federal diariamente, para o trabalho, ou eventualmente, para atendimento nos serviços de saúde da capital federal. Estudo mostrou que 31,6% dos casos de SC notificados no Distrito Federal eram de crianças residentes no estado de Goiás, de maneira que a tendência estacionária de casos de sífilis congênita no Nordeste goiano poderia refletir subnotificações nos registros estaduais e não uma melhora nos indicadores da SC para essa macrorregião de saúde.20
A macrorregião de saúde Sudoeste, especialmente, apresentou um aumento substancial das taxas de SG e SC no final da série temporal. Este resultado pode ser explicado, ao menos em parte, pela implantação tardia da Rede Cegonha na região, o que só aconteceu em 2015. Desta forma, é possível supor que esse aumento reflita melhorias na captação de gestantes com sífilis e no desempenho dos sistemas de vigilância de agravos materno-infantis.21
Ainda que existam protocolos bem estabelecidos e possibilidade de tratamento de baixo custo, tem-se observado aumento progressivo das taxas de SG e consequentemente, de SC.13 Uma das principais causas de falha na prevenção da transmissão vertical da SG é o tratamento tardio ou inadequado da sífilis durante o acompanhamento pré-natal, além de aspectos sociodemográficos e comportamentais que envolvem a exposição das mulheres à infecção.22
Estudo realizado na China, na região de Suzhou, identificou a imigração como um novo componente de risco à exposição materno-fetal de sífilis. O achado da pesquisa chinesa significa um alerta para vários países, incluindo o Brasil, onde se tem vivenciado o aumento da imigração em seu território, nos últimos anos.18
Por recomendação do Ministério da Saúde do Brasil, tal qual noutros países, o tratamento ideal para a sífilis na gravidez baseia-se na prescrição da penicilina G benzatina, com doses escalonadas de acordo com o estágio da doença.8,12 O tratamento deve ser iniciado tão logo se obtenha o diagnóstico, pois, quanto mais precoce e completo for o tratamento, menor será a chance de transmissão vertical: taxas de prevenção de 90 a 98,2% foram alcançadas quando essas intervenções se realizaram até a 28ᵃ semana de gestação. Diagnóstico precoce e adequada terapia são poderosas ferramentas para a efetiva prevenção da transmissão vertical da sífilis e, portanto, todos os esforços devem ser direcionados nesse sentido.2,23
No Brasil, a irregularidade no fornecimento de penicilina como insumo de prevenção da SC é um fator que pode ter contribuído para o aumento dos casos da infecção, sobretudo entre 2014 e 2016, período de falta de matéria-prima para sua fabricação, culminando no desabastecimento do medicamento em unidades de saúde de todo o país.24 Estudo que analisou a escassez da penicilina benzatina em nível mundial identificou a falta desse medicamento em pelo menos 39 países, chamando a atenção para a dificuldade de se pensar em metas globais de eliminação da SC até que sejam resolvidas as lacunas no fornecimento da penicilina benzatina, o que implica considerar variáveis como oferta, produção, demanda e distribuição desse antibiótico, único e adotado universalmente, para o tratamento e prevenção da transmissão de sífilis de mãe para filho.25
No Brasil, apesar da melhoria na cobertura pré-natal ao longo dos anos, apenas 20% das gestantes recebem cuidados adequados e, em muitos municípios, menos de 50% delas realizam duas sorologias para sífilis durante a gestação, conforme recomendação do Ministério da Saúde, o que gera atrasos no diagnóstico e inviabiliza o tratamento em tempo hábil.26
Outro fator possivelmente associado ao aumento de casos de sífilis é a baixa cobertura da Atenção Primária à Saúde. Estudo realizado em Goiás mostrou ampliação da cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) entre 2007 e 2014, embora, quando realizada análise por estratos (de cobertura), os municípios com abrangência da ESF inferior a 75% tenham apresentado maior crescimento do número de casos de SC naquele período. Ademais, a correlação entre o aumento da cobertura da ESF e a ocorrência de SG e SC revelou-se positiva, para quase todos os anos.19
Não obstante as melhorias observadas na rede de vigilância, quanto à notificação dos agravos, elas ainda são insuficientes para impactar na redução dos casos de sífilis. É mister investir em ferramentas que melhorem o intercâmbio de informações dentro da rede de atenção à saúde, buscando agilidade na identificação das gestantes infectadas e seu imediato tratamento. Programas de prevenção de SC, testados em países que utilizaram o teste rápido para detecção da sífilis e lançaram mão do tratamento imediato, reduziram drasticamente as taxas de transmissão vertical.23
Além da preocupação com o aumento do número de município com casos de SG e SC, outras questões importantes devem ser repensadas no contexto da Saúde, para enfrentamento desse agravo, entre elas (i) o não tratamento das parcerias sexuais, (ii) a inadequada utilização de métodos de proteção e profilaxia e (iii) as ações incipientes em saúde sexual e reprodutiva.27 São fatores que contribuem para a ocorrência de reinfecção e manutenção da cadeia de propagação da infecção, podendo exercer ainda maior pressão sobre o sistema de saúde, dada a necessidade de estrutura de apoio e atendimento especializado às alterações congênitas e tardias, decorrentes da exposição ao T. pallidum.23,28
Um dos pilares da prevenção da SC consiste, justamente, na ampla e diversa estrutura dos serviços públicos de saúde, para melhor vigilância, monitorização das tendências, identificação dos surtos da doença e diagnóstico das falhas de atenção, permitindo intervenções direcionadas. Programas específicos, focados em populações mais suscetíveis – imigrantes, mulheres encarceradas, com múltiplos parceiros, usuárias de drogas ilícitas, por exemplo –, também devem ser considerados como estratégicos para o controle da SC, via implementação de melhorias de acesso e alcance dessas populações.23
Em conclusão, o presente estudo verificou tendência crescente de sífilis gestacional e sífilis congênita na década analisada, e ampliação espacial das infecções em Goiás, revelando um distanciamento da meta de eliminação da transmissão vertical da sífilis no estado.