Introdução
A raiva humana é uma antropozoonose transmitida ao homem pela inoculação do vírus presente na saliva e secreção do mamífero infectado, principalmente por mordedura.1 Anualmente, são relatadas cerca de 60 mil mortes no mundo todo, sendo a maioria das vítimas crianças menores de 15 anos, com maior concentração dos óbitos na África e na Ásia.2, 3
No Brasil, devido à implementação de políticas públicas para melhoria das ações de vigilância epidemiológica, a raiva humana com transmissão por cão teve um declínio progressivo. No entanto, a raiva mantida e transmitida entre mamíferos silvestres (principalmente canídeos, morcegos e saguis) merece especial atenção das autoridades, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país.4 No período de 2002 a 2012, foram notificados 126 casos de raiva humana no Brasil, sendo os mamíferos silvestres os responsáveis por 65,1% deles, e 3,2% transmitidos por espécies desconhecidas; o ciclo urbano representou 31,7% dos casos.5
Nos anos de 2004 e 2005, os morcegos hematófagos provocaram a maior parte das ocorrências de transmissão do vírus da raiva para o homem na América Latina, com 46 e 52, registros respectivamente. Naquele período, o Brasil se destacou com a maior representação de casos, 86,5% do total da região.6
Em 2010, somente três casos de raiva humana foram notificados no país, todos na região Nordeste, dois deles apenas no Ceará: um transmitido por cão (Canis lupus familiaris) e outro por sagui (Callithrix jacchus). Em 2013, foram registrados cinco óbitos por raiva humana, três causados por cão e dois por sagui. Em 2015, houve dois óbitos por raiva humana, um transmitido por cão e o outro por gato; e em 2016, mais dois óbitos, um no estado de Roraima, transmitido por gato (Felis catus), e outro no estado do Ceará, transmitido por morcego hematófago.7 Para 2017, encontram-se registrados três casos de raiva humana transmitida por gato, nos estados de Pernambuco, Tocantins e Bahia; e três casos no estado do Amazonas, cuja transmissão se deu por morcego hematófago.8
No estado do Ceará, no período de 2003 a 2013, foram registradas, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), 219.504 agressões de mamíferos a seres humanos com risco para raiva, sendo o cão o principal agressor, seguido do gato (Felis catus).9 Os morcegos aparecem como principais mantenedores do vírus da raiva no Ceará a partir de 2011, com a implantação da vigilância.10 Os vírus identificados nos casos humanos do Ceará estão relacionados às variantes mantidas por cães, morcegos e outros mamíferos silvestres.11 O último óbito por raiva humana naquele estado nordestino ocorreu em 2016, na área rural do município de Iracema.12, 13
É relevante - e necessário - subsidiar profissionais da Saúde com informações detalhadas e oportunas, contribuindo para o desenvolvimento de ações pela melhoria da atenção, vigilância e controle da raiva, e prevenção de novos casos. O presente estudo teve como objetivo descrever a epidemiologia dos casos de raiva humana no estado do Ceará, entre 1970 e 2019.
Métodos
Foi realizado um estudo descritivo com base em dados secundários, tendo como área de abrangência o estado do Ceará. Situado na região Nordeste do Brasil, o Ceará é delimitado ao norte pelo Oceano Atlântico, a oeste pelo estado do Piauí, a leste pelos estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, e ao sul pelo estado de Pernambuco. O Ceará tem uma população de aproximadamente 9 milhões de habitantes e uma área de 149 mil km2, sobre os quais se distribuem 184 municípios.14
O estudo incluiu todos os casos de raiva humana ocorridos no Ceará, no período de 1970 a 2019. A análise baseou-se em dados secundários, disponíveis na Coordenadoria de Vigilância Epidemiológica e Prevenção em Saúde (COVEP) e no Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJDI), ambos órgãos públicos, subordinados à Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. Da COVEP, foram revisados relatórios técnicos resultantes das investigações dos casos e óbitos por raiva humana, disponíveis a partir de 1990. Do HSJDI, foram revisados prontuários e livros de altas e óbitos recuperados do arquivo médico, disponíveis desde 1970. A compilação dos dados sofreu algumas limitações: de 1970 a 1973, as informações obtidas referiam-se apenas ao número de casos; de 1974 a 1985, havia informações sobre o número de casos, o município de ocorrência, a idade, o sexo e a zona de residência (rural ou urbana); a partir de 1986, finalmente, encontraram-se disponíveis todas as informações anteriores, bem como a espécie de animal agressor, o tipo de exposição e o local anatômico da agressão. Por conseguinte, nem todas as variáveis de informação estavam disponíveis para todos os casos.
A análise de tendência contou com o ‘ano do estudo’ como variável independente e o ‘número de casos de raiva humana’ como variável dependente.
Um banco de dados foi construído utilizando-se o programa Excel 2010, para organizar, separar e categorizar as informações.
A análise de tendência temporal foi realizada pelo Joinpoint Regression Program versão 4.7.0.0 (US National Cancer Institute, Bethesda, MD, EUA), de acesso livre (http://surveillance.cancer.gov/joinpoint/), e pelo aplicativo Excel, com produção de tabelas e gráficos, e apresentação dos dados em números absolutos e relativos.
Para calcular a variação percentual anual - ou APC (sigla em inglês, para anual percent change) - da proporção de casos de raiva humana, uma análise de tendência foi realizada mediante regressão linear contínua, com pontos de inflexão. Este método permite ajustar os dados da série temporal, a partir do número mínimo de pontos de inflexão, e determinar se a inclusão de mais pontos de inflexão é estatisticamente significativa; ela é representada por gráfico e indicador APC. Cada ponto significativo indica uma mudança, seja de aumento, seja de diminuição dos casos. Considerou-se o nível de significância de 5%. Foram levadas em conta os erros heterocedásticos, e os coeficientes de regressão foram estimados por mínimos quadrados ponderados. Tendo em vista isso e a avaliação temporal dos dados, também foi utilizado um modelo ajustado de autocorrelação dos erros com base nos dados. Os intervalos de confiança de 95% (IC95%) da APC foram calculados pelo método quantil empírico. Foi considerado um máximo de três pontos de inflexão na análise para os períodos.
A distribuição espacial dos casos foi descrita sobre mapas, elaborados com uso do software QGis versão 2.18.18.15
O estudo foi submetido à plataforma Brasil e aprovado por três Comitês de Ética em Pesquisa (CEP): CEP da Universidade Federal do Ceará, mediante Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 13466719.6.0000.5054, em 30 de maio de 2019; CEP da Secretaria da Saúde de Estado do Ceará, CAAE nº 13466719.6.3001.5051, em 11 de julho de 2019; e CEP do HSJDI, CAAE nº 13466719.6.3002.5044, em 3 de julho de 2019.
Resultados
Ao todo, foram identificados 171 registros de casos de raiva humana no estado do Ceará, no período 1970-2019, 46 deles oriundos do banco de dados da COVEP e 125 (anteriores a 1990) do arquivo médico do HSJDI.
A maioria dos casos era do sexo masculino (106/140; 75,7%) e residente em áreas urbanas (56,0%). A faixa etária mais acometida foi a dos 0 aos 19 anos, com 84 casos (60,0%), seguida dos 20 aos 39 anos, com 26 (18,6%) (Tabela 1).
Variável | N |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 106 |
Feminino | 34 |
Sem informação | 31 |
Faixa etária (anos) | |
0-19 | 84 |
20-39 | 26 |
40-59 | 16 |
≥60 | 14 |
Sem informação | 31 |
Zona de residência | |
Urbana | 65 |
Rural | 51 |
Sem informação | 55 |
Animal agressor | |
Cão | 71 |
Primata (sagui) | 16 |
Quiróptero (morcego) | 7 |
Gato | 1 |
Guaxinim | 1 |
Sem informação | 75 |
Tipo de exposição à infecção | |
Arranhadura | 2 |
Mordedura | 61 |
Sem informação | 108 |
Parte do corpo afetada | |
Mãos | 23 |
Cabeça/pescoço | 10 |
Membros inferiores | 10 |
Membros superiores | 8 |
Tronco | 3 |
Sem informação | 117 |
O cão foi responsável pela transmissão do vírus em quase 75% dos casos, seguido do sagui e do morcego (Tabela 1); dos dois casos restantes, um foi transmitido por gato e o outro por guaxinim. A mordedura foi a forma de exposição em quase todas as agressões. As mãos foram a parte do corpo com maior registro de agressões entre as pessoas acometidas, seguindo-se a cabeça/pescoço e os membros inferiores (Tabela 1).
Podem-se observar duas tendências na epidemiologia da raiva humana no Ceará: um rápido crescimento do número de casos, entre os anos de 1970 e 1978 (APC = 13,7; IC95% de 4,6 a 41,5); e logo um declínio gradual, entre 1978 e 2019 (APC = -6,7; IC95% de -8,8 a -5,9). Neste segundo período, observou-se redução mais intensa até o ano de 2002. Em 2003, registrou-se um total de sete casos, valor quantitativo superior ao dos períodos seguintes, de 2004 a 2019, quando a tendência de diminuição se mostrou menos acentuada, somando um total de seis casos e valor máximo no ano de 2010: dois casos (Figura 1).
O cão foi o animal agressor mais frequente, com 74,0% dos casos. Os anos com maior número de casos transmitidos por cães foram 1980 (8), 1989 (7) e 2003 (7) (Figura 2). O último caso de transmissão por cão no Ceará ocorreu em 2010. Entre os anos de 1991 e 1998, ocorreram nove casos de transmissão por sagui, com destaque para o ano de 1991, com quatro registros. Os sete casos com transmissão por morcegos ocorreram entre 1983 e 2016, quase sempre um caso anual, à exceção de 1985, com dois casos. O único caso com registro de agressão por gato ocorreu em 1979, e o único provocado por um guaxinim, em 1997.
Dos 184 municípios do Ceará, 48 (26,0%) confirmaram casos de raiva humana. Em todo o período estudado, a mesorregião do estado com predomínio de casos foi a região metropolitana de Fortaleza, com 85 (49,7%), seguida da região Norte cearense (23,9%). O município com maior registro de casos foi a capital do estado, Fortaleza, com 64 casos (37,4%) e maior registro de transmissão pelo cão até o ano de 2003. Em seguida, apareceram os municípios de Caucaia, Maranguape e Cascavel, com seis casos (3,5%) cada, e Maracanaú e Redenção, ambos com cinco casos (3,0%) (Figura 3). No restante do estado, não se observou um padrão definido, com 41 municípios a apresentar entre um e três casos. Em Fortaleza, entre os casos com disponibilidade de informação sobre o animal agressor, 94,2% foram atribuídos a agressões por cão, um por gato e um por morcego.
A década com maior predomínio de registros foi a dos anos 1970 a 1979, com 69 casos (40,4%) (Figura 3). De 1980 a 1989, foram registrados 54 casos (31,6%); de 1990 a 1999, 30 casos (17,5%); de 2000 a 2009, 14 casos (8,2%); e de 2010 a 2019, um total de quatro casos (2,3%). Em todos os períodos analisados, à exceção da última década (2010 a 2019), quando não apresentou nenhum caso, Fortaleza predominou com o maior número de óbitos por raiva humana no estado do Ceará.
Discussão
O presente estudo consiste na maior série histórica de casos de raiva humana no estado do Ceará documentada até o momento. Ela evidencia mudanças na dinâmica da transmissão da raiva humana e no perfil dos animais agressores. Observou-se, a partir da década de 1980, declínio no número de casos, além do que, nos últimos dez anos, os mamíferos silvestres, principalmente o sagui e o morcego, passaram a ser os animais agressores mais frequentes, em substituição ao cão.
O estudo apresenta limitações. A principal delas é a utilização de dados secundários. Para os primeiros anos do levantamento, havia uma escassez de dados disponíveis, especialmente sobre a espécie agressora. Ademais, não foi possível localizar todos os prontuários e a maior parte das informações foram coletadas nos livros de altas hospitalares e óbitos. Ressalta-se que, antes da realização do presente estudo, as únicas informações disponíveis sobre os casos de raiva humana no Ceará datavam de 1990 a 2019, com apenas 46 casos confirmados.16
As explicações para o declínio no número de casos, apontadas neste estudo, são sugeridas doravante. No Brasil, o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva foi instituído em 1973, embora somente em 1977 tenha-se feito presente em todos os estados, mediante convênio firmado entre os Ministérios da Saúde, da Agricultura e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).17 Essa cronologia justifica, em parte, a maior ocorrência de casos humanos no Ceará no período de 1970 a 1979. A inexistência de ações de vigilância, prevenção e controle também explica o fato de a maioria dos casos registrados até 2003 atribuir-se a agressão por cão. No nível estadual, somente a partir de 2005, o Ceará passou a realizar vacinação antirrábica canina com coberturas acima de 80%, cumprindo a meta preconizada pelo Ministério da Saúde.18 Portanto, a redução dos casos de raiva transmitida por cães domésticos a partir de 2003, provavelmente, deveu-se à implementação e fortalecimento das ações de vigilância da doença e à vacinação antirrábica canina.19
Outra possível explicação para a redução da incidência de raiva humana no Ceará foi a introdução da vacina produzida em cultura de células diploide humanas, para fins de profilaxia em humanos. Esse produto substituiu a vacina antirrábica humana, produzida em cérebro de camundongos recém-nascidos (vacina Fuenzalida e Palácios), haja vista ser mais eficaz, capaz de induzir melhor resposta imunológica de forma precoce e mais duradoura, além de ocasionar menos eventos adversos.20
Mesmo com as ações de controle realizadas, o Ceará apresentou registro de casos de raiva humana com transmissão por cão até 2010. A presença de programas de vacinação de cães de forma ampliada leva à redução da incidência de exposição do ser humano ao vírus da raiva e, consequentemente, redução do número de casos, desde que a população tenha acesso à profilaxia pós-exposição em tempo hábil e oportuno.2 Estudos realizados em outras regiões do Brasil também apontam redução dos casos de raiva com transmissão por cão e uma mudança nas características epidemiológicas da doença, a partir dos anos 2000.21, 22 Entretanto, em vários países da África e da Ásia, a presença da raiva humana é preocupante, dadas as dificuldades e desafios para os programas de vigilância e controle da infecção nesses países.23, 24
Em oposição à redução dos casos de raiva transmitida por cão, houve um incremento de casos envolvendo animais silvestres, como morcegos e saguis, que passaram a ser as principais espécies transmissoras do vírus da raiva para o ser humano no Ceará.16 O sagui, popularmente conhecido como ‘soim’, é um animal silvestre, erroneamente criado em cativeiro pela população rural do estado, porque desconhece o ciclo silvestre da doença e, portanto, o risco que o hábito de criar sagui ou ‘soim’ em casa representa para a transmissão da raiva aos humanos. Outro estudo realizado no Ceará apresenta os saguis como animais de potencial risco para a ocorrência de acidentes com humanos e outros mamíferos. Saguis são uma espécie de grande importância epidemiológica na cadeia de transmissão do ciclo silvestre da raiva, o que reforça a necessidade de educação em saúde no estado. No estado do Amazonas, entretanto, mais uma pesquisa sobre envolvimento de animais identificou o morcego hematófago como responsável pelo maior número de casos humanos da doença.22, 25, 26
O perfil das variáveis ‘sexo’ e ‘faixa etária’ das pessoas acometidas, segundo este estudo, condizem com os achados de outros estudos no Brasil, Estados Unidos e Índia. O sexo masculino, as crianças e os adolescentes foram os grupos mais comumente afetados, o que pode ser explicado por sua convivência e maior contato com animais domésticos.22, 23 Os resultados do presente estudo sobre a epidemiologia da raiva humana no Ceará divergem, por sua vez, dos reportados em outra pesquisa, realizada em 2013, no Sri Lanka,27 onde a maioria das vítimas de raiva foram indivíduos acima de 40 anos - provavelmente, devido à atenção dedicada ao público infantil ser maior por parte dos familiares, e os adultos não darem a devida importância ao fato de serem agredidos e, por conseguinte, não procurarem assistência médica para se submeter às medidas profiláticas pós-exposição.
Este estudo revela, também, maior proporção dos casos de raiva humana em áreas urbanas (região metropolitana de Fortaleza e região Norte do Ceará), diferentemente dos resultados encontrados para o Equador, onde foi observada predominância de casos na área rural.28 Aspectos relacionados a cultura, hábitos, processos produtivos, migração e interação com a natureza, segundo as diferentes regiões e países-objeto de análise, podem explicar essa diferença entre as conclusões de ambos os estudos.
O alcance de coberturas vacinais satisfatórias dos cães e a profilaxia pós-exposição dos seres humanos de forma completa e em tempo oportuno são ações imprescindíveis à redução da incidência da doença no mundo.29 Na América Latina, entre os anos de 1982 e 2003, o número de casos de raiva humana diminuiu de 355 para 35, representando uma queda de 91,0%, e os casos de raiva em cães diminuíram de 15.686 para 1.131, uma redução de 93,0%.30
Conclui-se que uma maior atenção das autoridades à implementação das ações de vigilância da raiva humana é necessária, com ênfase na abordagem do ciclo silvestre e na educação da população afetada, focadas na transmissão por espécies animais silvestres.