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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde vol.30 no.1 Brasília  2021  Epub 05-Mar-2021

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-49742021000100010 

Artigo Original

Epidemiologia da raiva humana no estado do Ceará, 1970 a 2019*

Epidemiología de la rabia humana en el estado de Ceará, Brasil, 1970 a 2019

Naylê Francelino Holanda Duarte (orcid: 0000-0003-3230-6058)1  , Roberto da Justa Pires Neto (orcid: 0000-0003-0291-9523)1  , Victoria Forte Viana (orcid: 0000-0003-4087-2818)2  , Levi Ximenes Feijão (orcid: 0000-0002-1850-0383)3  , Karina Gatti de Abreu (orcid: 0000-0003-2694-0589)4  , Iva Maria Lima Araújo Melo (orcid: 0000-0002-0170-999X)3  , Anastácio Queiroz Sousa (orcid: 0000-0002-2277-6278)1  , Carlos Henrique Alencar (orcid: 0000-0003-2967-532X)1  , Jorg Heukelbach (orcid: 0000-0002-7845-5510)1 

1Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Fortaleza, CE, Brasil

2Universidade de Fortaleza, Centro de Ciências da Saúde, Fortaleza, CE, Brasil

3Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

4Faculdade Terra Nordeste, Curso de Medicina Veterinária, Caucaia, CE, Brasil

Resumo

Objetivo

Descrever os casos de raiva humana no estado do Ceará, Brasil, no período 1970-2019.

Métodos

Estudo descritivo, sobre dados secundários da Secretaria da Saúde e do hospital de referência do Ceará.

Resultados

Dos 171 casos, 75,7% ocorreram em homens, 60,0% nas idades até 19 anos e 56,0% em áreas urbanas. O cão foi agente transmissor em 74,0% dos casos; sagui em, 16,7%; e morcego, em 7,3%. Entre 1970 e 1978, houve crescimento do número de casos (pelo Joinpoint Regression Program, percentual da mudança anual [APC] = 13,7 - IC95% 4,6;41,5); e entre 1978 e 2019, redução (APC = -6,7 - IC95% -8,8;-5,9). Houve redução da transmissão por cães (71 casos; último caso em 2010) e aumento relativo por mamíferos silvestres (5 casos a partir de 2005).

Conclusão

O estudo evidencia mudança na dinâmica da transmissão da raiva no período observado, com redução da transmissão por cão e incremento de casos por animais silvestres.

Palavras-chave: Zoonoses; Raiva; Monitoramento Epidemiológico; Saúde Pública; Epidemiologia Descritiva

Resumen

Objetivo

Describir los casos de la rabia humana en Ceará, Brasil, 1970-2019.

Métodos

Estudio descriptivo con datos secundarios de la Secretaría de Salud y del hospital de referencia de Ceará.

Resultados

De los 171 casos, 75,7% ocurrió en hombres, el 60,0% en los 19 años y el 56,0% en áreas urbanas. El perro fue transmisor en 74,0%, el mono tití en 16,7% y el murciélago el 7,3%. Entre 1970 y 1978, hubo un aumento de casos (por el Joinpoint Regression Program, cambio porcentual anual [APC] = 13,7 - IC95% 4,6; 41,5), entre 1978 y 2019 una disminución (APC= -6,7 - IC95% -8,8; -5,9). Hubo una reducción de la transmisión por perros (71 casos, el último en 2010) y un aumento por mamíferos salvajes (5 casos, desde 2005).

Conclusión

El estudio muestra un cambio en la dinámica de la transmisión de la rabia en los últimos años, con reducción de la transmisión por perros y aumento de casos por animales salvajes.

Palabras clave: Embarazo; Aumento de Peso; Peso al Nacer; Estudios Transversales

Introdução

A raiva humana é uma antropozoonose transmitida ao homem pela inoculação do vírus presente na saliva e secreção do mamífero infectado, principalmente por mordedura.1 Anualmente, são relatadas cerca de 60 mil mortes no mundo todo, sendo a maioria das vítimas crianças menores de 15 anos, com maior concentração dos óbitos na África e na Ásia.2, 3

No Brasil, devido à implementação de políticas públicas para melhoria das ações de vigilância epidemiológica, a raiva humana com transmissão por cão teve um declínio progressivo. No entanto, a raiva mantida e transmitida entre mamíferos silvestres (principalmente canídeos, morcegos e saguis) merece especial atenção das autoridades, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país.4 No período de 2002 a 2012, foram notificados 126 casos de raiva humana no Brasil, sendo os mamíferos silvestres os responsáveis por 65,1% deles, e 3,2% transmitidos por espécies desconhecidas; o ciclo urbano representou 31,7% dos casos.5

Nos anos de 2004 e 2005, os morcegos hematófagos provocaram a maior parte das ocorrências de transmissão do vírus da raiva para o homem na América Latina, com 46 e 52, registros respectivamente. Naquele período, o Brasil se destacou com a maior representação de casos, 86,5% do total da região.6

Em 2010, somente três casos de raiva humana foram notificados no país, todos na região Nordeste, dois deles apenas no Ceará: um transmitido por cão (Canis lupus familiaris) e outro por sagui (Callithrix jacchus). Em 2013, foram registrados cinco óbitos por raiva humana, três causados por cão e dois por sagui. Em 2015, houve dois óbitos por raiva humana, um transmitido por cão e o outro por gato; e em 2016, mais dois óbitos, um no estado de Roraima, transmitido por gato (Felis catus), e outro no estado do Ceará, transmitido por morcego hematófago.7 Para 2017, encontram-se registrados três casos de raiva humana transmitida por gato, nos estados de Pernambuco, Tocantins e Bahia; e três casos no estado do Amazonas, cuja transmissão se deu por morcego hematófago.8

No estado do Ceará, no período de 2003 a 2013, foram registradas, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), 219.504 agressões de mamíferos a seres humanos com risco para raiva, sendo o cão o principal agressor, seguido do gato (Felis catus).9 Os morcegos aparecem como principais mantenedores do vírus da raiva no Ceará a partir de 2011, com a implantação da vigilância.10 Os vírus identificados nos casos humanos do Ceará estão relacionados às variantes mantidas por cães, morcegos e outros mamíferos silvestres.11 O último óbito por raiva humana naquele estado nordestino ocorreu em 2016, na área rural do município de Iracema.12, 13

É relevante - e necessário - subsidiar profissionais da Saúde com informações detalhadas e oportunas, contribuindo para o desenvolvimento de ações pela melhoria da atenção, vigilância e controle da raiva, e prevenção de novos casos. O presente estudo teve como objetivo descrever a epidemiologia dos casos de raiva humana no estado do Ceará, entre 1970 e 2019.

Métodos

Foi realizado um estudo descritivo com base em dados secundários, tendo como área de abrangência o estado do Ceará. Situado na região Nordeste do Brasil, o Ceará é delimitado ao norte pelo Oceano Atlântico, a oeste pelo estado do Piauí, a leste pelos estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, e ao sul pelo estado de Pernambuco. O Ceará tem uma população de aproximadamente 9 milhões de habitantes e uma área de 149 mil km2, sobre os quais se distribuem 184 municípios.14

O estudo incluiu todos os casos de raiva humana ocorridos no Ceará, no período de 1970 a 2019. A análise baseou-se em dados secundários, disponíveis na Coordenadoria de Vigilância Epidemiológica e Prevenção em Saúde (COVEP) e no Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJDI), ambos órgãos públicos, subordinados à Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. Da COVEP, foram revisados relatórios técnicos resultantes das investigações dos casos e óbitos por raiva humana, disponíveis a partir de 1990. Do HSJDI, foram revisados prontuários e livros de altas e óbitos recuperados do arquivo médico, disponíveis desde 1970. A compilação dos dados sofreu algumas limitações: de 1970 a 1973, as informações obtidas referiam-se apenas ao número de casos; de 1974 a 1985, havia informações sobre o número de casos, o município de ocorrência, a idade, o sexo e a zona de residência (rural ou urbana); a partir de 1986, finalmente, encontraram-se disponíveis todas as informações anteriores, bem como a espécie de animal agressor, o tipo de exposição e o local anatômico da agressão. Por conseguinte, nem todas as variáveis de informação estavam disponíveis para todos os casos.

A análise de tendência contou com o ‘ano do estudo’ como variável independente e o ‘número de casos de raiva humana’ como variável dependente.

Um banco de dados foi construído utilizando-se o programa Excel 2010, para organizar, separar e categorizar as informações.

A análise de tendência temporal foi realizada pelo Joinpoint Regression Program versão 4.7.0.0 (US National Cancer Institute, Bethesda, MD, EUA), de acesso livre (http://surveillance.cancer.gov/joinpoint/), e pelo aplicativo Excel, com produção de tabelas e gráficos, e apresentação dos dados em números absolutos e relativos.

Para calcular a variação percentual anual - ou APC (sigla em inglês, para anual percent change) - da proporção de casos de raiva humana, uma análise de tendência foi realizada mediante regressão linear contínua, com pontos de inflexão. Este método permite ajustar os dados da série temporal, a partir do número mínimo de pontos de inflexão, e determinar se a inclusão de mais pontos de inflexão é estatisticamente significativa; ela é representada por gráfico e indicador APC. Cada ponto significativo indica uma mudança, seja de aumento, seja de diminuição dos casos. Considerou-se o nível de significância de 5%. Foram levadas em conta os erros heterocedásticos, e os coeficientes de regressão foram estimados por mínimos quadrados ponderados. Tendo em vista isso e a avaliação temporal dos dados, também foi utilizado um modelo ajustado de autocorrelação dos erros com base nos dados. Os intervalos de confiança de 95% (IC95%) da APC foram calculados pelo método quantil empírico. Foi considerado um máximo de três pontos de inflexão na análise para os períodos.

A distribuição espacial dos casos foi descrita sobre mapas, elaborados com uso do software QGis versão 2.18.18.15

O estudo foi submetido à plataforma Brasil e aprovado por três Comitês de Ética em Pesquisa (CEP): CEP da Universidade Federal do Ceará, mediante Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 13466719.6.0000.5054, em 30 de maio de 2019; CEP da Secretaria da Saúde de Estado do Ceará, CAAE nº 13466719.6.3001.5051, em 11 de julho de 2019; e CEP do HSJDI, CAAE nº 13466719.6.3002.5044, em 3 de julho de 2019.

Resultados

Ao todo, foram identificados 171 registros de casos de raiva humana no estado do Ceará, no período 1970-2019, 46 deles oriundos do banco de dados da COVEP e 125 (anteriores a 1990) do arquivo médico do HSJDI.

A maioria dos casos era do sexo masculino (106/140; 75,7%) e residente em áreas urbanas (56,0%). A faixa etária mais acometida foi a dos 0 aos 19 anos, com 84 casos (60,0%), seguida dos 20 aos 39 anos, com 26 (18,6%) (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuição dos casos de raiva humana segundo características demográficas, animal agressor e exposição à infecção, Ceará, 1970 a 2019 

Variável N
Sexo
Masculino 106
Feminino 34
Sem informação 31
Faixa etária (anos)
0-19 84
20-39 26
40-59 16
≥60 14
Sem informação 31
Zona de residência
Urbana 65
Rural 51
Sem informação 55
Animal agressor
Cão 71
Primata (sagui) 16
Quiróptero (morcego) 7
Gato 1
Guaxinim 1
Sem informação 75
Tipo de exposição à infecção
Arranhadura 2
Mordedura 61
Sem informação 108
Parte do corpo afetada
Mãos 23
Cabeça/pescoço 10
Membros inferiores 10
Membros superiores 8
Tronco 3
Sem informação 117

O cão foi responsável pela transmissão do vírus em quase 75% dos casos, seguido do sagui e do morcego (Tabela 1); dos dois casos restantes, um foi transmitido por gato e o outro por guaxinim. A mordedura foi a forma de exposição em quase todas as agressões. As mãos foram a parte do corpo com maior registro de agressões entre as pessoas acometidas, seguindo-se a cabeça/pescoço e os membros inferiores (Tabela 1).

Podem-se observar duas tendências na epidemiologia da raiva humana no Ceará: um rápido crescimento do número de casos, entre os anos de 1970 e 1978 (APC = 13,7; IC95% de 4,6 a 41,5); e logo um declínio gradual, entre 1978 e 2019 (APC = -6,7; IC95% de -8,8 a -5,9). Neste segundo período, observou-se redução mais intensa até o ano de 2002. Em 2003, registrou-se um total de sete casos, valor quantitativo superior ao dos períodos seguintes, de 2004 a 2019, quando a tendência de diminuição se mostrou menos acentuada, somando um total de seis casos e valor máximo no ano de 2010: dois casos (Figura 1).

Figura 1 Distribuição do número de casos de raiva humana por ano, Ceará, 1970 a 2019 

O cão foi o animal agressor mais frequente, com 74,0% dos casos. Os anos com maior número de casos transmitidos por cães foram 1980 (8), 1989 (7) e 2003 (7) (Figura 2). O último caso de transmissão por cão no Ceará ocorreu em 2010. Entre os anos de 1991 e 1998, ocorreram nove casos de transmissão por sagui, com destaque para o ano de 1991, com quatro registros. Os sete casos com transmissão por morcegos ocorreram entre 1983 e 2016, quase sempre um caso anual, à exceção de 1985, com dois casos. O único caso com registro de agressão por gato ocorreu em 1979, e o único provocado por um guaxinim, em 1997.

Nota: a) Informações sobre o animal agressor disponíveis somente a partir de 1979.

Figura 2 Distribuição do número de casos de raiva humana segundo o animal transmissor, Ceará, 1979 a 2019a 

Dos 184 municípios do Ceará, 48 (26,0%) confirmaram casos de raiva humana. Em todo o período estudado, a mesorregião do estado com predomínio de casos foi a região metropolitana de Fortaleza, com 85 (49,7%), seguida da região Norte cearense (23,9%). O município com maior registro de casos foi a capital do estado, Fortaleza, com 64 casos (37,4%) e maior registro de transmissão pelo cão até o ano de 2003. Em seguida, apareceram os municípios de Caucaia, Maranguape e Cascavel, com seis casos (3,5%) cada, e Maracanaú e Redenção, ambos com cinco casos (3,0%) (Figura 3). No restante do estado, não se observou um padrão definido, com 41 municípios a apresentar entre um e três casos. Em Fortaleza, entre os casos com disponibilidade de informação sobre o animal agressor, 94,2% foram atribuídos a agressões por cão, um por gato e um por morcego.

Nota: a) De 1970 a 1979, 19 casos sem informação do município de ocorrência.

Figura 3 Distribuição espacial dos casos de raiva humana notificados (N=171), Ceará, 1970 a 2019 

A década com maior predomínio de registros foi a dos anos 1970 a 1979, com 69 casos (40,4%) (Figura 3). De 1980 a 1989, foram registrados 54 casos (31,6%); de 1990 a 1999, 30 casos (17,5%); de 2000 a 2009, 14 casos (8,2%); e de 2010 a 2019, um total de quatro casos (2,3%). Em todos os períodos analisados, à exceção da última década (2010 a 2019), quando não apresentou nenhum caso, Fortaleza predominou com o maior número de óbitos por raiva humana no estado do Ceará.

Discussão

O presente estudo consiste na maior série histórica de casos de raiva humana no estado do Ceará documentada até o momento. Ela evidencia mudanças na dinâmica da transmissão da raiva humana e no perfil dos animais agressores. Observou-se, a partir da década de 1980, declínio no número de casos, além do que, nos últimos dez anos, os mamíferos silvestres, principalmente o sagui e o morcego, passaram a ser os animais agressores mais frequentes, em substituição ao cão.

O estudo apresenta limitações. A principal delas é a utilização de dados secundários. Para os primeiros anos do levantamento, havia uma escassez de dados disponíveis, especialmente sobre a espécie agressora. Ademais, não foi possível localizar todos os prontuários e a maior parte das informações foram coletadas nos livros de altas hospitalares e óbitos. Ressalta-se que, antes da realização do presente estudo, as únicas informações disponíveis sobre os casos de raiva humana no Ceará datavam de 1990 a 2019, com apenas 46 casos confirmados.16

As explicações para o declínio no número de casos, apontadas neste estudo, são sugeridas doravante. No Brasil, o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva foi instituído em 1973, embora somente em 1977 tenha-se feito presente em todos os estados, mediante convênio firmado entre os Ministérios da Saúde, da Agricultura e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).17 Essa cronologia justifica, em parte, a maior ocorrência de casos humanos no Ceará no período de 1970 a 1979. A inexistência de ações de vigilância, prevenção e controle também explica o fato de a maioria dos casos registrados até 2003 atribuir-se a agressão por cão. No nível estadual, somente a partir de 2005, o Ceará passou a realizar vacinação antirrábica canina com coberturas acima de 80%, cumprindo a meta preconizada pelo Ministério da Saúde.18 Portanto, a redução dos casos de raiva transmitida por cães domésticos a partir de 2003, provavelmente, deveu-se à implementação e fortalecimento das ações de vigilância da doença e à vacinação antirrábica canina.19

Outra possível explicação para a redução da incidência de raiva humana no Ceará foi a introdução da vacina produzida em cultura de células diploide humanas, para fins de profilaxia em humanos. Esse produto substituiu a vacina antirrábica humana, produzida em cérebro de camundongos recém-nascidos (vacina Fuenzalida e Palácios), haja vista ser mais eficaz, capaz de induzir melhor resposta imunológica de forma precoce e mais duradoura, além de ocasionar menos eventos adversos.20

Mesmo com as ações de controle realizadas, o Ceará apresentou registro de casos de raiva humana com transmissão por cão até 2010. A presença de programas de vacinação de cães de forma ampliada leva à redução da incidência de exposição do ser humano ao vírus da raiva e, consequentemente, redução do número de casos, desde que a população tenha acesso à profilaxia pós-exposição em tempo hábil e oportuno.2 Estudos realizados em outras regiões do Brasil também apontam redução dos casos de raiva com transmissão por cão e uma mudança nas características epidemiológicas da doença, a partir dos anos 2000.21, 22 Entretanto, em vários países da África e da Ásia, a presença da raiva humana é preocupante, dadas as dificuldades e desafios para os programas de vigilância e controle da infecção nesses países.23, 24

Em oposição à redução dos casos de raiva transmitida por cão, houve um incremento de casos envolvendo animais silvestres, como morcegos e saguis, que passaram a ser as principais espécies transmissoras do vírus da raiva para o ser humano no Ceará.16 O sagui, popularmente conhecido como ‘soim’, é um animal silvestre, erroneamente criado em cativeiro pela população rural do estado, porque desconhece o ciclo silvestre da doença e, portanto, o risco que o hábito de criar sagui ou ‘soim’ em casa representa para a transmissão da raiva aos humanos. Outro estudo realizado no Ceará apresenta os saguis como animais de potencial risco para a ocorrência de acidentes com humanos e outros mamíferos. Saguis são uma espécie de grande importância epidemiológica na cadeia de transmissão do ciclo silvestre da raiva, o que reforça a necessidade de educação em saúde no estado. No estado do Amazonas, entretanto, mais uma pesquisa sobre envolvimento de animais identificou o morcego hematófago como responsável pelo maior número de casos humanos da doença.22, 25, 26

O perfil das variáveis ‘sexo’ e ‘faixa etária’ das pessoas acometidas, segundo este estudo, condizem com os achados de outros estudos no Brasil, Estados Unidos e Índia. O sexo masculino, as crianças e os adolescentes foram os grupos mais comumente afetados, o que pode ser explicado por sua convivência e maior contato com animais domésticos.22, 23 Os resultados do presente estudo sobre a epidemiologia da raiva humana no Ceará divergem, por sua vez, dos reportados em outra pesquisa, realizada em 2013, no Sri Lanka,27 onde a maioria das vítimas de raiva foram indivíduos acima de 40 anos - provavelmente, devido à atenção dedicada ao público infantil ser maior por parte dos familiares, e os adultos não darem a devida importância ao fato de serem agredidos e, por conseguinte, não procurarem assistência médica para se submeter às medidas profiláticas pós-exposição.

Este estudo revela, também, maior proporção dos casos de raiva humana em áreas urbanas (região metropolitana de Fortaleza e região Norte do Ceará), diferentemente dos resultados encontrados para o Equador, onde foi observada predominância de casos na área rural.28 Aspectos relacionados a cultura, hábitos, processos produtivos, migração e interação com a natureza, segundo as diferentes regiões e países-objeto de análise, podem explicar essa diferença entre as conclusões de ambos os estudos.

O alcance de coberturas vacinais satisfatórias dos cães e a profilaxia pós-exposição dos seres humanos de forma completa e em tempo oportuno são ações imprescindíveis à redução da incidência da doença no mundo.29 Na América Latina, entre os anos de 1982 e 2003, o número de casos de raiva humana diminuiu de 355 para 35, representando uma queda de 91,0%, e os casos de raiva em cães diminuíram de 15.686 para 1.131, uma redução de 93,0%.30

Conclui-se que uma maior atenção das autoridades à implementação das ações de vigilância da raiva humana é necessária, com ênfase na abordagem do ciclo silvestre e na educação da população afetada, focadas na transmissão por espécies animais silvestres.

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Recebido: 23 de Junho de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

Endereço para correspondência: Jorg Heukelbach - Rua Professor Costa Mendes, nº 1068, 5º andar, Rodolfo Teófilo, Fortaleza, CE, Brasil. CEP: 60430-140. E-mail: heukelbach@ufc.br

Editor associado

Bruno Pereira Nunes - orcid.org/0000-0002-4496-41229

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Artigo derivado de pesquisa de doutorado intitulada ‘Dinâmica de transmissão do vírus da raiva, a eficácia operacional das ações de vigilância no estado do Ceará, 1970-2019, e o conhecimento da população sobre a doença’, da discente Naylê Francelino Holanda Duarte, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, em 2020.

Contribuição dos autores

Duarte NFH, Alencar CH e Heukelbach J participaram da concepção do estudo, análise e interpretação dos dados, discussão dos resultados, redação e revisão do manuscrito. Pires-Neto RJ e Sousa AQ participaram da concepção, discussão e revisão do manuscrito. Viana VF, Abreu KG e Melo IMLA participaram da coleta de dados e revisão da literatura. Feijão LX participou da produção e análise dos dados. Todos os autores contribuíram com a elaboração e revisão final do manuscrito e declararam-se responsáveis por todos os aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade.

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