Introdução
Em diversos países, formas alternativas à consulta médica presencial já são utilizadas, apesar de suas limitações, da necessidade de investigar situações e contextos em que a teleconsulta é segura e eficaz, e dos desafios políticos e coorporativos para sua implementação.1 A teleconsulta médica por vídeo pode apresentar resultados equivalentes aos da consulta presencial, no cuidado de pessoas com diabetes mellitus, asma, doença renal, doença obstrutiva pulmonar, saúde mental e dor crônica,2 entre outros benefícios.1
No Brasil, as primeiras restrições ao tratamento médico sem exame físico do paciente foram impostas em 1965.3 No final de 2018, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução pela qual regulamentou o atendimento médico a distância, detalhando premissas, recomendações operacionais e condições para sua realização. Sua publicação gerou polêmica e subsequente revogação, sujeita a ajustes.4 Em março de 2020, o Ministério da Saúde, em caráter excepcional e temporário, regulamentou as ações de telemedicina para a interação a distância, durante a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2),5 cuja infecção provoca a síndrome respiratória aguda grave (COVID-19). A teleconsulta tem sido a forma adotada, em vários países, para prestar atendimento médico sem risco de propagação da doença.
Em maio de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil propôs uma estratégia de teleconsulta médica na Atenção Primária à Saúde (APS), permitindo que os profissionais das unidades básicas de saúde (UBS) brasileiras realizassem consultas virtuais, visando diminuir a propagação do SARS-CoV-2.6
Outra possibilidade de teleconsulta, além da prestação de serviços de Atenção Básica, basear-se-ia na utilização da própria estrutura, abrangência e cobertura das UBS,7 dada a irregularidade na distribuição de médicos especialistas.8 Trata-se de um modelo de teleconsulta especializada em que o paciente vai à UBS para interagir, por chamada de vídeo - em ambiente seguro e com apoio de um profissional de saúde de nível técnico -, com um médico especialista localizado em espaço geográfico distante, porém com acesso aos registros de saúde do paciente.
Esse modelo assegura o contato com o médico por agendamento prévio, dentro da disponibilidade de horário desse profissional. Ademais, a presença de um profissional de nível técnico no momento da consulta pode servir de ajuda a um eventual exame físico, na ausência de equipamentos digitais, e diminuir a barreira da primeira consulta virtual com um médico desconhecido. Estudos já relacionaram efeitos benéficos da teleconsulta quando o médico é conhecido do paciente.2 Nesse sentido, ter um profissional de saúde fisicamente presente garante (i) a identificação do paciente, na ausência de registros digitais unificados, (ii) o auxílio no uso e conectividade de dispositivos eletrônicos, além de favorecer (iii) o entendimento do contexto de vida e melhorar (iv) a comunicação - para maior confiança do paciente e melhores decisões do especialista.9
As necessidades de cuidado e acesso aos serviços são profundamente influenciadas por determinantes sociais10 e, para propor alternativas à consulta presencial, devem-se considerar diversos cenários de acesso à internet e equipamentos tecnológicos, diferentes níveis de literacia digital, problemas financeiros e condições de moradia do paciente. A teleconsulta pode não ser adequada para todos os pacientes ou situações, como, por exemplo, quando representa um obstáculo ao acesso dos mais vulneráveis ou daqueles com dificuldades de utilização da tecnologia.1 Assim, o modelo de teleconsulta especializada depende dos recursos disponíveis nas UBS e da integração entre as equipes de Atenção Básica e Atenção Especializada.
Para que se possam indicar pontos prioritários de investimento na implantação da teleconsulta médica em larga escala no sistema público de saúde brasileiro, é necessário ter em conta as possíveis particularidades regionais e as diferentes escalas populacionais dos municípios. Uma tipologia das UBS realizada considerou as tecnologias de informação e comunicação utilizando dados do 1º ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB),11 com restrita capacidade de análise estrutural, visto que esse ciclo do programa contava apenas com dados referentes à presença de computador com acesso a internet. A inclusão de novos dados no 3º ciclo do PMAQ-AB, o desenvolvimento mundial da teleconsulta médica1 e os avanços observados na regulamentação das ações de telemedicina no Brasil, impulsionada pela pandemia do SARS-CoV-2, apontam para a necessidade de atualização da realidade presente.
Este estudo teve como objetivo comparar condições de estrutura e processo de trabalho na Atenção Básica, em municípios de diferentes regiões e portes populacionais, para a implantação da teleconsulta médica.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal da estrutura das UBS e do processo de trabalho das equipes de saúde brasileiras, de acordo com a região do país e o porte populacional do município onde se encontram, visando a implantação da teleconsulta médica.
O PMAQ-AB, fonte dos dados, é a principal estratégia de avaliação da Atenção Básica no Brasil, induzindo a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade desse nível de atenção à saúde mediante repasse financeiro por desempenho. Os pesquisadores do PMAQ-AB visitam todas as UBS e equipes de Atenção Básica do país que aderiram ao programa, para verificar a presença de características apontadas como qualificadoras da Atenção Básica.12 Entre as equipes atuantes no SUS em janeiro de 2018, 70% formalizaram sua adesão ao 3º ciclo do PMAQ-AB e por ele foram avaliadas.13
Para fins do presente estudo, foi considerada ‘estrutura desejável’ para implantação da teleconsulta aquela composta pelos equipamentos necessários à realização de uma chamada de vídeo on-line;14 e como ‘estrutura mínima’, foi desconsiderada a necessidade de equipamentos periféricos, porque, embora necessários à realização de uma chamada de vídeo, são de baixo custo, adquiríveis com facilidade.
Para a análise do processo de trabalho dessas unidades, foi estabelecido que, para realizar a teleconsulta médica especializada, deve haver integração entre a Atenção Básica e a Atenção Especializada, de acordo com três requisitos mínimos: (i) a utilização da plataforma do Programa Nacional de Telessaúde (iniciativa de tele-educação e teleassistência voltada à Estratégia Saúde da Família [ESF]), dada a importância de transmitir e armazenar dados privados em plataforma segura, presumindo-se dessa forma a familiaridade da equipe com o uso da tecnologia para mediar processos clínicos; (ii) a existência de uma central de regulação de consulta especializada, para encaminhamento dos usuários aos demais pontos de atenção; e (iii) um fluxo de comunicação institucionalizado entre a equipe da Atenção Básica e a Atenção Especializada, para garantir a integração entre os níveis de atenção.
A seguir, são detalhadas as variáveis analisadas.
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Variáveis para uma estrutura mínima para implantação da teleconsulta médica:
- presença de pelo menos um computador com acesso a internet (sim; não);
- presença de internet suficiente (contínua; irregular; não funciona).
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Variáveis acrescentadas em uma estrutura desejável para implantação da teleconsulta médica:
- presença de pelo menos uma câmera web em condições de uso (sim; não);
- presença de pelo menos uma caixa de som em condições de uso (sim; não);
- presença de pelo menos um microfone em condições de uso (sim; não).
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c) Variáveis para o processo de trabalho para implantação da teleconsulta médica especializada:
- utilização do Telessaúde pelas equipes (sim; não);
- existência de uma central de regulação disponível para o encaminhamento dos usuários aos demais pontos de atenção (sim; não);
- tipos de centrais para marcação disponíveis (consulta especializada; exames; leitos; nenhuma);
- presença de fluxo de comunicação institucionalizado entre a equipe da Atenção Básica e a Atenção Especializada (sim; não).
Os dados utilizados provêm da avaliação externa do 3° Ciclo do PMAQ-AB, realizado entre 2017 e 2018.15 O perfil estrutural das UBS foi descrito a partir do Módulo I do PMAQ-AB, cujo objetivo foi avaliar as condições de infraestrutura, materiais, insumos e medicamentos disponíveis nas unidades de saúde. O perfil do processo de trabalho, por sua vez, foi descrito a partir do Módulo II, cujo objetivo foi avaliar o processo de trabalho das equipes e a organização do serviço e do cuidado aos usuários.12
As análises foram apresentadas por regiões do país e por municípios segundo seu porte populacional, ou seja: (i) municípios de pequeno porte, com menos de 25 mil habitantes; (ii) municípios de médio porte, com 25 a 100 mil habitantes; e (iii) municípios de grande porte, com mais de 100 mil habitantes. Para identificar as chances de a estrutura mínima e o processo de trabalho mínimo estarem presentes em determinada região, em municípios de portes semelhantes, foi calculada (i) a razão de chances (OR, sigla em inglês para odds ratio) de forma bivariada, comparando-se, individualmente, cada uma das regiões com a região Sul, dado esta ter apresentado os melhores resultados, tanto de estrutura quanto de processo de trabalho, e (ii) o intervalo de confiança de 95% (IC95%) para cada OR. O pacote estatístico Stata® (versão 14.3) foi utilizado para realização das análises.
O projeto do PMAQ-AB foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (CEP/FAMED/UFPel): Parecer nº 2.453.320, emitido em 27 de dezembro de 2017.
Resultados
Foram incluídos os dados das 30.346 UBS que aderiram ao 3º Ciclo do PMAQ-AB e de 38.865 equipes de Atenção Básica espalhadas pelo território nacional.
Os municípios de grande porte da região Norte tiveram menor proporção de UBS com estrutura desejável para a implantação da teleconsulta médica (1,2%); a maior proporção de USB com essa estrutura identificada observou-se em municípios de pequeno porte da região Sul (26,7%). No conjunto, os municípios de pequeno porte apresentaram maior percentual de adequação à estrutura desejável em todo o Brasil (pequeno porte, 10,7%; médio porte, 8,3%; grande porte, 7,2%) e, regionalmente, no Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A exceção coube ao Nordeste, como se pode observar na Tabela 1:
Norte - pequeno porte, 3,7%; médio porte, 2,0%; grande porte, 1,2%;
Centro-Oeste - pequeno porte, 16,4%; médio porte, 11,4%; grande porte, 6,9%;
Sudeste - pequeno porte, 9,4%; médio porte, 6,4%; grande porte, 8,3%;
Sul - pequeno porte, 26,7%; médio porte, 20,4%; grande porte, 13,1%;
Nordeste - diferentemente do espectro proporcional das demais regiões, nesta apresentaram percentual de adequação a estrutura desejável 5,8% dos municípios de pequeno porte, 7,1% dos de médio porte (estes, com maior percentual) e 4,4% dos de grande porte.
Independentemente do porte populacional, a região Sul concentrou o maior número de unidades com estrutura desejável, enquanto a região Norte apresentou o menor número dessas unidades.
A região Sul teve maior número de UBS dotadas de computador com acesso à internet suficiente e contínuo, estrutura considerada mínima para a teleconsulta, variando de 887 UBS em municípios de médio porte (78,2%) a 1.587 UBS em municípios de pequeno porte (81,6%). A região Norte teve o menor número de unidades com estrutura mínima, variando de 288 UBS em municípios de médio porte (33,2%) a 336 UBS em municípios de grande porte (45,3%). O equipamento periférico menos encontrado nas unidades de saúde foi o microfone, ausente em 1.316 UBS (67,6%) em municípios de pequeno porte da região Sul e em 809 UBS (93,3%) em municípios de médio porte da região Norte.
Em quatro regiões, as UBS de municípios de pequeno porte apresentaram maiores percentuais de estrutura mínima, cabendo a exceção ao Norte (Tabela 1):
Nordeste - pequeno porte, 48,6%; médio porte, 43,3%; grande porte, 48,0%;
Centro-Oeste - pequeno porte, 73,9%; médio porte, 63,8%; grande porte, 52,3%;
Sudeste - pequeno porte, 76,3%; médio porte, 66,3%; grande porte, 65,4%;
Sul - pequeno porte, 81,3%; médio porte, 78,2%; grande porte, 78,4%;
No Norte, apresentaram maiores percentuais de estrutura mínima para implantação da teleconsulta 45,3% das UBS dos municípios de grande porte, seguidas de 42,3% das UBS dos municípios de pequeno porte e 33,2% das UBS dos municípios de médio porte.
Região | Porte populacional | Computador com acesso à interneta | Internet contínua | Câmerab | Caixa de somb | Microfoneb | UBSc com estrutura desejável | UBSc com estrutura mínima | |||||||
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n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | ||
Norte | Grande (n=741) | 479 | 64,6 | 337 | 45,5 | 114 | 15,4 | 195 | 26,3 | 51 | 6,9 | 9 | 1,2 | 336 | 45,3 |
Médio (n=867) | 397 | 45,8 | 295 | 34,0 | 82 | 9,5 | 166 | 19,1 | 58 | 6,7 | 17 | 2,0 | 288 | 33,2 | |
Pequeno (n=776) | 435 | 56,1 | 334 | 43 | 143 | 18,4 | 263 | 33,9 | 77 | 9,9 | 29 | 3,7 | 328 | 42,3 | |
Nordeste | Grande (n=2.244) | 1.275 | 56,8 | 1.113 | 49,6 | 404 | 18,0 | 577 | 25,7 | 211 | 9,4 | 99 | 4,4 | 1.076 | 48,0 |
Médio (n=4.786) | 2.285 | 47,7 | 2.238 | 46,8 | 1.030 | 21,5 | 1.706 | 35,6 | 652 | 13,6 | 339 | 7,1 | 2.072 | 43,3 | |
Pequeno (n=5.566) | 3.006 | 54,0 | 2.938 | 52,8 | 1.274 | 22,9 | 2.039 | 36,6 | 737 | 13,2 | 323 | 5,8 | 2.707 | 48,6 | |
Centro-Oeste | Grande (n=568) | 410 | 72,2 | 297 | 52,3 | 80 | 14,1 | 175 | 30,8 | 62 | 10,9 | 39 | 6,9 | 297 | 52,3 |
Médio (n=625) | 527 | 84,3 | 402 | 64,3 | 174 | 27,8 | 345 | 55,2 | 107 | 17,1 | 71 | 11,4 | 399 | 63,8 | |
Pequeno (n=1.037) | 938 | 90,5 | 772 | 74,4 | 342 | 33,0 | 682 | 65,8 | 244 | 23,5 | 170 | 16,4 | 766 | 73,9 | |
Sudeste | Grande (n=3.267) | 2.493 | 76,3 | 2.164 | 66,2 | 716 | 21,9 | 1.288 | 39,4 | 495 | 15,2 | 272 | 8,3 | 2.135 | 65,4 |
Médio (n=2.433) | 1.932 | 79,4 | 1.621 | 66,6 | 448 | 18,4 | 998 | 41,0 | 249 | 10,2 | 155 | 6,4 | 1.612 | 66,3 | |
Pequeno (n=3.095) | 2.614 | 84,5 | 2.380 | 76,9 | 775 | 25,0 | 1.791 | 57,9 | 448 | 14,5 | 290 | 9,4 | 2.360 | 76,3 | |
Sul | Grande (n=1.261) | 1.162 | 92,1 | 989 | 78,4 | 425 | 33,7 | 669 | 53,1 | 243 | 19,3 | 165 | 13,1 | 988 | 78,4 |
Médio (n=1.134) | 1.040 | 91,7 | 887 | 78,2 | 466 | 41,1 | 776 | 68,4 | 305 | 26,9 | 231 | 20,4 | 887 | 78,2 | |
Pequeno (n=1.946) | 1.782 | 91,6 | 1.587 | 81,6 | 958 | 49,2 | 1.527 | 78,5 | 630 | 32,4 | 519 | 26,7 | 1.582 | 81,3 | |
Brasil | Grande (n=8.081) | 5.819 | 72,0 | 4.900 | 60,6 | 1.739 | 21,5 | 2.904 | 35,9 | 1.062 | 13,1 | 584 | 7,2 | 4.832 | 59,8 |
Médio (n=9.845) | 6.181 | 62,8 | 5.443 | 55,3 | 2.200 | 22,3 | 3.991 | 40,5 | 1.371 | 13,9 | 813 | 8,3 | 5.258 | 53,4 | |
Pequeno (n=12.420) | 8.775 | 70,7 | 8.011 | 64,5 | 3.492 | 28,1 | 6.302 | 50,7 | 2.136 | 17,2 | 1.331 | 10,7 | 7.743 | 62,3 |
Notas: a) Possui pelo menos um; b) Possui pelo menos um em condições de uso; c) UBS: unidade básica de saúde.
Entre 18,9% das equipes da Atenção Básica em municípios de pequeno porte e 27,5% dessas equipes em municípios de grande porte de todo Brasil, apresentaram processo de trabalho mínimo para a implantação da teleconsulta especializada, variando regionalmente: de 10,7% nos municípios de pequeno porte da região Norte a 39,5% nos municípios de grande porte da região Sul (Tabela 2). Os municípios de pequeno porte de todas as regiões, à exceção do Centro-Oeste, apresentaram os menores percentuais de equipes com processo de trabalho mínimo:
Norte - pequeno porte, 10,7%; médio porte, 13,5%; grande porte, 12,9%;
Nordeste - pequeno porte, 19,7%; médio porte, 28,3%; grande porte, 22,1%;
Sudeste - pequeno porte, 18,1%; médio porte, 23,6%; grande porte, 30,6%;
Sul - pequeno porte, 22,2%; médio porte, 34,9%; grande porte, 39,5%;
Centro-Oeste - 17,5% das equipes em municípios de pequeno porte, frente a 27,5% das equipes dos municípios de médio porte e 16,6% das equipes dos municípios de grande porte - estes últimos, com os menores percentuais de equipes que apresentaram processo de trabalho mínimo para implantação da teleconsulta na região.
Em todo o Brasil, 56,5% das equipes em municípios de pequeno porte, 53,8% das equipes em municípios de médio porte e 48,1% das equipes em municípios de grande porte utilizavam o Telessaúde. Na região Sul, 70,9% das equipes dos municípios de grande porte, e na região Norte, 27,3% das equipes de municípios de grande porte utilizavam-se desse serviço. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o uso do Telessaúde foi maior nas equipes dos municípios médios e pequenos, conforme apresenta a Tabela 2.
Região | Porte populacional | Utiliza o Telessaúde | Central de regulação de consulta especializada | Fluxo de comunicação institucionalizado (da Atenção Básica à Especializada) | Equipes com processo de trabalho mínimo | ||||
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n | % | n | % | n | % | n | % | ||
Norte | Grande (n=1.141) | 312 | 27,3 | 1.024 | 89,7 | 362 | 31,7 | 147 | 12,9 |
Médio (n=1.094) | 445 | 40,7 | 977 | 89,3 | 318 | 29,1 | 148 | 13,5 | |
Pequeno (n=964) | 411 | 42,6 | 757 | 78,5 | 221 | 22,9 | 103 | 10,7 | |
Nordeste | Grande (n=3.629) | 1.555 | 42,8 | 3.055 | 84,2 | 1.298 | 35,8 | 801 | 22,1 |
Médio (n=5.075) | 2.847 | 56,1 | 4.765 | 93,9 | 2.222 | 43,8 | 1.437 | 28,3 | |
Pequeno (n=5.785) | 3.092 | 53,4 | 4.941 | 85,4 | 2.003 | 34,6 | 1.139 | 19,7 | |
Centro-Oeste | Grande (n=920) | 358 | 38,9 | 865 | 94,0 | 295 | 32,1 | 153 | 16,6 |
Médio (n=672) | 422 | 62,8 | 585 | 87,1 | 258 | 38,4 | 186 | 27,7 | |
Pequeno (n=1.077) | 660 | 61,3 | 867 | 80,5 | 289 | 26,8 | 188 | 17,5 | |
Sudeste | Grande (n=6.761) | 3.277 | 48,5 | 6.116 | 90,5 | 3.592 | 53,1 | 2.072 | 30,6 |
Médio (n=2.738) | 1.232 | 45,0 | 2.578 | 94,2 | 1.234 | 45,1 | 645 | 23,6 | |
Pequeno (n=3.355) | 2.002 | 59,7 | 2.940 | 87,6 | 1.051 | 31,3 | 607 | 18,1 | |
Sul | Grande (n=2.130) | 1.510 | 70,9 | 1.970 | 92,5 | 1.024 | 48,1 | 842 | 39,5 |
Médio (n=1.294) | 855 | 66,1 | 1.235 | 95,4 | 601 | 46,4 | 452 | 34,9 | |
Pequeno (n=2.230) | 1.412 | 63,3 | 2.060 | 92,4 | 715 | 32,1 | 494 | 22,2 | |
Brasil | Grande (n=14.581) | 7.012 | 48,1 | 13.030 | 89,4 | 6.571 | 45,1 | 4.015 | 27,5 |
Médio (n=10.873) | 5.849 | 53,8 | 10.229 | 94,1 | 4.678 | 43,0 | 2.895 | 26,6 | |
Pequeno (n=13.411) | 7.577 | 56,5 | 11.565 | 86,2 | 4.279 | 31,9 | 2.531 | 18,9 |
Para o conjunto do país, de 86,2% das equipes de saúde em municípios de pequeno porte a 94,1% dessas equipes em municípios de médio porte contavam com uma central de regulação de consulta especializada para o encaminhamento de usuários aos demais pontos de atenção. Entre regiões, essa proporção variou de 78,5%, em municípios de pequeno porte da região Norte, a 95,4% em municípios de médio porte da região Sul (Tabela 2).
No Brasil, de 31,9% das equipes de Atenção Básica em municípios de pequeno porte a 45,1% dessas equipes em municípios de grande porte tinham um fluxo de comunicação institucionalizado com a Atenção Especializada, sendo que as regiões Sudeste e Sul apresentaram maiores percentuais nos três portes populacionais. Os municípios de pequeno porte tiveram os menores percentuais de equipes com esse fluxo de comunicação institucionalizado, independentemente da região (Tabela 2).
Os municípios de grande porte das regiões Norte (OR=0,23 - IC95% 0,19;0,28), Nordeste (OR=0,25 - IC95% 0,22;0,30) e Centro-Oeste (OR=0,30 - IC95% 0,24;0,37) apresentaram menores chances de contar com a estrutura mínima necessária à implantação da teleconsulta, comparados com os municípios da região Sul, conforme se pode observar na Tabela 3. A região Sudeste (grande porte [OR=0,52 - IC95% 0,44;0,61]; médio porte [OR=0,55 - IC95% 0,46;0,64]; pequeno porte [OR=0,74 - IC95% 0,64;0,85]) também apresentou menores chances de ter essa estrutura mínima necessária, comparada à região Sul, embora suas chances fossem superiores às das demais regiões, nos três portes populacionais.
Porte populacional | Região | Estrutura mínima | p-valorc | Processo de trabalho mínimo | p-valorc | ||
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ORa | IC95%b | ORa | IC95%b | ||||
Grande | Norte | 0,23 | 0,19;0,28 | <0,001 | 0,23 | 0,19;0,27 | <0,001 |
Nordeste | 0,25 | 0,22;0,30 | <0,001 | 0,43 | 0,38;0,49 | <0,001 | |
Centro-Oeste | 0,30 | 0,24;0,37 | <0,001 | 0,30 | 0,25;0,37 | <0,001 | |
Sudeste | 0,52 | 0,44;0,61 | <0,001 | 0,68 | 0,61;0,75 | <0,001 | |
Sul | 1,00 | - | 1,00 | - | |||
Médio | Norte | 0,14 | 0,11;0,17 | <0,001 | 0,29 | 0,24;0,36 | <0,001 |
Nordeste | 0,21 | 0,18;0,25 | <0,001 | 0,74 | 0,65;0,84 | <0,001 | |
Centro-Oeste | 0,49 | 0,40;0,61 | <0,001 | 0,71 | 0,58;0,87 | 0,001 | |
Sudeste | 0,55 | 0,46;0,64 | <0,001 | 0,57 | 0,50;0,66 | <0,001 | |
Sul | 1,00 | - | 1,00 | - | |||
Pequeno | Norte | 0,17 | 0,14;0,20 | <0,001 | 0,42 | 0,33;0,53 | <0,001 |
Nordeste | 0,22 | 0,19;0,25 | <0,001 | 0,86 | 0,76;0,97 | <0,001 | |
Centro-Oeste | 0,65 | 0,54;0,78 | <0,001 | 0,74 | 0,62;0,89 | 0,004 | |
Sudeste | 0,74 | 0,64;0,85 | <0,001 | 0,78 | 0,68;0,89 | 0,001 | |
Sul | 1,00 | - | 1,00 | - |
Notas: a) OR: razão de chances (OR, sigla em inglês para odds ratio); b) IC95%: intervalo de confiança de 95%; c) Teste do qui-quadrado de Pearson.
Os municípios da região Norte apresentaram menores chances de estarem adequados, no que concerne ao ‘processo de trabalho’ de acordo com os critérios adotados nesse estudo, para implantação da teleconsulta especializada, em todos os portes populacionais (grande porte [OR=0,23 - IC95% 0,19;0,27]; médio porte [OR=0,29 - IC95% 0,24;0,36]; pequeno porte [OR=0,42 - IC95% 0,33;0,53]), com diferença estatística observada.
Discussão
A maioria das UBS não apresentou estrutura mínima para a teleconsulta, com desigualdades regionais e de porte populacional evidentes: menores percentuais para todos os portes populacionais nas regiões Norte e Nordeste; e maiores percentuais nos municípios de pequeno porte de todas as regiões, à exceção da região Norte. Aproximadamente um quarto das equipes apresentou processo de trabalho mínimo para implantação da teleconsulta. Os menores percentuais para essa variável foram apresentados pelos municípios de pequeno porte de quatro regiões, cabendo a exceção ao Centro-Oeste. Os municípios de pequeno porte de todas as regiões apresentaram maiores chances de terem processo de trabalho mínimo. O Norte e o Nordeste foram as duas regiões cujos municípios, independentemente do porte populacional, apresentaram menores chances de contar com uma estrutura mínima para a teleconsulta médica.
Os dados utilizados nessa análise são dinâmicos. A permanência de equipamentos apropriados nas unidades e o funcionamento da internet de maneira contínua podem ter variado desde o período de coleta dos dados. Sabe-se que a disponibilidade de computadores nas UBS variou de 88%, em 2017, para 90% em 2018, e a proporção de UBS com acesso à internet cresceu 7 pontos percentuais, no mesmo período,16 indicando que as alterações de estrutura não foram expressivas.
O crescimento no acesso à internet pode estar associado aos incentivos estruturais do governo federal, principalmente em determinadas regiões e estabelecimentos públicos de saúde mais carentes de tecnologias, a exemplo do Programa Nacional de Banda Larga (Decreto nº 7.175, de 12 de maio de 2010), da Estratégia de Informatização da Atenção Básica (Portaria do Ministério da Saúde GM/MS nº 1.412, de 10 de julho de 2013) e do Programa de Informatização das Unidades Básicas de Saúde (Portaria GM/MS nº 2.920, de 31 de outubro de 2017). Entretanto, persistem as desigualdades regionais e a falta de uma política de Estado para a Saúde Digital. Programas desse tipo costumam ter seu caminho de evolução interrompido pelas mudanças de governo e redefinição de políticas, gerando fragmentação, redução de investimentos e/ou interrupção nos serviços ofertados. Em 2018, somente 13% dos gestores dos estabelecimentos públicos de saúde concordaram que os recursos financeiros eram suficientes para as necessidades de investimento em tecnologia da informação.16
Cenário semelhante de desigualdade entre as regiões brasileiras já foi documentado em outros trabalhos que avaliaram as diferenças regionais em saúde.17,18 As desigualdades no acesso às tecnologias de informação e comunicação no Brasil são significativas: no final de 2018, a região Norte possuía apenas 3,7% do total nacional de acesso a banda larga fixa.19 Resolver essa questão ultrapassa os limites da Saúde, requer investimentos e ações conjuntas de múltiplos setores, públicos e privados.
Os municípios de pequeno porte apresentaram estrutura e processo de trabalho melhores. Desde 2006, quando a gestão plena do sistema local de saúde ficou a cargo dos municípios, é possível observar como diferenças na qualidade da gestão proporcionam diferentes estruturas. Pode-se dizer que municípios pequenos apresentam algumas facilidades em relação aos maiores: são menos heterogêneos e têm menos serviços a gerenciar, possibilitando dedicar-se mais à Atenção Básica.20
Nesta análise, os municípios de pequeno e médio porte das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste declararam maiores percentuais de utilização do Telessaúde, o que indica a possibilidade de implantação de teleconsultas em locais com menor número de profissionais especialistas, superando a barreira da distribuição geográfica desigual de médicos no Brasil.8
A necessidade de continuidade de investimentos em telessaúde, recurso utilizado por aproximadamente metade das equipes de saúde brasileiras, é evidente para manutenção e ampliação de sua carteira de serviços, incluindo a teleconsulta médica, não prevista inicialmente, dadas as restrições normativas. A população já utiliza diversos serviços de telemedicina e telessaúde, oferecidos pelos núcleos regionais, em ambiente seguro, sendo necessários tão somente ajustes a essas plataformas para a realização da teleconsulta. Em 2018, 36% das UBS utilizaram teleconsultoria, e 27%, serviços de telediagnóstico.16
Para a implantação de teleconsulta, a adaptação de plataforma existente e familiar, como é o caso do portal do Telessaúde, pode contribuir para a diminuição de algumas limitações, já descritas na literatura, como dificuldade de utilização, preocupação com segurança dos dados, mudanças estruturais, dificuldades para estabelecer novas rotinas e resistência dos profissionais de saúde e pacientes.1 Além disso, a integração da teleconsulta médica a um conjunto de serviços já existentes pode fortalecer as evidências favoráveis ao autocuidado supervisionado para doentes crônicos,2 em concordância com os modelos expostos neste estudo.
A presença de uma central de regulação em grande parte dos municípios brasileiros, variável entre 78,5% nos municípios de pequeno porte da região Norte a 95,4% nos municípios de médio porte da região Sul, pode facilitar o direcionamento dos pacientes para a consulta presencial ou para a teleconsulta, de acordo com protocolos preestabelecidos, todavia inexistentes no Brasil. Em algumas regiões da Austrália, por exemplo, para as especialidades nas quais a teleconsulta está disponível, sua escolha fica a critério do paciente, mas conta com avaliação da equipe de saúde quanto à capacidade e literacia digital, qualidade da conexão de internet e funcionalidades do dispositivo utilizado pelo paciente.21
No desenvolvimento desses protocolos de teleconsulta, deve constar a documentação da escolha por essa modalidade de atendimento, em consonância com a Lei Geral de Proteção de Dados, que dispõe sobre o manejo de dados pessoais, inclusive em meios digitais, e está prevista para entrar em vigor em maio de 2021.22 A necessidade de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelo paciente para a realização da teleconsulta médica foi expressa na resolução revogada do CFM nº 2.227, de 13 de dezembro de 2018,4 embora não tenha sido citada na nova portaria do Ministério da Saúde.5
Discussões e ajustes sobre o tema estão por vir e será necessário adequar-se às diferentes realidades. Nesse sentido, uma proposta única de teleconsulta, tanto para a Atenção Básica quanto para a Atenção Especializada, extensiva a todo o território nacional, tende a ser excludente, uma vez que favorecerá municípios com maior estrutura tecnológica - os de pequeno porte e da região Sul -, acirrando as desigualdades regionais.
O próximo passo seria a incorporação da teleconsulta aos modelos de atenção, permitindo rearranjos e melhorias significativas no cuidado e acesso à saúde e, consequentemente, nos resultados clínicos. O reconhecido Modelo de Atenção às Condições Crônicas (CCM, sigla em inglês para Chronic Care Model),23 em uma versão atualizada,24 incluiu elementos da saúde digital para melhora de resultados clínicos, frisando a importância da comunicação efetiva utilizando recursos tecnológicos, educação digital para o autocuidado e comunidades virtuais de apoio ao paciente.24
Em um cenário ideal, a implementação da teleconsulta no Brasil deveria passar por uma transição lenta e gradativa, com a incorporação dessa nova forma de prover cuidado em caráter aditivo ou parcialmente substitutivo, não apenas alternativo.1 Assim, permaneceria o potencial de fortalecimento das redes de atenção, mantendo a Atenção Primária em Saúde como coordenadora do cuidado e responsável pela saúde em seu território, de forma a não fragilizar a atenção integral ao paciente e os princípios básicos de um modelo de cuidado já estabelecido.
No cenário atual da pandemia do SARS-CoV-2, em alguns países, a exemplo da Itália, a falta de integração da telemedicina aos serviços de saúde limitou sua capacidade de contribuição na luta contra a COVID-19, com consequências imensuráveis.25 As experiências de teleconsulta durante a pandemia no Brasil, tanto para casos suspeitos dessa doença como para acompanhamento de pacientes crônicos, demonstram as possibilidades desse modelo, embora não avaliadas até o momento desta publicação.
Este estudo aponta que, de modo geral, a estrutura desejável, composta por todos os equipamentos e conexão necessários à realização de uma teleconsulta, seja ela para Atenção Básica, seja para a Especializada, foi baixíssima nas unidades de saúde de todos os municípios e portes populacionais pesquisados. Notoriamente, deve-se priorizar investimento nas regiões Norte e Nordeste, assim como nos municípios de médio e grande porte das demais regiões onde se mostram condições estruturais insuficientes para a implantação da teleconsulta médica. Municípios de pequeno porte devem dedicar-se à organização dos processos de trabalho. Além da necessidade de investimentos na pesquisa e desenvolvimento da teleconsulta médica, na avaliação da pertinência e dos desafios para sua implementação em larga escala, considerando-se as particularidades regionais, resta o aprimoramento e encaminhamento de sua regulamentação, para sua incorporação aos modelos de cuidado.