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Revista Paraense de Medicina
versión impresa ISSN 0101-5907
Rev. Para. Med. v.20 n.2 Belém jun. 2006
Brasileiros pioneiros na história da microbiologia médica 2. Gaspar Vianna (1885-1914)
Italo Suassuna(*)
Mal iniciado o século XX, um jovem paraense chegava ao Rio de Janeiro. Em 1903, a cidade era palco de verdadeiras revoluções de ordem urbanística e sanitária, sob o comando respectivo do prefeito Pereira Passos e de Oswaldo Cruz, ambos nomeados pelo presidente Rodrigues Alves. O médico O. Cruz fora antes o diretor de um Instituto Soroterápico Municipal, posteriormente chamado o Instituto de Manguinhos, e criado para combater a peste bubônica. Neste ano, O. Cruz foi designado Diretor Geral de Saúde Pública, e deflagra campanhas contra a febre amarela e a varíola, alem da peste. Foi a época romanceada sob o nome de “Sonhos Tropicais” pelo médico e escritor Moacyr Scliar.
O jovem recém-chegado de Belém do Pará chamava-se Gaspar de Oliveira Vianna, e o seu sonho era mais modesto e urgente: estudar medicina. Em sua bagagem trazia tenacidade e um bom preparo. Em seqüência já havia completado, aos quinze anos, os cursos primário e secundário no Colégio São José e no Lyceu Paraense. Considerado, então, ainda tenro para viver longe da família, aplacou sua inquietação com estudos práticos sobre agronomia e esperou, ata à beira dos dezoito anos, para chegar ao Rio de Janeiro. Era órfão de pai e contava com o apoio da família, a mãe, um irmão mais velho e duas irmãs. O seu pai, português, chamava-se Manoel Gomes Vianna. Quanto à genitora deparamos um desencontro de informações. Consta na literatura ter-se chamado Leonor Jesus de Oliveira, mas em publicação da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará [Pará-Médico, 8 (1),2001] consta seu nome como Rita Nobre Vianna [conflito a dirimir-se por consulta a documentos originais sobre seu nascimento].
Logo ao chegar, G. Vianna matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e, no primeiro ano, associou-se ao professor de histologia, Eduardo Chapot Prévost. Este, cirurgião que veio a se notabilizar pelas intervenções praticadas em xifópagos, inovava, então, por exigir como prática de ensino, o adestramento nas técnicas histológicas. E o jovem estudante tornou-se exímio preparador; a ponto de o mestre haver solicitado sua coleção de lâminas para o ensino da matéria, tendo-o aprovado com a nota máxima.
Durante o segundo ano médico, o Rio já proclamava o êxito do combate à peste. No quarto ano veio o restante da família juntar-se a G. Vianna, o qual, com a colaboração de seu irmão mais velho, Arthur, abriu um laboratório de análises no centro do Rio, Largo da Carioca, de onde podia alcançar, a pé, o hospital da Santa Casa de Misericórdia. Aí freqüentava enfermarias, realizava necropsias e completava o estudo de alguns espécimes em seu próprio laboratório. Pelo conceito granjeado entre colegas estudantes, começou a lhes dar aulas, a fim de os ajudar a passar pelo exigente Prof. Chapot Prévost. Nomes tão brilhantes como Magarino Torres, estudioso da doença de Chagas, e Lauro Travassos, pináculo da helmintologia e entomologia no Brasil, confessaram ter sido seus alunos nessa circunstância.
Em 1907 foi declarada extinta a febre amarela no Rio de Janeiro, e os brasileiros de Manguinhos foram os vencedores do 1o prêmio da Exposição Internacional de Berlim, com destaque maior para a magnífica descoberta da doença de Chagas. Neste ano, Gaspar Vianna, como primeiro colocado, ainda estudante, ingressa por concurso no Hospital Nacional de Alienados, dirigido por Juliano Moreira. Ali, destinado ao Gabinete Anatomo-patológico, pôde beber da experiência do seu conterrâneo, Bruno Álvares da Silva Lobo, conhecido simplesmente como Bruno Lobo. O preciosismo técnico e a aplicação logo destacaram o recém-chegado, fazendo-o figurar, como co-autor do livro “Estrutura da célula nervosa”, junto a Bruno Lobo, o que correspondeu a seu aparecimento autoral na ciência. Neste ano (1908) o Instituto de Manguinhos passou a denominar-se Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e, Rocha Lima, chefe de serviço dedicado à histopatologia, deixou a instituição pela Alemanha. G. Vianna foi então convidado ao IOC para remediar essa ausência, apesar de só vir a completar o curso médico no ano seguinte. Apresentou como tese de formatura o trabalho “Estrutura da célula de Schwann nos vertebrados”. Discorrendo sobre “A biologia no Brasil” Thales Martins considera ter sido esta a pioneira na publicação de pesquisas histológicas sobre neurofibrilas.
A primeira incumbência no IOC foi esclarecer a patologia da doença de Chagas no homem e animais (gato, cobaio). Numa apreciação estritamente cientifica, talvez tenha alcançado aí, o seu maior feito científico, cuja rememoração é, contudo, empalidecida pelo ponderoso acontecimento que foi a própria descoberta de Carlos Chagas. Coube a G. Vianna caracterizar formas de leishmânias, em divisões binárias sucessivas, nos mais variados tecidos (muscular, cardíaco, nervoso, etc), e sua transformação nos tripanosomas egressos do interior das células parasitadas. Dessa maneira, de forma definitiva, corrigiu a interpretação equivocada do próprio Chagas que, a início, no ciclo vital do tripanosoma, apontava formas de divisão múltipla, de esquizogonia regular “constituídas de oito unidades” . Tais formas foram posteriormente estudadas e identificadas por outros autores como o Pneumocystis carinii, que contaminava cobaios, e mesmo o homem. O esmero de um pesquisador comprova-se quando G. Vianna descreve seus achados no músculo cardíaco: “os fenômenos inflamatórios são muitas vezes localizados ao redor das fibras parasitadas, mas, não só há zonas infiltradas sem haver parasitos, como há muitas células parasitadas sem ação peri-celular”, observação depois confirmada, inclusive por Rocha Lima, e apontada por Magarino Torres como abrindo caminho para a suspeita e a investigação de fenômenos de hipersensibilidade responsáveis por lesões chagásicas.
É possível que as formas de leishmânias descritas para o Tripanosoma cruzi tenham levado G. Vianna a interessar-se pelas formas similares (amastigota) no próprio gênero Leishmania. Nas lesões cutâneas do “botão do Oriente” fora descrita a Leishmania tropica (1903) como agente causal. No Brasil já houvera a sugestão da proximidade daquele quadro com o que Juliano Moreira chamou “botão da Bahia”. Os trabalhos de abertura da ferrovia , a partir de Bauru, em direção aos sertões de Mato Grosso, revelaram situações epidêmicas de aparecimento do que se chamou “ulcera brava” ou “ulcera de Bauru”. As úlceras foram estudadas em São Paulo por Adolpho Lindenberg e, de modo independente, por Antonio Carini & Ulysses Paranhos, que apontaram a L. tropica como seu agente.
Fundando-se em observações próprias G. Vianna concluiu pela participação de nova espécie, a qual chamou Leishmania brasiliensis. Sobre essa proposta vale referir um comentário de Leônidas Deane: “Ele assim o fez baseado em características morfológicas que erroneamente, ele julgou peculiar à nossa leishmaniose tegumentar (...) Contudo a espécie criada por Vianna é aceita até hoje, talvez pela maior parte dos parasitologistas , mas por outras razões”. Em realidade a classificação de leishmânias oferece dificuldades até o presente. São separadas em “complexos”, um dos quais conserva a designação L. brasiliensis, relacionado clinicamente às formas cutâneo-mucosas da doença, ou espúndia, na América do Sul. Tais complexos, morfologicamente indistinguíveis, separam-se apenas por diferenças imunológicas discretas, que deixam a desejar, ou por zimogramas e análises moleculares.
Mas G. Vianna não se limitou à proposição da espécie. Quis domar a “úlcera brava”. Remontava a Paracelso o uso de sais de antimônio em medicina, e já havia notícia do ensaio do tártaro emético (tartarato duplo de antimônio e potássio), contra os tripanosomas, sem maior êxito. A intensa irritação gástrica provocada pela substância impedia seu uso por via oral. G. Vianna recorreu à via endovenosa. A começar de soluções milesimais, em ensaios cautelosos chegou à solução centesimal para o uso. Os resultados altamente favoráveis foram divulgados em 1912, apenas dois anos decorridos da introdução dos arsenicais (“606” e “914”) por Paul Ehrlich, considerado o marco inicial da quimioterapia anti-infecciosa. Posteriormente publicado em alemão o trabalho teve repercussão mundial, com eficácia extraordinária comprovada no tratamento, não só do botão do Oriente, como dos casos mais graves de leishmaniose visceral, ou calazar. Mostrou-se ativo também para a esquistosomose e a bancroftose, embora progressivamente subsituido por outros antimonais orgânicos e tido, até época recente, como droga de segunda opção na esquistosomose japônica.
Depois de Ehrlich, o uso do tártaro emético foi, historicamente, a segunda grande conquista da quimioterapia, décadas antes das sulfas, e marcou um capítulo da história da medicina, como afirmou Samuel Pessoa.
Associado a Henrique de Beaurepaire Aragão, G. Vianna considerou então outras doenças ulcerosas crônicas , refratárias ao tratamento, como a ozena e o granuloma inguinal. Resultados favoráveis foram observados, sobretudo quanto ao último. Como do seu feitio, G. Vianna preliminarmente estudou o agente, até então não cultivado, confirmando microscopicamente a presença dos corpúsculos encapsulados (“organisms”, “bodies”) descritos por Charles Donovan, que não lhes deu nome. Aragão e Vianna estabeleceram então o gênero Kalymmabacterium , (de kalymma, manto), pois suas cápsulas diferiam das correspondentes ao gênero Klebsiella, embora suas tentativas de cultivo não se confirmassem. A mais autorizada fonte internacional de taxonomia bacteriana, cognominado o “Bergey’s Manual”, em suas primeiras edições classificou o germe no gênero Klebsiella e, em seguida como Donovania. Otto Bier (1953) em obediência ás regras de prioridade na nomenclatura microbiológica, advogou em defesa dos autores brasileiros. A partir da 7a edição daquele manual (1957), num capítulo redigido pelo próprio Bier veio a prevalecer o nome Calymmatobacterium granulomatis para a espécie. Infelizmente, no Brasil, é comum infectologistas e dermatologistas persistirem no emprego da designação taxonomicamente incorreta de Donovania, em relação aos corpúsculos de Donovan.
Durante as tardes, no IOC, G. Vianna dedicava-se ao estudo de outros tripanosomas e ensinava. Nas manhãs atendia atividades clínicas e freqüentava a Santa Casa, onde realizava necropsias. Muitos desses casos foram fonte de suas publicações. Nesse contexto, após publicar juntamente com Miguel Pereira “A propósito de um caso de blastomicose”, prosseguiu e elaborou a tese “Moléstia de Posadas-Wernicke. Lesões apendiculares”, para habilitar-se à docência livre de anatomia patológica da Faculdade de Medicina. Olympio da Fonseca, que foi seu aluno exatamente em um curso sobre blastomicose, nos alerta que, em realidade, a tese descreveu a blastomicose brasileira, ou paracoccidioidomicose (doença de Lutz, Splendore & Almeida) e não a coccidioidomicose (doença de Posadas & Wernicke), numa época em que o próprio Adolfo Lutz (1908), incorrera neste engano, ao descrever a doença. Ainda, segundo Fonseca, G. Vianna, pela primeira vez, traçou em linhas gerais todo o quadro clínico e anatomopatológico da doença de Lutz: mostrou a propagação linfática após a localização cutânea, antes da fase hematogênica final, dando, por isso, suporte às observações clínicas de Alfonso Splendore (1912). Suas observações sobre o parasito nos tecidos, sua evolução e disseminação, foi algo que, no dizer de Fonseca “praticamente a elas quase nada hoje se podendo acrescentar de novo”.
Colaborando com Arthur Moses, G. Vianna descreveu uma nova espécie de fungo: Proteomyces infestans. O mesmo Fonseca, anos depois propôs a reclassificação da estirpe como Trichosporon infestans, mas a amostra foi, posteriormente, perdida e não é relacionada atualmente neste gênero.
Edgar de Cerqueira Falcão, organizador da publicação “Opera Omnia” de Gaspar Vianna, relata o depoimento de uma irmã, Lucila, sobre o que veio a acontecer enquanto o mesmo realizava mais uma necropsia em algum dia de abril do ano de l914: “Depois de abrir a caixa torácica dum cadáver tuberculoso, ao incisar a pleura jorrou-lhe inopinada e violentamente no rosto grande quantidade de líquido existente sob pressão dentro daquela cavidade, penetrando-lhe pelo nariz e pela boca, e obrigando-o a degluti-lo em parte. Poucos dias em seguida surgiram os primeiros sintomas de infecção tuberculosa aguda (granulia) que o prostrou em menos de dois meses, terminando pelo acometimento às meninges”.
No breve espaço de tempo entre sua primeira publicação com Bruno Lobo (1908) até a sua morte em 14 de junho de 1914, em apenas seis anos portanto, G. Vianna foi autor de 23 comunicações científicas que o preservarão para sempre do olvido. No Estado do Pará foi eleito o “Paraense do Século” e um decreto estadual celebrou o seu nascimento, a 5 de maio, como o “Dia de Gaspar Vianna”. Nacionalmente, a Revista do Hospital das Clínicas de São Paulo inscreve-o em uma lista dos dez maiores nomes da medicina brasileira no século XX, após enquete entre entidades médicas, científicas e educacionais.
Mártir foi, e adicto da ciência da qual, pode ser dito, veio a morrer de “overdose”. Para tudo o que fez, tendo em conta a vida curta que viveu, precocidade e pressa foram palavras definitivas que selaram seu destino. Precocidade, em função do gênio de investigador, cedo provado, e pressa, como na adivinhação do tempo reduzido de que disporia para sua realização científica, afortunada em sua essência, mas, alguma vez, incompleta em seu remate. Nos fastos da ciência médica, ele não morreu.
(*) Professor de Microbiologia e Imunologia, Emérito da Faculdade de Ciências Médicas, UERJ Docente Livre, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro