Introdução
A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é um relevante fator associado às morbidades cardiovasculares, acarretando a diminuição da qualidade e expectativa de vida e o aumento dos custos socioeconômicos. O número de inquéritos para estimar a prevalência da HAS tem aumentado. Este aumento se deve à importância das informações de frequência e complicações nas diversas populações, e à necessidade de avaliar e monitorar ações de prevenção e controle da doença, além de subsidiar a elaboração de propostas de intervenções. A prevalência de HAS pode ser estimada pela mensuração da pressão arterial ou pelo autorrelato.1
A identificação da HAS pela mensuração é mais acurada, porém onera a pesquisa, ao envolver profissionais, uso de equipamentos, preparo do paciente e técnica padronizada para aferição.2,3 Os custos para o sistema público de saúde são menores quando a HAS é autorreferida por meio de entrevistas ou aplicação de questionários, método mais acessível e rápido para sua estimação em estudos epidemiológicos. Esse método, entretanto, está mais sujeito a erros: a informação depende do conhecimento do diagnóstico prévio pelo participante, assim como das características do instrumento de coleta de dados e de como ele é entendido pela população à qual é aplicado.4,5 Neste contexto, torna-se necessário o estudo da validade da HAS autorreferida,3 viabilizando seu emprego em estudos e na vigilância dessa doença na população.
Estudos mostram divergência sobre a validade do autorrelato de HAS, cuja prevalência pode ser subestimada ou superestimada.6,7 Uma revisão sistemática sobre acurácia do autorrelato de HAS elegeu cinco estudos realizados no Brasil, país com maior número de artigos selecionados para compor a revisão. Dos estudos brasileiros, em dois observou-se superestimação por autorrelato, enquanto outros dois subestimaram a prevalência de HAS. Vale ressaltar que, entre os estudos brasileiros elencados nessa revisão sistemática, nenhum foi realizado na região Norte do país.8
Dada a importância do conhecimento da prevalência de HAS a partir de estudos epidemiológicos, é oportuna a verificação da validade, mediante indicadores de acurácia do autorrelato da população que se pretende avaliar. Dadas as diferenças regionais e metodológicas entre os estudos existentes,8 torna-se imperiosa a realização de investigações dessa natureza, posto que o Brasil é um país de proporções continentais e a validade do autorrelato da HAS em determinados locais não garante a necessária segurança para uso dessas validações em todo o país, especialmente na região da Amazônia.
O desconhecimento de dados de base populacional sobre a prevalência de HAS mensurada em Rio Branco, capital do estado do Acre, Brasil, como também da validade do autorrelato pela população para utilização em pesquisas epidemiológicas, motivou a realização do presente estudo, cujo objetivo foi analisar a validade da HAS autorreferida na população adulta de Rio Branco.
Métodos
Trata-se de um estudo de validade do autorrelato de HAS em adultos por meio da avaliação dos indicadores de acurácia diagnóstica, tendo como fonte de dados o inquérito ‘Estudo das Doenças Crônicas - EDOC’. O EDOC constituiu-se de dois inquéritos: EDOC-A, realizado com adultos (18 a 59 anos); e EDOC-I, com idosos (60 anos e mais). Todos os indivíduos inquiridos eram residentes em Rio Branco, Acre, no período de abril a setembro de 2014.
Tomou-se por base os dados do Censo Demográfico de 2010, de responsabilidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontaram a capital do Acre como a sexta cidade mais populosa da região Norte, com 336.038 habitantes e 96.276 domicílios distribuídos em 338 setores censitários.
O plano amostral foi elaborado considerando-se dois estágios: setor; e domicílio. A seleção dos setores foi feita com probabilidade proporcional ao número de domicílios particulares encontrados pelo Censo 2010. Os domicílios foram selecionados por amostragem sistemática, com equiprobabilidade, e todos os adultos neles residentes, entrevistados. Foram excluídos da população de pesquisa os indivíduos com comprometimentos cognitivos que inviabilizassem a comunicação ou o entendimento das perguntas e as mulheres grávidas.
O tamanho da amostra foi calculado considerando-se a prevalência de alteração da função renal de 15% em adultos,9 com grau de confiança de 95% e erro absoluto de 3 pontos percentuais10 para amostragem aleatória simples de proporções. Este procedimento resultou em uma amostra de 652 adultos. Dividindo-se esse tamanho de amostra pelo número médio de adultos por domicílio, obtido do mesmo Censo 2010, contatou-se a necessidade de selecionar 440 domicílios. Fixados esses parâmetros, decidiu-se pela seleção de 40 setores e 11 domicílios por setor. Para a amostra efetiva do EDOC-A, foram determinados os pesos das observações para produzir estimativas sobre a população estimada pelo IBGE para 1º de julho de 2014. Considerando-se a perda pontual de informações de determinadas variáveis, foram criadas subamostras, e os pesos das observações foram recalibrados para produzir estimativas populacionais. Detalhes sobre o plano de amostragem, calibração dos pesos das observações, subamostras e demais procedimentos metodológicos do EDOC estão descritos por Amaral et al.11
Os dados demográficos e socioeconômicos, assim como as informações sobre hábitos de vida e de saúde, foram obtidos mediante aplicação de questionário estruturado entrevistadores treinados. Na presente análise, utilizam-se os dados sobre faixa etária (em anos: 18 a 39; 40 a 59), sexo, escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior), situação conjugal (com companheiro; sem companheiro), morbidades autorreferidas (diabetes mellitus; dislipidemia; estresse), prática de atividade física (sim [ao menos uma vez por semana]; não), tabagismo (não fumante; fumante ou ex-fumante) e consumo habitual de bebida alcoólica (sim; não).
A HAS autorreferida foi obtida a partir da proposição da pergunta “Alguma vez o(a) senhor(a) já foi diagnosticado por algum médico com [...] hipertensão (pressão alta)?”. Foram considerados com HAS autorreferida aqueles que relataram o diagnóstico.
A aferição da pressão arterial (PA) foi realizada por profissionais de saúde em dia posterior à aplicação do questionário, respeitando-se o tempo de 30 minutos ou mais da última ingestão de cafeína ou de cigarro fumado. O participante foi orientado a sentar com as pernas descruzadas, os pés apoiados no chão, o dorso recostado na cadeira, e relaxar, com o braço na altura do coração, livre de roupas, apoiado, com a palma da mão voltada para cima e o cotovelo ligeiramente fletido. O manguito foi bem ajustado, 2 a 3cm acima da fossa cubital. A PA foi mensurada utilizando-se aparelho digital da marca Beurer®. Foram realizadas três aferições: a primeira, após 5 minutos de repouso inicial; e as outras duas, a intervalos de 2 minutos. O valor final da PA foi calculado pela média aritmética entre a segunda e a terceira medidas.2
Foram considerados com HAS mensurada aqueles cujos valores da média da PA mensurada foram ≥140 mmHg para a PA sistólica e/ou ≥90 mmHg para a PA diastólica, ou com uso atual de medicamento anti-hipertensivo.2 O diagnóstico da HAS mensurada foi considerado padrão ouro para HAS, no presente estudo. O ponto de corte foi definido a priori, tanto para o teste-índice (autorrelato) quanto para o padrão. O uso atual de medicamentos anti-hipertensivos foi identificado a partir de receituário médico ou da embalagem dos medicamentos de uso atual.
O peso dos participantes foi mensurado por balança digital, colocada em superfície plana (BalGl 200 da G-Tech®); e a altura, determinada por estadiômetro portátil (Sanny®). O índice de massa corporal (IMC), obtido pela razão do peso (kg) pelo quadrado da altura em metros (m²), foi classificado em três grupos: <25kg/m² (valores normais ou de baixo peso); 25 a <30kg/m² (sobrepeso); e ≥30kg/m² (obesidade).12
Os dados foram analisados de forma descritiva e exploratória, para avaliar a distribuição das variáveis e caracterizar a população estudada. A descrição das variáveis categóricas foi apresentada pela distribuição das proporções. As prevalências de HAS autorreferida e mensurada foram calculadas e comparadas pelo teste qui-quadrado de McNemar, sendo adotado nível de significância de 95%. A validade do autorrelato de HAS, tendo como padrão ouro a HAS mensurada, foi expressa utilizando-se os indicadores de acurácia, sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e valor preditivo negativo. Esses indicadores foram apresentados segundo informações socioeconômicas e demográficas, hábitos de vida e morbidades autorreferidas (estresse, diabetes e dislipidemia).
As curvas da Receiver Operating Characteristic (ROC), para avaliação da pressão arterial sistólica e da hipertensão arterial autorreferida, estratificadas por sexo e faixa etária, foram analisadas para obtenção das áreas sob a curva e seus respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%): resultado igual a 1,0 significa que se trata de um teste perfeito; e resultado inferior a 0,5, que a resposta da variável-teste se deve ao acaso. As análises dos dados foram realizadas pelo pacote estatístico SAS®, versão 9.4, tendo-se adotando um nível de significância de α=0,05.
Todas as análises levaram em conta o efeito do desenho amostral e os pesos calibrados das observações. As frequências das observações foram expressas por ‘n’, e sua correspondente populacional, a partir da inferência da amostra para a população, por ‘n expandido’ (N).
O projeto da pesquisa atendeu aos preceitos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 466, de 12 de dezembro de 2012, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal do Acre (CEP/UFAC): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 17543013.0.0000.5010, de 30 de janeiro de 2014. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Foram avaliados 685 adultos e destes, 644 aferiram a pressão arterial e responderam ao questionário quanto à presença ou ausência de hipertensão arterial, o que correspondeu a 211.902 indivíduos após extrapolação da amostra para a população. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os indivíduos analisados e os excluídos, segundo sexo e idade (p>0,05).
Entre os indivíduos com HAS mensurada, a maioria era de homens, da faixa etária de 40 a 59 anos, de raça/cor da pele autorreferida como branca, com até o ensino fundamental, trabalhadores, com companheiros, sedentários, fumantes ou ex-fumantes, com sobrepeso ou obesos, com diabetes e dislipidemia autorreferida. Ao se comparar a distribuição das variáveis segundo a forma de identificar HAS, observou-se subestimação da autorreferida nos homens, naqueles com ocupação, nos que apresentaram sobrepeso e nos que referiram ter diabetes (Tabela 1).
Variáveis | Total | Hipertensão arterial sistêmica | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Mensurada | Autorreferida | |||||||||
n | Na | n | Na | %b | IC95% c | n | Na | %b | IC95% c | |
Sexo | ||||||||||
Masculinod | 197 | 101.624 | 59 | 22.017 | 21,7 | 16,3;28,2 | 44 | 15.879 | 15,6 | 10,4;22,7 |
Feminino | 447 | 110.278 | 108 | 19.556 | 17,7 | 14,6;21,4 | 99 | 19.355 | 17,6 | 14,1;21,6 |
Grupo etário (em anos) | ||||||||||
18-39 | 339 | 146.447 | 34 | 15.640 | 10,7 | 7,1;15,8 | 32 | 13.252 | 9,0 | 5,6;14,3 |
40-59 | 305 | 65.455 | 133 | 25.933 | 39,6 | 39,2;46,8 | 111 | 21.981 | 33,6 | 26,7;41,2 |
Raça/cor da pele | ||||||||||
Branca | 120 | 38.846 | 37 | 10.473 | 27,0 | 18,4;37,6 | 30 | 7.348 | 18,9 | 12,0;28,5 |
Não branca | 524 | 173.056 | 130 | 31.101 | 18,0 | 14,5;22,0 | 113 | 27.886 | 16,1 | 12,6;20,3 |
Escolaridadee | ||||||||||
Ensino médio e superior | 272 | 96.332 | 53 | 14.251 | 14,8 | 10,5;20,4 | 43 | 10.941 | 11,4 | 8,0;15,8 |
Até o ensino fundamental | 358 | 111.524 | 113 | 27.114 | 24,3 | 19,2;30,3 | 97 | 23.438 | 21,0 | 16,3;26,7 |
Ocupação | ||||||||||
Não | 334 | 96.366 | 80 | 15.563 | 16,2 | 12,5;20,6 | 79 | 16.448 | 17,1 | 13,1;22,0 |
Simd | 310 | 115.536 | 87 | 26.010 | 22,5 | 17,7;28,2 | 64 | 18.786 | 16,3 | 11,4;22,7 |
Situação conjugale | ||||||||||
Com companheiro | 306 | 98.269 | 97 | 24.776 | 25,2 | 20,1;31,2 | 76 | 20.212 | 20,6 | 15,8;26,3 |
Sem companheiro | 335 | 112.747 | 69 | 16.589 | 14,7 | 11,5;18,6 | 66 | 14.813 | 13,1 | 9,6;17,7 |
Atividade físicae | ||||||||||
Sim | 164 | 70.284 | 38 | 11.335 | 16,1 | 10,0;25,0 | 31 | 9.064 | 12,9 | 8,8;18,6 |
Não | 477 | 140.328 | 127 | 29.808 | 21,2 | 18,1;24,7 | 110 | 25.739 | 18,3 | 14,2;23,3 |
Tabagismoe | ||||||||||
Não fumante | 348 | 122.593 | 76 | 21.484 | 17,5 | 13,6;22,2 | 63 | 16.696 | 13,6 | 10,0;18,3 |
Fumante ou ex-fumante | 292 | 88.230 | 91 | 20.089 | 22,8 | 17,5;29,1 | 79 | 18.221 | 20,7 | 16,1;26,0 |
Consumo de bebida alcoólicae | ||||||||||
Não | 463 | 142.147 | 128 | 29.461 | 20,7 | 17,2;24,8 | 112 | 26.343 | 18,5 | 14,8;23,0 |
Sim | 155 | 60.885 | 33 | 9.762 | 16,0 | 10,5;23,7 | 24 | 7.182 | 11,8 | 6,9;19,4 |
Índice de massa corporal (IMC)e | ||||||||||
Eutrófico (<25Kg/m²) | 250 | 91.213 | 37 | 9.579 | 10,5 | 6,8;16,0 | 39 | 9.189 | 10,1 | 6,8;14,6 |
Sobrepeso (25 a <30Kg/m²)d | 238 | 75.831 | 70 | 17.376 | 22,9 | 17,4;29,6 | 45 | 10.964 | 14,5 | 10,1;20,3 |
Obeso (≥30Kg/m²) | 141 | 39.763 | 53 | 13.154 | 33,1 | 26,6;40,3 | 53 | 14.171 | 35,6 | 24,8;48,2 |
Estresse autorreferido | ||||||||||
Não | 464 | 153.855 | 125 | 30.643 | 19,9 | 16,0;23,4 | 99 | 24.844 | 16,1 | 12,6;20,5 |
Sim | 160 | 50.794 | 37 | 9.493 | 18,7 | 11,9;28,2 | 41 | 9.712 | 19,1 | 13,1;27,1 |
Diabetes autorreferidae | ||||||||||
Não | 604 | 198.959 | 143 | 34.869 | 17,5 | 14,6;20,9 | 123 | 30.611 | 15,4 | 12,0;19,4 |
Simd | 33 | 10.886 | 20 | 6.027 | 55,4 | 35,1;74,0 | 16 | 3.946 | 36,2 | 21,2;54,5 |
Dislipidemia autorreferidae | ||||||||||
Não | 575 | 193.580 | 139 | 35.173 | 18,2 | 15,2;21,4 | 116 | 29.451 | 15,2 | 11,8;19,3 |
Sim | 56 | 14.687 | 24 | 5.207 | 35,5 | 21,2;52,9 | 26 | 5.471 | 37,2 | 25,1;51,2 |
Total | 644 | 211.902 | 167 | 41.573 | 19,6 | 16,5;23,1 | 143 | 35.234 | 16,6 | 13,2;20,7 |
a) N = N expandido a partir dos pesos e o delineamento amostral.
b) %: proporção a partir do N expandido.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
d) Teste de McNemar significativo (p<0,05).
e) As diferenças em relação ao total são decorrentes de falta de informação na variável.
A prevalência de HAS autorreferida foi de 16,6% (IC95% 13,2;20,7), e a mensurada (padrão ouro), de 19,6% (IC95% 16,5;23,1).
Na comparação da HAS autorreferida com o padrão ouro, a acurácia do autorrelato foi elevada: os resultados estiveram corretos em mais de 80,0% dos casos, para a maioria das variáveis investigadas. A sensibilidade revelou que 53,7% dos indivíduos hipertensos foram corretamente identificados pelo autorrelato, enquanto 92,4% dos não hipertensos informaram corretamente sua condição (Tabela 2).
Variáveis | Acurácia | Sensibilidade (IC95% a) | Especificidade (IC95% a) | Valores preditivos | |
---|---|---|---|---|---|
Positivo (IC95% a) | Negativo (IC95% a) | ||||
HASb autorreferida | 84,8 | 53,7 (53,2;54,2) | 92,4 (92,3;92,5) | 63,3 (61,3;77,2) | 89,1 (85,6;91,6) |
Sexo | |||||
Masculino | 84,4 | 50,0 (49,3;50,6) | 93,9 (93,7;94,0) | 69,3 (57,5;87,9) | 87,2 (81,3;92,8) |
Feminino | 85,2 | 57,8 (57,1;58,5) | 91,1 (90,9;91,3) | 58,4 (58,8;77,3) | 90,9 (85,8;92,6) |
Idade (em anos) | |||||
18-39 | 86,7 | 29,9 (29,2;30,6) | 93,4 (93,3;93,6) | 35,3 (13,1;45,0) | 91,8 (91,7;97,2) |
40-59 | 80,7 | 68,0 (67,4;68,6) | 89,0 (88,7;89,3) | 80,2 (74,2;89,4) | 80,9 (73,7;85,6) |
Raça/cor da pele | |||||
Branca | 84,3 | 55,9 (55,0;56,9) | 94,7 (94,5;95,0) | 79,7 (59,0;91,0) | 85,3 (80,7;94,9) |
Não branca | 90,3 | 52,9 (52,4;53,5) | 91,9 (91,8;92,1) | 59,0 (58,9;77,1) | 89,9 (85,4;92,0) |
Situação conjugal | |||||
Com companheiro | 79,2 | 49,4 (48,9;50,2) | 89,2 (89,0;89,4) | 60,6 (58,7;80,4) | 84,0 (78,6;88,9) |
Sem companheiro | 86,7 | 40,7 (40,0;41,5) | 94,8 (94,7;95,0) | 57,6 (56,6;80,1) | 90,3 (89,0;95,6) |
Escolaridade | |||||
Até o ensino fundamental | 82,2 | 56,7 (56,1;57,3) | 90,4 (90,3;90,6) | 65,6 (94,7;95,0) | 86,7 (94,7;95,0) |
Ensino médio e superior | 87,8 | 47,2 (46,4;48,1) | 94,9 (94,7;95,0) | 61,5 (94,7;95,0) | 91,2 (94,7;95,0) |
Ocupação | |||||
Não | 88,4 | 66,8 (66,0;67,5) | 92,5 (92,3;92,7) | 63,2 (61,9;82,6) | 93,5 (87,1;94,6) |
Sim | 81,9 | 45,8 (45,2;46,4) | 92,3 (92,2;92,5) | 63,5 (53,3;77,7) | 85,4 (81,6;90,8) |
Prática de atividade física | |||||
Sim | 84,9 | 43,2 (42,3;44,1) | 92,9 (92,7;93,1) | 54,0 (62,1;79,6) | 89,5 (85,5;92,3) |
Não | 84,6 | 57,0 (56,4;57,6) | 92,1 (91,9;92,2) | 66,0 (44,7;81,2) | 88,8 (81,7;93,5) |
Tabagismo | |||||
Não fumante | 85,9 | 48,7 (48,1;49,4) | 93,8 (93,7;94,0) | 62,7 (40,9;80,8) | 89,6 (77,1;91,6) |
Fumante e ex-fumante | 83,4 | 59,0 (58,3;59,7) | 90,7 (90,4;90,9) | 65,0 (52,9;78,0) | 88,2 (86,4;93,8) |
Consumo de bebida alcóolica | |||||
Não | 84,5 | 57,4 (56,8;57,9) | 91,6 (91,5;91,8) | 64,2 (63,9;81,9) | 89,2 (85,2;92,1) |
Sim | 87,7 | 48,6 (47,6;49,6) | 95,2 (95,0;95,4) | 66,0 (38,8;75,5) | 90,6 (82,7;93,9) |
Índice de massa corporal (IMC: kg/m²) | |||||
Eutrófico (<25Kg/m²) | 91,1 | 55,5 (54,5;56,5) | 95,3 (95,1;95,4) | 57,9 (40,7;77,8) | 94,8 (88,4;96,4) |
Sobrepeso (25 a <30Kg/m²) | 79,7 | 37,2 (36,5;37,9) | 92,3 (92,1;92,5) | 59,0 (53,4;81,4) | 83,2 (81,1;91,5) |
Obeso (≥30Kg/m²) | 79,7 | 73,1 (72,4;73,9) | 82,9 (82,4;83,4) | 67,9 (64,0;86,0) | 86,2 (79,4;92,6) |
Estresse autorreferido | |||||
Não | 84,7 | 52,0 (51,5;52,6) | 92,8 (92,6;92,9) | 64,2 (61,3;80,0) | 88,6 (83,3;90,5) |
Sim | 86,8 | 65,8 (64,9;66,8) | 91,6 (91,3;91,9) | 64,3 (50,7;80,9) | 92,1 (89,1;98,2) |
Diabetes autorreferida | |||||
Não | 86,7 | 52,6 (52,1;53,1) | 93,7 (93,6;93,8) | 63,0 (57,9;76,1) | 90,6 (86,4;92,3) |
Sim | 63,3 | 59,4 (58,2;60,6) | 70,0 (68,5;71,5) | 76,8 (67,8;100,6) | 50,7 (40,0;93,3) |
Dislipidemia autorreferida | |||||
Não | 85,4 | 51,8 (51,3;52,3) | 92,9 (92,8;93,0) | 61,9 (57,4;75,3) | 89,7 (85,6;91,7) |
Sim | 83,0 | 78,6 (77,5;79,7) | 85,4 (84,7;86,2) | 74,8 (72,0;100,0) | 87,9 (75,3;100,0) |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
b) HAS: hipertensão arterial sistêmica.
A sensibilidade do autorrelato foi menor entre os indivíduos jovens (29,9%) e com sobrepeso (37,2%). O menor VPP foi observado na faixa etária dos 18 aos 39 anos (35,3%) e o VPN mais baixo naqueles com diabetes (50,7%). A acurácia foi superior a 79% em todas as variáveis analisadas, exceto para diabetes (Tabela 2).
A curva ROC para análise da HAS apresentou área sob a curva (AUC) de 0,77 (IC95% 0,72;0,81), apontando para a consonância entre o diagnóstico avaliado pela medida da pressão arterial sistólica e o autorrelato de diagnóstico de HAS na população inquirida (Figura 1). Na análise da curva ROC estratificada por sexo, as mulheres obtiveram valor da AUC de 0,77 (IC95% 0,72;0,82), enquanto para os homens a AUC foi de 0,78 (IC95% 0,69;0,87). Nos estratos de idade, a AUC na faixa etária até 40 anos foi de 0,75 (IC95% 0,67;0,83), e na de 40 anos e mais, de 0,71 (IC95% 0,65;0,77).
Discussão
A HAS autorreferida foi classificada como um bom método para estimar a hipertensão arterial em estudos epidemiológicos com adultos, na cidade de Rio Branco, Acre. Não obstante, ela deve ser utilizada com cautela naqueles com idade inferior a 40 anos, com sobrepeso e autorrelato de diabetes.
A prevalência de HAS autorreferida foi menor que a mensurada, embora essa diferença não se tenha revelado estatisticamente significativa. Esse resultado é corroborado por estudo realizado no Canadá, onde a prevalência da HAS pelo autorrelato foi de 18,2% e a mensurada 20,3%.13 Pesquisa realizada na Carolina do Norte, Estados Unidos, com maiores de 18 anos, também apontou a subestimação da prevalência de HAS pelo autorrelato (16,1%) em relação à mensurada (24,8%).14 Observou-se subestimação da HAS pelo autorrelato com diferenças estatisticamente significativas entre os homens, pessoas com ocupação, com sobrepeso pelo IMC e com autorrelato de diabetes. Em contraposição, estudo brasileiro realizado em Pelotas, RS, demonstrou que a prevalência global da HAS foi superestimada pelo autorrelato, o que também se confirmou entre indivíduos abaixo de 49 anos e no sexo feminino.4
As prevalências do autorrelato de HAS encontradas pela Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada nas capitais brasileiras em 2012, variaram de 15,2% (TO) a 28,7% (RJ), tendo Rio Branco referido 22,3%.15 Todavia, de acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, a prevalência de HAS autorreferida no Acre foi de 16,1% (homens, 12,6%; mulheres, 19,3%),16 enquanto noutro inquérito realizado no mesmo ano de 2013, mediante mensuração da HAS, a prevalência foi de 15,6%, maior entre homens (15,8%) quando comparados às mulheres (10,8%),17 reforçando os achados do presente estudo.
O autorrelato é considerado um importante método para a vigilância da HAS na população.4 Entretanto, somente a mensuração da pressão arterial possibilita a detecção de novos casos, permitindo a formulação de estratégias de prevenção e controle das doenças crônicas.18 Estudos populacionais revelam o desconhecimento da situação de saúde no Brasil. Em Nobres, MT, por exemplo, um estudo realizado com 1.003 indivíduos maiores de 18 anos evidenciou que 26,5% dos hipertensos desconheciam sua condição.19
Um recurso para avaliar a validade do autorrelato de HAS é compará-lo com a pressão arterial aferida e calcular sua sensibilidade, especificidade e valores preditivos - especialmente o positivo -, objetivando estimar a probabilidade de um indivíduo ser realmente hipertenso quando assim se declara.
Revisão sistemática de amplitude mundial publicada no ano de 2018, com metanálise, sobre dados de 112.517 adultos, destacou a importância da investigação da acurácia da HAS autorreferida antes de adotá-la como instrumento de avaliação, em virtude da variação encontrada em diferentes populações;8 e revelou valores de sensibilidade da HAS autorreferida de 42,1% (IC95% 30,9;54,2) e de especificidade de 89,5% (IC95% 84,0;93,3). Apesar da baixa acurácia, a mesma revisão mostrou que, no Brasil, houve um melhor resultado,8 reforçando os achados observados na presente investigação, que apresentaram valores pouco mais elevados: 53,7% de sensibilidade e 92,4% de especificidade.
Valores mais elevados de sensibilidade e de especificidade foram identificados em outras pesquisas. No sul da Espanha, de 2001 a 2003, foi mostrada uma baixa capacidade da HAS autorreferida em captar os hipertensos (sensibilidade de 49,4% e especificidade de 96,8%), quando comparada ao padrão ouro, sendo a informação autorreferida considerada inválida para estimar a prevalência dessa doença naquela população.5 Um inquérito realizado em São Paulo, em 2008 e 2010, encontrou sensibilidade de 71% da HAS autorreferida entre maiores de 20 anos.3 Nos Estados Unidos, o National Health and Nutrition Examination Survey III (NHANES III) de 1998-1991,20 realizado com maiores de 24 anos, identificou 71% de sensibilidade e 90% de especificidade. Destaca-se que o NHANES é a principal fonte de dados para a vigilância de HAS nos Estados Unidos. Entre imigrantes com 18 anos ou mais, residentes em Nova Iorque, o autorrelato de HAS mostrou sensibilidade de 77,8% e especificidade de 89,9%.21 No inquérito com maiores de 20 anos realizado em Pelotas, observou-se sensibilidade de 84,3% e especificidade de 87,5%.4
Na presente investigação, foram identificados valores preditivos positivo e negativo inferiores aos reportados pelos estudos citados no parágrafo anterior: NHANES III (72% e 89%, respectivamente),20 Espanha (89,4% e 77,8%),5 São Paulo (73,7% e 78,5%)³ e Pelotas (73,9% e 93,0%).4 Esses resultados mostram que a prevalência de HAS autorreferida se aproxima da mensurada, apontando sua validade em inquéritos nessas populações. Contudo, salienta-se que os valores preditivos, especialmente o VPP, são altamente dependentes da prevalência do evento na população estudada. Nesse sentido, a maior magnitude desses indicadores encontrados em tais estudos, quando comparados com os achados de Rio Branco, pode ser explicada, em parte, pela maior oferta de serviços de saúde naquelas regiões.
Vale destacar que, no presente estudo houve, maior sensibilidade da HAS autorreferida entre as mulheres e entre os mais velhos (40 a 59 anos). Na mesma direção apontou outro estudo espanhol, com adultos de 30 a 69 anos, ao apresentar maior sensibilidade entre mulheres e indivíduos mais velhos, evidenciando, ademais, o aumento da sensibilidade entre aqueles com menor escolaridade e os obesos.22 No estudo de Pelotas, o sexo feminino apresentou sensibilidade de 92,2% e VPP de 72,9%, enquanto no sexo masculino a sensibilidade foi de 72,7% e o VPP de 75,8%, com aumento desses valores a partir dos 50 anos de idade.4 A alta sensibilidade de HAS autorreferida em mulheres, tanto neste estudo sobre Rio Branco como em outros, pode decorrer da maior utilização dos serviços de saúde pela população feminina.23 Já a maior sensibilidade entre os mais velhos pode se relacionar ao fato de o conhecimento da doença se manifestar com o avanço da idade24 e/ou com o aparecimento de morbidades que levam o indivíduo a buscar consultas médicas e, dessa forma, favorecer o diagnóstico de HAS.3,4,25
Maiores níveis de sensibilidade e VPP foram encontrados entre aqueles que referiram comorbidades, diferentemente do apresentado no Colorado, Estados Unidos, onde (i) a sensibilidade foi de 73,2% e o VPP de 88,2% nos que referiram diabetes, enquanto (ii) a sensibilidade foi de 59,1% e o VPP de 62,7% nos que relataram hipercolesterolemia.26 No estudo brasileiro realizado na cidade de São Paulo (2008 e 2010), maiores níveis desses critérios de acurácia da HAS autorreferida ocorreram entre as pessoas com obesidade (78,3% de sensibilidade e 72,3% de VPP) e nos que referiram ter diabetes mellitus (sensibilidade de 88,9% e VPP de 76,9%),3 corroborando os achados deste trabalho. Morbidades como a obesidade e o diabetes mellitus exigem maior número de consultas médicas e exames para acompanhamento, condições que ampliam o conhecimento da própria condição de saúde.3,4,25 Outrossim, obesidade, diabetes mellitus e dislipidemia são fatores associados à HAS.27 Todavia, convém destacar o seguinte achado deste trabalho: entre os indivíduos que referiram ter diabetes, cerca de 50% relataram negativamente o diagnóstico prévio de HAS, sugerindo que os adultos são mais atentos ao diagnóstico de diabetes que ao de hipertensão.
A baixa escolaridade entre os adultos de Rio Branco apresentou-se como um importante fator para a acurácia da HAS autorreferida. Em São Paulo, a sensibilidade da HAS autorreferida foi maior entre os que tinham menos de nove anos de estudo (77,9%; VPP de 74,9%).3 Sustenta-se a assertiva de que a situação socioeconômica adversa, representada pela escolaridade, contribui para o aparecimento de morbidades,24 maior demanda por serviços de saúde e consequente diagnóstico de doenças. Outro importante elemento a se considerar é o acompanhamento dessa população pela Estratégia Saúde da Família (ESF), cujo modelo assistencial prioriza a cobertura de áreas com populações mais vulneráveis.3
Também merece destaque a frequência de falsos-negativos de HAS pelo autorrelato, sendo observadas maiores proporções de pessoas que desconhecem ser portadoras da doença, com destaque para os homens, pessoas na idade até 39 anos, fumantes, etilistas, indivíduos dotados de maior escolaridade, não praticantes de atividades físicas, com sobrepeso e com ocupação. Estes indicadores sinalizam a importância de ações educativas de prevenção voltadas a esses grupos populacionais. Os resultados apresentados são corroborados por um estudo realizado no município de Ribeirão Preto, SP, onde sobressaíram homens, jovens, trabalhadores e pessoas com maior escolaridade como os que menos procuram os serviços de saúde.28 Tal achado pode ser explicado (i) pelo fato de nem sempre o trabalhador ter facilitada - pelo empregador - a busca por cuidados com a própria saúde; (ii) pela maior escolaridade implicar maior demanda por serviços de saúde e, ademais; (iii) por ainda ser comum entre os jovens a necessidade de conciliar estudo e trabalho.29
Algumas limitações devem ser consideradas na presente investigação. A primeira consiste na coleta de dados pelo autorrelato de HAS e na mensuração da PA terem se realizado em dias diferentes, ainda que se mantivesse um intervalo de tempo suficientemente curto de modo a garantir que não houvesse mudança no estado de saúde dos participantes. Também pode-se considerar uma limitação a definição da HAS (padrão ouro) por meio de mensuração pontual, ainda que amenizada ao se realizarem três mensurações sequenciais, obedecendo-se as recomendações de repouso, posicionamento e intervalo entre as medidas, e utilizar as médias das duas últimas aferições da PA sistólica e diastólica. Outra limitação potencial reside no viés de memória: era necessário que o participante se lembrasse do diagnóstico prévio de HAS feito por profissional de saúde. Finalmente, cumpre citar a simplificação na definição de algumas variáveis, como atividade física e consumo de álcool, além da perda de informação de alguns participantes, embora não houvesse diferenças significativas entre os grupos para idade e sexo.
Como seus pontos fortes, o estudo apresenta a validade da HAS autorreferida para a população adulta de Rio Branco, respalda futuros estudos de prevalência e contribui para compensar a escassez de estudos dessa natureza disponíveis sobre a região Norte do país.
Não poucas vezes, o autorrelato é a opção viável para obtenção de dados sobre saúde. A hipertensão arterial sistêmica autorreferida, tema deste trabalho, é válida em estudos populacionais, desde que se reserve a devida cautela na avaliação de jovens até 39 anos, homens, trabalhadores, pessoas com sobrepeso e com relato de diabetes, em razão de sua baixa sensibilidade e baixo valor preditivo positivo. Estes resultados demonstram a necessidade de medidas de Saúde Pública a serem tomadas pelas autoridades sanitárias da capital do Acre, voltadas para esse público de modo a conscientizá-lo sobre a própria condição de saúde, favorecendo ações de prevenção e controle das doenças crônicas e outros agravos.
Estudos de prevalência são necessários porque subsidiam informações sobre o estado de saúde da população. A validação das informações sobre doenças crônicas pelo autorrelato é importante para a vigilância das morbidades crescentes, frente às atuais mudanças comportamentais e de estrutura etária da sociedade brasileira.