Introdução
O contato físico, próximo e prolongado, com pessoas portadoras de hanseníase ativa sem tratamento poliquimioterápico constitui o principal fator associado a maior transmissão de Mycobacterium leprae (M. leprae), ou bacilo de Hansen.1,2 Como condição crônica primariamente neural, a hanseníase tem no desenvolvimento de incapacidade física o elemento central para compreender seu impacto físico, social e mental, ao lado do estigma social, que também representa dimensão importante.3 Trata-se de uma doença fortemente associada a contextos de maior vulnerabilidade individual, social e programática.4,5
No mundo, foram registrados 202.185 casos novos em 2019 (2,74 casos por 100 mil habitantes) em contextos de maior pobreza. No mesmo ano, o Brasil notificou 27.863 casos novos, o que corresponde a nada menos que 13,8% dos casos no mundo e 93,1% nas Américas.6 Entre as pessoas acometidas e que tiveram o grau de incapacidade física (GIF) avaliado, 8,4% (2.351 pessoas) foram diagnosticadas com o grau máximo (2), uma condição que limita ou até impede a realização de atividades da vida diária, laborais e sociais.7
Com base nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde do Brasil assumiu, como uma das principais estratégias para redução da carga da doença, o desenvolvimento da vigilância de contatos dos casos. Essencialmente, o Ministério recomenda aproveitar a oportunidade do diagnóstico de um caso novo para a realização de exame dermatoneurológico de seus contatos.3,8 Desde 2016, o país ampliou o escopo da definição de contatos de casos novos de hanseníase, indo para além daqueles do âmbito domiciliar, qual seja: pessoas que residam ou tenham residido com a pessoa com hanseníase até cinco anos antes do tratamento.2 Na nova definição, foram incluídas pessoas da rede de convívio social, vizinhos, colegas de trabalhos e de escola, que convivem de forma próxima e prolongada com os casos novos de hanseníase,2,9,10 em conformidade com as evidências até então estabelecidas.1
Apesar da relevância, essas ações de vigilância persistem com falhas operacionais importantes, seja na cobertura (populacional e individual), seja na qualidade da ação, baseada no exame dermatoneurológico, na imunoprofilaxia e no seguimento dos contatos, ao longo de no mínimo cinco anos, encarregados à Atenção Primária à Saúde (APS).2,3,11
Para o monitoramento dessas ações, o Ministério preconiza o uso, no âmbito municipal, do indicador relacionado à proporção de contatos examinados entre os casos registrados.2,10 Embora relevante do ponto de vista da vigilância, esse indicador apresenta limites ao monitoramento de todas as dimensões desse processo.11 A proporção de contatos examinados no Brasil variou de 74,5% para 81,4% entre 2014 e 2019. De acordo com dados do Boletim Epidemiológico da Hanseníase 2020, as regiões Nordeste e Norte do país foram aquelas com menor cobertura de avaliação de contatos, 79,6% e 78,6% respectivamente.10
Com a publicação da ‘Estratégia Nacional para Enfrentamento da Hanseníase 2019-2022’, o Ministério da Saúde reforça a importância do sistema de vigilância e de informações em saúde para o monitoramento e avaliação do controle da hanseníase, ressaltando a vigilância de contatos domiciliares.3,8 O documento representa um avanço, na medida em que rompe com o trabalho sob a perspectiva de municípios prioritários e passa a recomendar estratégias diferenciadas, para cada localidade, a depender de padrões epidemiológicos e operacionais de controle, com vistas a se alcançar maior efetividade das ações nos municípios.3 O estado do Ceará ratificou as recomendações nacionais e estabeleceu ações contextualizadas para sua realidade, em seu ‘Plano Integrado de Atenção e Vigilância para o Enfrentamento da Hanseníase no Ceará, 2019-2022’.12
Considerando-se as perspectivas anteriores, tendo em vista a necessidade de qualificar a vigilância dos contatos em hanseníase como ação estratégica para controle da doença, o presente estudo teve como objetivo analisar o efeito de características sociodemográficas e clínicas de casos novos de hanseníase como fatores determinantes e potenciais para um padrão diferencial no desempenho da avaliação de seus contatos.
Métodos
Estudo transversal, de base populacional, a partir da análise de indicador relacionado à vigilância de contatos de casos novos de hanseníase residentes no estado do Ceará, Brasil, no período de 2008 a 2019. Foram analisados fatores sociodemográficos e clínicos relacionados a casos novos, potencialmente associados ao desempenho desse indicador.
Localizado na região Nordeste do Brasil, o Ceará divide-se em 184 municípios, distribuídos entre cinco macrorregiões de saúde e 22 microrregiões (Figura 1). O estado tinha projeção populacional de 9.132.078 habitantes (2019), dos quais parte significativa residente na área rural (24,9%). Da população total do estado, 48,7% eram do sexo masculino e 4,7% autorreferidos negros; no quesito ‘desigualdade social’, 14,7% eram extremamente pobres, e a taxa de analfabetismo era de 28,5% entre aqueles com 18 anos ou mais de idade. O estado apresentava expectativa de vida ao nascer de 72,6 anos, e uma proporção de idosos (acima de 65 anos) de 7,54% da população geral. Em 2010, o índice de desenvolvimento humano (IDH) do Ceará era de 0,682; e o índice de Gini, de 0,61.13-15
Os dados para análise foram extraídos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), obtidos junto à Coordenadoria de Vigilância em Saúde do Núcleo de Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará. Após exclusão dos registros com critério de saídas por erro diagnóstico, seguiu-se a análise do banco de dados, considerando-se as variáveis referentes aos campos de contatos examinados e registrados. Estabeleceu-se, preliminarmente, a seguinte classificação: (i) casos novos com zero contatos registrados; (ii) casos novos com 100% dos contatos registrados e examinados; (iii) casos novos com número de contatos examinados inferior ao de contatos registrados; e (iv) casos novos com número de contatos examinados superior ao de contatos registrados. A partir das proporções geradas para cada uma dessas categorias, verificou-se sua variação ao longo de 12 anos, no estado do Ceará.
Em seguida, procedeu-se à construção do indicador referente à proporção de casos novos de hanseníase que tiveram todos os seus contatos (100%) registrados, entre os casos examinados. Para tanto, foram considerados como ‘sim’ todos os casos novos que tinham o número de contatos registrados menor ou igual ao número de contatos examinados, assim como todos os casos novos que não tiveram registro de contatos (zero: 0); e como ‘não’, todos os casos novos cujo número de contatos registrados tenha sido maior do que o número de contatos examinados.
A análise de variáveis sociodemográficas de casos novos de hanseníase incluiu:
- sexo (feminino; masculino);
- raça/cor da pele autorreferida (branca; preta; amarela; parda; indígena);
- faixa etária (em anos: <15; 15-59; ≥60);
- escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior); e
- zona de residência (urbana; rural; periurbana).
Entre as variáveis clínicas, considerou-se: classificação operacional da doença (caso paucibacilar; caso multibacilar); maior grau de incapacidade física (0; 1; 2); e modo de detecção dos casos novos (encaminhamento; demanda espontânea; exame de coletividade; exame de contatos) como variável operacional.
Com o intuito de verificar a potencial associação entre variáveis independentes, sociodemográficas e clínicas, dos casos novos de hanseníase com o desfecho de interesse relativo ao desempenho da avaliação de seus contatos examinados entre os registrados (100% dos contatos examinados), procedeu-se à análise por regressão logística binária.
Utilizou-se a análise por regressão logística univariada, para identificar os fatores associados. A odds ratio (OR) foi calculada para cada variável independente, com seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As variáveis analisadas que apresentaram associação com p-valor inferior a 0,20 na análise por regressão univariada foram incluídas no modelo de análise por regressão logística, utilizando-se o método stepwise para essa seleção. O objetivo desta etapa foi investigar o efeito independente dessas variáveis, quando em conjunto, para a não avaliação de todos os contatos do caso novo de hanseníase. A presença de colinearidade entre as variáveis explicativas do modelo foi verificada por meio da análise do fator de inflação da variância. Variáveis com evidência de colinearidade foram excluídas da análise.
O nível de significância para inclusão de variáveis no modelo final foi estabelecido em 5% de significância, utilizado para qualquer uma das categorias de variável-resposta, avaliando-se questões de interação e confusão. Procedeu-se a estimativas de OR brutas e ajustadas, e seus respectivos IC95%, permanecendo no modelo somente as variáveis com significância estatística (p-valor<0,05).
Para reconhecer a tendência temporal do indicador de avaliação de contatos, e sua possível variação a partir de características sociodemográficas e clínicas dos casos novos de hanseníase, utilizou-se a regressão joinpoint (por pontos de inflexão) de Poisson. Utilizou-se o software Joinpoint Regression Program em sua versão 4.5.0.1 (http://surveillance.cancer.gov/joinpoint/), cujo uso se justifica pelo fato de proporcionar o melhor ajuste de uma série de linhas, com seus pontos de inflexão em escala logarítmica, a partir do teste de tendências anuais.
Para o teste de significância, foi utilizado o método de permutação de Monte Carlo, na busca por ajustes baseados na melhor linha de cada segmento. Para tanto, foram testadas as variações percentuais anuais (VPA), com respectivos IC95%. O resultado de inflexões de modelos definidos pelo próprio programa, como critério para análise, permitiu a melhor representação da tendência temporal.
Os resultados obtidos demonstraram (i) tendência temporal de crescimento, quando os valores de VPA eram positivos e com significância estatística (p-valor <0,05), (ii) a redução, quando os valores de VPA eram negativos e com significância estatística, ou (iii) a ausência de tendência, quando o valor da VPA era igual a zero ou não apresentava significância estatística.
As análises estatísticas foram realizadas com uso do software Stata, versão 11.2 (Stata Statistical Software: Release 11. College Station, TX: StataCorp LP).
O presente estudo foi baseado em dados secundários de morbidade, de acesso aberto ao público, motivo por que não houve a necessidade de submissão do projeto à apreciação de Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
No período do estudo, foram notificados 23.675 casos novos de hanseníase, dos quais 65,4% (15.484) tiveram 100% dos contatos registrados examinados. Um percentual de 25,8% dos casos novos teve o número de contatos registrados maior que o de examinados; 3,8% não tiveram nenhum contato registrado, sequer examinado (Figura 2).
De acordo com a análise por regressão logística, quando o caso de hanseníase era do sexo masculino, havia uma chance 18% maior (OR bruto=1,18 - IC95% 1,12;1,24) para que nem todos os contatos registrados fossem examinados, comparada à mesma chance para o sexo feminino. Na análise ajustada, verificou-se maior chance de não avaliação de todos os contatos registrados quando os casos novos eram de raça/cor da pele parda (OR=1,28 - IC95% 1,18;1,39) ou preta (OR=1,37 - IC95% 1,19;1,57), relativamente à raça/cor da pele branca. A faixa etária parece não estar associada à não avaliação de 100% dos contatos, quando o caso diagnosticado tinha 60 anos ou mais. Entretanto, revelou-se um fator de ‘proteção’ apresentar maior escolaridade: ter ensino fundamental esteve associado a uma probabilidade 87% maior (OR=0,87 - IC95% 0,81;0,94) de todos os contatos serem examinados, quando comparada à mesma probabilidade para um caso novo sem escolaridade. Quando o caso novo de hanseníase morava na zona rural, verificou-se chance 52% maior para não exame de todos os contatos registrados. Da mesma forma, ter sido um caso novo multibacilar (OR=1,19 - IC95% 1,11;1,28) e ter como modo de entrada o exame de contatos (OR=1,71 - IC95% 1,35;2,18) apresentaram maior chance de não ter 100% dos contatos examinados (Tabela 1).
Variáveis | Casos novos | Casos novos com 100% dos contatos examinados | ORa bruta (IC95%)b | ORa ajustada (IC95%)b | |
---|---|---|---|---|---|
Sim (%) | Não (%) | ||||
Total | 23.675 (100,0) | 15.484 (65,4) | 8.191 (34,6) | - | - |
Sexo | |||||
Masculino | 10.324 (43,6) | 6.535 (42,2) | 3.789 (46,3) | 1,00 | - |
Feminino | 13.348 (56,4) | 8.949 (57,8) | 4.399 (53,7) | 1,18 (1,12;1,24) | - |
Raça/cor da pele | |||||
Branca | 4.414 (18,6) | 2.864 (18,5) | 1.550 (18,9) | 1,00 | |
Preta | 1.767 (7,5) | 1.280 (8,3) | 487 (5,9) | 1,42 (1,26;1,61) | 1,37 (1,19;1,57) |
Amarela | 250 (1,1) | 165 (1,1) | 85 (1,0) | 1,05 (0,80;1,37) | - |
Parda | 13.643 (57,6) | 9.677 (62,5) | 3.966 (48,4) | 1,32 (1,23;1,42) | 1,28 (1,18;1,39) |
Indígena | 67 (0,3) | 46 (0,3) | 21 (0,3) | 1,19 (0,70;1,99) | - |
Faixa etária (anos) | |||||
<15 | 1.309 (5,5) | 748 (4,8) | 561 (6,8) | 1,00 | - |
15-59 | 15.698 (66,3) | 10.134 (65,4) | 5.564 (67,9) | 1,30 (1,19;1,42) | - |
≥60 | 6.668 (28,2) | 4.602 (29,7) | 2.066 (25,2) | 1,57 (1,42;1,74) | - |
Escolaridade | |||||
Analfabeto | 2.680 (17,1) | 2.062 (13,3) | 618 (7,5) | 1,00 | |
Ensino fundamental | 9.785 (62,3) | 6.825 (44,1) | 2.960 (36,1) | 0,69 (0,63;0,76) | 0,87 (0,81;0,94) |
Ensino médio | 2.710 (17,3) | 1.842 (11,9) | 868 (10,6) | 0,64 (0,56;0,72) | - |
Ensino superior | 525 (3,3) | 344 (2,2) | 181 (2,2) | 0,57 (0,47;0,70) | - |
Zona de residência | |||||
Urbana | 18.190 (76,8) | 11.442 (73,9) | 6.748 (82,4) | 1,00 | |
Rural | 4.253 (18,0) | 3.344 (21,6) | 909 (11,1) | 2,17 (2,00;2,35) | 2,01 (1,81;2,22) |
Periurbana | 458 (1,9) | 232 (1,5) | 226 (2,8) | 0,61 (0,50;0,73) | 0,48 (0,38;0,61) |
Grau de incapacidade | |||||
Grau zero | 13.767 (58,1) | 8.968 (57,9) | 4.799 (58,6) | 1,00 | - |
Grau I | 4.577 (19,3) | 3.133 (20,2) | 1.444 (17,6) | 1,16 (1,08;1,25) | - |
Grau II | 1.703 (7,2) | 1.091 (7,0) | 612 (7,5) | 0,95 (0,86;1,06) | - |
Classificação operacional da doença | |||||
Paucibacilar | 8.704 (36,8) | 5.512 (35,6) | 3.192 (39,0) | 1,00 | |
Multibacilar | 14.967 (63,2) | 9.968 (64,4) | 4.999 (61,0) | 1,15 (1,09;1,22) | 1,19 (1,11;1,28) |
Modo de detecção dos casos novos | |||||
Encaminhamento | 12.755 (53,9) | 7.421 (47,9) | 5.334 (65,1) | 1,00 | |
Demanda espontânea | 9.181 (38,8) | 6.808 (44,0) | 2.373 (29,0) | 2,06 (1,94;2,19) | 1,55 (1,44;1,66) |
Exame de coletividade | 441 (1,9) | 286 (1,8) | 155 (1,9) | 1,33 (1,09;1,62) | - |
Exame de contatos | 582 (2,5) | 430 (2,8) | 152 (1,9) | 2,03 (1,68;2,45) | 1,71 (1,35;2,18) |
a) OR: odds ratio; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Nota: Sinal de travessão ( - ) representa ‘não calculados’.
Para a análise por joinpoint, a tendência geral foi de incremento dos casos de hanseníase em que todos os contatos, entre os registrados, fossem examinados (VPA=2,1 - IC95% 1,2;3,0). Contudo, ao se considerar a raça/cor da pele, essa mesma tendência somente foi observada em brancos(as) (VPA=2,3 - IC95% 0,2;4,4) e naqueles com o nível médio (VPA=4,5 - IC95% 2,6;6,5) ou superior de escolaridade (VPA=11,0 - IC95% 6,2;16,1). Residir na zona urbana demonstrou incremento (VPA=2,3 - IC95% 1,5;3,2), enquanto residir na zona periurbana, redução (VPA=-7,8 - IC95% -13,6;-1,7). Independentemente da classificação operacional do caso de hanseníase, encontrou-se uma tendência de incremento mais expressiva para casos novos multibacilares (VPA=2,2 - IC95% 1,4;2,9). No que concerne ao modo de entrada de casos novos, casos diagnosticados a partir do exame de coletividade (VPA=3,1 - IC95% 1,5;4,7) acusaram tendência significativa de aumento na tendência de avaliação dos contatos (Tabela 2).
Variáveis | Variação percentual anual (IC95%) |
---|---|
Total | 2,1a (1,2;3,0) |
Sexo | |
Masculino | 2,0a (1,1;2,9) |
Feminino | 2,1a (1,2;3,0) |
Raça/cor da pele | |
Branca | 2,3a (0,2;4,4) |
Preta | 1,2 (-0,3;2,8) |
Amarela | 1,9 (-0,4;4,3) |
Parda | 0,7 (-0,8;2,3) |
Indígena | 1,6 (-7,6;11,7) |
Faixa etária (anos) | |
<15 | 1,9a (0,4;3,3) |
15-59 | 2,1a (1,1;3,1) |
≥60 | 1,9a (1,1;2,6) |
Escolaridade | |
Analfabeto | 2,0a (0,4;3,6) |
Ensino fundamental | 1,0 (-1,0;3,1) |
Ensino médio | 4,5a (2,6;6,5) |
Ensino superior | 11,0a (6,2;16,1) |
Zona de residência | |
Urbana | 2,3a (1,5;3,2) |
Rural | 0,7 (-0,8;2,1) |
Periurbana | -7,8a (-13,6;-1,7) |
Grau de incapacidade | |
Grau zero | 2,7a (1,8;3,7) |
Grau I | 1,9a (1,0;2,8) |
Grau II | 1,6a (0,5;2,7) |
Classificação operacional da doença | |
Paucibacilar | 1,9a (0,6;3,2) |
Multibacilar | 2,2a (1,4;2,9) |
Modo de detecção dos casos novos | |
Encaminhamento | 2,3a (1,0;3,6) |
Demanda espontânea | 1,5a (0,5;2,4) |
Exame de coletividade | 3,1a (1,5;4,7) |
Exame de contatos | 1,6a (0,3;3,0) |
a) Significativamente diferente de 0,0 (p < 0,05).
Discussão
Apesar do risco ampliado de adoecimento entre contatos de casos novos de hanseníase, persistem falhas no desenvolvimento das ações de vigilância no estado do Ceará, em mais de um terço das situações, dificultando o controle da doença.16,17 Verificou-se associação entre características específicas dos casos novos de hanseníase e o fato de estes não terem 100% dos contatos avaliados, ressaltando-se, como fatores determinantes, o sexo masculino, autorreferir-se de raça/cor da pele parda ou preta, ter menor escolaridade, residir na zona rural, ser um caso multibacilar e ter sido diagnosticado a partir da avaliação de contatos. Apesar de o indicador de cobertura das ações de vigilância para cada caso mostrar-se com tendência geral de incremento ao longo do período de 12 anos selecionado, a análise por joinpoint não reconheceu esse mesmo padrão para contatos de casos novos de hanseníase de raça/cor da pele preta ou parda, baixo nível de escolaridade e residência nas zonas rurais do Ceará.
A maior probabilidade para a não avaliação de todos os contatos, quando a pessoa com hanseníase é do sexo masculino, pode traduzir questões socioculturais, de estreita relação com o modo de vivenciar o processo saúde-doença-cuidado. No Brasil, atitudes, práticas e valores tradicionalistas, de caráter sexista e misógino, alimentam uma cultura estruturada sobre a desigualdade de gênero, o que interfere no processo do cuidado à saúde.18 A representação do ato, da responsabilidade de cuidar como tarefa feminina, assim como falhas na oferta de serviços de saúde direcionados a homens, deixam estes em situação de vulnerabilidade. Estudos relacionados a incapacidade física e hanseníase reconhecem no homem e na pessoa idosa maior vulnerabilidade individual para a ocorrência dessa associação, do mesmo modo que dados do Ministério da Saúde mostram crescimento no número de casos na população masculina.4,19 Portanto, além de ações específicas da abordagem de contatos em hanseníase na população masculina, torna-se fundamental o desenvolvimento de estratégias de educação em saúde e mobilização para o autocuidado.
Além dos aspectos levantados, relativos a gênero, diferentes perspectivas de acesso à saúde, trabalho, educação e outros, essenciais à vida humana, são fortemente influenciadas pela dimensão de raça/cor da pele.20 De modo específico, compreender o quanto o acesso aos serviços de saúde é marcado em uma sociedade com forte viés racista torna-se central nesta análise. O reconhecimento dos porquês da baixa cobertura da avaliação de contatos de casos de hanseníase de raça/cor da pele preta implica, necessariamente, a construção de estratégias para enfrentamento da dificuldade para o exercício da cidadania por essas pessoas.20,21 Estudo realizado no estado da Bahia, direcionado para analisar a cobertura da avaliação de contatos de casos de hanseníase, reconheceu uma barreira crítica do acesso à raça/cor da pele.22 Outro estudo, envolvendo 24 mil pessoas com hanseníase em todo o Brasil, ao analisar somente os dados de indivíduos até 15 anos de idade, evidenciou que crianças de raça/cor da pele preta possuíam uma taxa de detecção de hanseníase 92% superior à daquelas de raça/cor da pele branca; o mesmo estudo observa que essa taxa é 40% maior quando é incluída a população adulta.23 Assim, enfrentar o racismo na sociedade e as desigualdades existentes que resultam em maior estigma, menor participação social e menos empoderamento, torna-se um elemento central em qualquer ação destinada a qualificar a vigilância de contatos.24
Outro fator sociodemográfico associado à não avaliação de todos os contatos de casos novos de hanseníase remete à variável ‘escolaridade’, proxy de condição socioeconômica. Sob a perspectiva mais ampla de desenvolvimento humano e social, quanto pior o nível de escolaridade, maior revelou-se o contexto de vulnerabilidade e de negligência, mantendo a hanseníase como um problema a acompanhar os diferentes ciclos da vida.25 Este estudo indica que, no Ceará, são quase 60% maiores as chances de contatos de casos com nível superior de escolaridade serem avaliados, quando comparados àqueles sem escolaridade. Outro estudo revelou que, entre aqueles que tiveram tratamento poliquimioterápico irregular para hanseníase, eram mais frequentes as pessoas de menor escolaridade.26 Do mesmo modo, pesquisa realizada no vale do Jequitinhonha, estado de Minas Gerais, identificou que pessoas sem escolaridade tiveram 82% mais chances de apresentar incapacidade física no diagnóstico de hanseníase, quando comparadas àquelas com nível fundamental de escolaridade, sendo que essa probabilidade foi ainda maior na comparação com a escolaridade de nível médio: OR=4,03; p<0,0001.16
Por ser uma condição negligenciada associada à pobreza, amplia-se a vulnerabilidade frente a todas as dimensões apresentadas previamente, quando expressas em conjunto. Para além das reformas estruturais que visam superar as desigualdades e a pobreza/extrema pobreza no país, de modo mais imediato, é fundamental incorporar novas estratégias de educação em saúde inclusiva, contextualizadas, acessíveis a diferentes condicionantes sociodemográficos.27
Residir na zona rural implicou possível limitação de acesso à avaliação dos contatos, podendo significar, por exemplo, a presença de barreiras geográficas. São limitados os estudos que discutem a avaliação de contatos de hanseníase no contexto das áreas rurais no país, sob diferentes níveis de cobertura da APS. O estudo da Bahia, já citado, verificou tendência de aumento da proporção de contatos examinados, com menor expressão quando o caso-referência de hanseníase vivia em cidade de pequeno porte populacional.22,28 Considerando-se que as ações de vigilância devem acontecer, prioritariamente, no âmbito da atuação das equipes da APS, e dada sua cobertura satisfatória - e capilaridade - em grande parte dos municípios de pequeno e médio porte, torna-se essencial aprofundar a análise de possíveis fatores associados ao desempenho insatisfatório das ações de vigilância em hanseníase. É mister entender em que medida o desenvolvimento dessas ações faz parte da rotina das equipes de saúde, no processo de monitoramento e avaliação da hanseníase no estado do Ceará. Da mesma forma, é de importância estratégica compreender eventuais aspectos socioculturais capazes de interferir na busca ou não do cuidado à saúde, nas comunidades rurais.29
O estudo revelou associação entre a não avaliação de todos os contatos para casos novos e a classificação operacional de hanseníase multibacilar. Do ponto de vista clínico, casos novos multibacilares revelam maior gravidade potencial da doença, além de um tempo maior de sua evolução sem diagnóstico.2 Da mesma maneira, quando a entrada do caso novo decorreu de exame de contato, verificou-se probabilidade quase 80% maior de outros contatos não serem avaliados. Uma possível consequência desses achados é a persistência de maior risco para infecção nas redes de convívio domiciliar ou social desses casos, elevando a ocorrência de sobreposição de novos casos em uma mesma família como indicador de risco acrescido.28
Um planejamento que partisse da análise desse contexto territorial poderia conduzir a um maior direcionamento de ações sobre essa realidade, na APS. Assim, sugere-se tornar este um evento sentinela, com vistas à priorização da vigilância longitudinal dos contatos de hanseníase, particularmente dos casos multibacilares e de famílias com recorrência da doença.28
Limitações fazem parte de estudos com base de dados secundários. Neste trabalho inclusive, buscou-se compreender a qualidade da informação analisada, ao se identificar, no decorrer dos 12 anos selecionados, o padrão de variáveis e indicadores referentes a contatos registrados e avaliados. Ressalta-se que, em média, quase 4% dos casos novos de hanseníase não tiveram qualquer registro de contatos em uma base de dados estadual. Considerando-se a amplitude do conceito, é preciso integrar as perspectivas de vigilância dos dados no nível local, para a adequada gestão do cuidado.30 Manter a base de dados atualizada, ao longo do tratamento do caso de hanseníase, deve merecer atenção permanente na vigilância, planejamento das ações e cuidado com essa população. Além disso, as análises temporais reafirmaram a tendência de manutenção - ou piora - de algumas dimensões de vulnerabilidade analisadas, o que reforça a relevância dos resultados desta pesquisa.
Dimensões distintas de vulnerabilidade individual e social de casos novos de hanseníase no estado do Ceará influenciam o persistente desempenho insatisfatório da avaliação de seus contatos. Aspectos operacionais das ações de vigilância de contatos reforçam que o controle da hanseníase passa por um processo de qualificação e desenvolvimento de estratégias mais contextualizadas, segundo diferentes territórios, e no próprio Sistema Único de Saúde no nível local. O ‘Plano Integrado de Atenção e Vigilância para o Enfrentamento da Hanseníase no Ceará, 2019-2022’ reafirma a importância da qualificação e desenvolvimento de ações mais contextualizadas às realidades municipais.12
O impacto negativo no controle da doença confirma para o estado do Ceará o desafio de qualificar sua rede de atenção à saúde no desenvolvimento das ações de vigilância em hanseníase; e repensar estratégias visando reduzir desigualdades, de todas as naturezas, além de significar as características sociodemográficas e clínicas da população enquanto fatores determinantes da vulnerabilidade à doença. A hanseníase, a exemplo de outras enfermidades tropicais negligenciadas, demanda mudanças estruturais em sua vigilância, a que se deve somar o compromisso ético de pesquisadores, gestores, profissionais de saúde e da comunidade, com a defesa e promoção da Saúde Pública.