O acometimento de crianças e adolescentes pela COVID-19, quando comparados ao de adultos, tem menor impacto. Estima-se que os casos na faixa etária pediátrica representem 1 a 5% do total de casos confirmados. Apesar de predominarem as formas clínicas mais leves ou assintomáticas entre crianças e adolescentes, eles não estão isentos da ocorrência de formas mais graves, como a síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) associada à COVID-19, possíveis e importantes causas de morbimortalidade nessa população. Ressalta-se, ademais, os casos de COVID-19 longa e suas consequências, especialmente nos aspectos cognitivo, nutricional e de segurança.1
Diante de tal cenário, o presente artigo objetivou discutir a importância da vacinação para COVID-19 na faixa etária pediátrica e a necessidade de acompanhamento dos possíveis eventos adversos.
Epidemiologia
Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, dos 1.487.502 casos de SRAG registrados até 18 de setembro de 2021, 73,5% (1.093.423) foram confirmados para COVID-19; destes, 17.299 eram crianças e adolescentes, precisamente a faixa etária de 0 a 19 anos, correspondendo a 1,6% do total de casos da doença no país. Foram registrados 1.245 óbitos nessa faixa etária, 0,4% dos 346.554 óbitos por SRAG no Brasil até aquela data.3
Em relação aos casos de SIM-P ocorridos entre junho de 2020 e 18 de setembro de 2021, foram notificados 2.264 casos suspeitos temporalmente associados à COVID-19 em crianças e adolescentes. Após investigação pelas vigilâncias epidemiológicas, 1.307 (57,7%) casos foram confirmados para SIM-P e destes, 81 evoluíram a óbito (letalidade de 6,2%), 1.080 receberam alta hospitalar e 146 permaneciam com o desfecho em aberto, até 12-18/09/2021 (Semana Epidemiológica 37).3
Outro aspecto importante a destacar são as evidências de persistência de sintomas (COVID-19 longa) em crianças e adolescentes após a fase aguda da doença. Fadiga, cefaleia, sonolência, perda de concentração e anosmia têm sido frequentes.2
Ainda que os fatores de risco para complicações da COVID-19 em crianças e adolescentes não estejam bem definidos, sugere-se a existência de grupos mais vulneráveis. Estudo brasileiro avaliou mais de 10 mil crianças e adolescentes hospitalizados pela COVID-19 e identificou que aqueles até 2 anos e com 12 ou mais anos de idade apresentaram risco duas vezes maior de infecção, comparados às crianças de 2 a 11 anos.4 Condições médicas pré-existentes, região geopolítica e etnia indígena revelaram-se fatores associados a maior risco de morte por COVID-19.4
Determinadas características sociais, econômicas e demográficas, além da presença de comorbidades, também se mostram associadas a maior gravidade da doença em crianças. Nos Estados Unidos, para os óbitos por COVID-19 em maiores de 21 anos, as comorbidades associadas, em ordem de frequência, foram: obesidade; asma ou hiper-reatividade brônquica; e doenças neurológicas.5Importante ainda destacar que a mortalidade por COVID-19 em crianças e adolescentes no Brasil é bem superior às mortalidades correspondentes nos Estados Unidos e no Reino Unido.4
Com o desenvolvimento acelerado das vacinas para COVID-19 e sua aplicação na população adulta, os estudos com adolescentes e crianças passaram a ser uma consequência natural desse processo. Segundo Plotkin e Levy,6 há razões práticas, imunológicas, éticas e sociais para justificar a vacinação de crianças e adolescentes. No entanto, entende-se que o uso de vacinas para COVID-19 nesse grupo deve ter como base estudos que preencham os requisitos exigidos para o licenciamento de uma vacina, ou seja, imunogenicidade, eficácia e segurança.6
Vacinas para COVID-19 em crianças e adolescentes
No Brasil, até o momento da aprovação deste artigo para publicação, a única vacina licenciada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso em adolescentes com 12 anos ou mais é a produzida pelo laboratório Pfizer-BioNTech, com a tecnologia de RNA mensageiro (RNAm) como plataforma de desenvolvimento.7 O conceito dessas vacinas de nanopartículas é relativamente novo: o RNAm que codifica a proteína Spike do SARS-CoV-2 é injetado no indivíduo e este, endogenamente, produz o antígeno viral, induzindo resposta imune.8
Em relação às crianças, não há, entretanto, vacina licenciada para uso no Brasil. Há estudos em andamento mas os ensaios clínicos de fase 3 precisam ser concluídos, para garantir que as vacinas sejam seguras e eficazes nessa população.
A liberação do uso da vacina da Pfizer-BioNTech em adolescentes de 12 a 17 anos foi apoiada por estudos clínicos. Estudo realizado nos Estados Unidos, randomizado, controlado por placebo e de fase 3, avaliou a segurança, imunogenicidade e eficácia dessa vacina em adolescentes de 12-15 anos e saudáveis. Seu comparador foi uma coorte na idade de 16-25 anos, permitindo análise de não inferioridade da imunogenicidade.9 Um total de 2.260 adolescentes foram incluídos: 1.131 receberam a vacina e 1.129 o placebo. A vacina Pfizer-BioNTech BNT162b2 teve perfil de segurança e eventos adversos favoráveis, com reatogenicidade transitória leve a moderada: 79 a 86% de dor no local da injeção, 60 a 66% de fadiga e 55 a 65% de cefaleia; não foram observados eventos adversos graves relacionados à vacina. A média de títulos de anticorpos neutralizantes após a segunda dose atendeu ao critério de não inferioridade e indicou uma resposta ainda maior na coorte de 12-15 anos. A mesma pesquisa dos EUA ainda encontrou oito casos de COVID-19, todos no grupo que recebeu placebo.9 Resultados semelhantes foram obtidos de estudo clínico de fases 2 e 3, também desenvolvido nos EUA, com adolescentes de 12-17 anos que receberam a vacina de RNAm do laboratório Moderna.10
Estudos chineses de fases 1 e 2, tendo por objeto a vacina Coronavac®, aplicado com 743 crianças e adolescentes de 3-17 anos, demonstraram a segurança e imunogenicidade da vacina nessa população.11 Com base nessa publicação, o Instituto Butantan solicitou à Anvisa a autorização para o uso emergencial da vacina inativada Coronavac® na faixa etária de 3-17 anos, que não foi aceita, a princípio, considerando-se que os dados apresentados foram insuficientes para estabelecer o perfil de imunogenicidade e segurança da vacina na população pediátrica.12 No Chile, a mesma vacina foi recentemente aprovada para crianças e adolescentes maiores de 6 anos.13
Os resultados dos estudos com vacinas para COVID-19 em adolescentes têm várias implicações. A vacinação confere o benefício direto da prevenção de doenças mais os benefícios indiretos, incluindo a proteção da comunidade. Embora, geralmente, as crianças tenham uma frequência menor de COVID-19 sintomática que os adultos, as atividades escolares, a prática de esportes juvenis e outras formas de encontro da comunidade podem representar fontes importantes de surtos e transmissão, mesmo entre adultos vacinados. A vacinação de adolescentes permitirá que eles se reintegrem à sociedade e retomem o aprendizado presencial com segurança, haja vista os graves efeitos da pandemia da COVID-19 na saúde mental dessa população.9
Eventos adversos das vacinas de RNAm em adolescentes
Em maio de 2021, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC/USA) passaram a recomendar o uso da vacina de RNAm da Pfizer-BioNTech para adolescentes a partir de 12 anos. Com o monitoramento contínuo da segurança, o CDC/USA tem avaliado casos de miocardite e/ou pericardite em adolescentes e adultos jovens, após seu uso.14
Até 11 de agosto de 2021, o Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas dos Estados Unidos recebeu 1.306 notificações de miocardite ou pericardite associadas a vacinas para COVID-19. A partir do acompanhamento dos casos, foram confirmadas 760 notificações, a maioria delas referindo adolescentes do sexo masculino, maiores de 16 anos e adultos jovens (até os 30 anos), após a segunda dose da vacina e tipicamente, na primeira semana pós-vacinação. A resposta ao tratamento foi positiva e a recuperação rápida, para a maioria dos indivíduos. Os CDC/USA continuam a recomendar para adolescentes a vacina COVID-19 de RNAm da Pfizer-BioNTech, por considerar que, na situação epidemiológica atual, com a circulação da variante delta do SARS-CoV-2, mais transmissível, os benefícios da vacinação superam os riscos de quaisquer eventos adversos raros relacionados a essas vacinas.14
Recomendações do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e da Sociedade Brasileira de Pediatria
O Ministério da Saúde recomenda a vacinação contra a COVID-19 para a população de 12 a 17 anos, com ou sem comorbidades, exclusivamente pelo imunizante Comirnaty do fabricante Pfizer-BioNTech, devendo-se priorizar, inicialmente, aqueles que apresentem comorbidades.15
A Sociedade Brasileira de Pediatria, por sua vez, recomenda a aplicação da vacina COVID-19 de RNAm da Pfizer-BioNTech para todos os adolescentes com 12 anos ou mais, pautando-se em estudos clínicos sobre a aplicação da vacina nesse grupo etário, seu licenciamento pela Anvisa para uso no Brasil e a experiência de outros países.16
É importante observar: a progressão da vacinação completa de adultos faz com que os casos graves (hospitalizações e mortes) de COVID-19 tendam a se concentrar em populações não vacinadas, ocorrendo um natural desvio de faixa etária, com aumento percentual de casos na população pediátrica.
Embora, até o momento de autorização deste artigo para publicação, a vacina tenha se mostrado segura para a adolescência, recomenda-se o monitoramento contínuo de eventos adversos, com a devida notificação aos órgãos competentes.
Considera-se que a estratégia de vacinação dos adolescentes seja organizada pelos órgãos de governo, em suas diferentes esferas (federal, estadual, municipal), sequencialmente à vacinação dos adultos. Idealmente, a vacinação deve, em seus estágios iniciais, priorizar adolescentes com fatores de risco, utilizando-se de critérios semelhantes aos já adotados para adultos,17 conforme apresenta o Quadro 1.
Fatores de risco a priorizar: |
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Diabetes mellitus Doenças pulmonares crônicas Doenças cardiovasculares Doença hepática crônica Doença renal crônica Doença neurológica crônica Imunossupressão (congênita ou adquirida, incluindo HIV/aids) Hemoglobinopatias Síndrome de Down Obesidade (escore z>+3) Gestantes e puérperas |
Fonte: Adaptado do documento cientifico ‘Vacinas Covid-19 em crianças e adolescentes’, da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Conclui-se que a vacinação de adolescentes será fundamental para reduzir a transmissão da COVID-19 na população geral e proporcionar o retorno, mais seguro, às atividades escolares e sociais. Há grande potencial para que, em breve, tanto as vacinas de tecnologia de RNAm como as vacinas inativadas sejam autorizadas pela agência estadunidense Food & Drug Administration, e pela Anvisa do Brasil, para uso na pediatria. São decisões importantes no sentido de contribuir para a redução da circulação do vírus na comunidade e o efetivo controle da pandemia.