INTRODUÇÃO
Nas décadas mais recentes presenciamos uma transição na distribuição epidemiológica de neoplasias no Brasil. Ao mesmo tempo em que aumenta a incidência de alguns tipos de câncer geralmente associados ao elevado status socioeconômico (câncer de mama, próstata, cólon e reto), verifica-se a persistência de altas taxas de neoplasias normalmente associadas com a pobreza (câncer de colo uterino, pênis, estômago e cavidade oral)1.
A estimativa para 2016/2017 no Brasil aponta para aproximadamente 576.000 casos novos de câncer. O câncer de pele do tipo não melanoma (175.760 casos novos) será o mais incidente, seguido pelos tumores de próstata (61.200), mama feminina (57.960), cólon e reto (34.280), pulmão (28.220), estômago (20.520) e colo do útero (16.340). Sem considerar os tumores de pele não melanoma, o câncer cervical é o mais incidente na Região Norte do Brasil (23,97/100.000 habitantes)2.
A prevenção secundária do câncer relaciona-se à detecção de lesões pré-malignas ou malignas iniciais na ocasião em que o tratamento é potencialmente curativo. O teste de Papanicolaou representa a principal estratégia em programas de rastreamento para o controle do câncer cervical3. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma cobertura da população-alvo de no mínimo 80% e a garantia de diagnóstico e tratamento adequados dos casos alterados possibilitam reduzir em 60% a 90% a incidência de câncer uterino invasivo4. Entretanto, a maioria das capitais brasileiras não consegue atingir essa meta5.
Nos países desenvolvidos, a taxa de mortalidade por câncer uterino diminuiu mais de 80% entre 1930 e 2012, principalmente devido à assimilação generalizada do teste de Papanicolaou para a prevenção e detecção precoce do câncer cervical6. Contudo, nos países em desenvolvimento, ainda não foram alcançadas as metas de redução do número de casos.
A Casa da Mulher é uma unidade de referência secundária em oncologia mamária e ginecológica, mantida pela Prefeitura Municipal de Belém, Estado do Pará. A instituição recebe mulheres das Unidades Básicas de Saúde e Família Saudável, e realiza exames, como o Papanicolaou, para detecção precoce do câncer. Caso a neoplasia seja confirmada, a paciente é encaminhada ao hospital de referência terciária para tratamento7.
O exame de Papanicolaou permite também detectar sinais de inflamações da vulva e da vagina, contribuindo no rastreamento e detecção de vulvovaginites8. Entre as principais causas de queixas de mulheres que procuram atendimento na área de ginecologia estão as inflamações e infecções vaginais. Com frequência, nos preventivos do câncer de colo do útero (PCCU), são encontrados agentes infecciosos como o vírus Papilomavírus Humano (HPV) e a bactéria Gardnerella vaginalis.
O presente estudo teve como objetivo identificar o perfil de todos os achados microbiológicos e citopatológicos nos exames realizados pelo laboratório da Casa da Mulher, em Belém, durante o período de um ano.
MATERIAIS E MÉTODOS
Procedeu-se a um levantamento retrospectivo analítico dos resultados de exames PCCU realizados na Casa da Mulher, de setembro de 2012 a agosto de 2013. A coleta dos dados foi feita nos livros de PCCU dos anos de 2012 e 2013. As informações foram resumidas e apresentadas de acordo com a faixa etária e quanto à realização prévia do PCCU.
A publicação Nomenclatura Brasileira para Laudos Cervicais e Condutas Preconizadas: Recomendações para Profissionais de Saúde9 foi usada para classificar os resultados dos exames citopatológicos. Nesta análise, foram considerados negativos tanto os resultados classificados como normais quanto os inflamatórios. Na microbiologia foram analisadas as frequências de bactérias, leveduras e protozoários.
Os resultados que apresentaram alterações citológicas foram organizados em uma tabela na qual foram utilizadas siglas, a saber: LSIL = low-grade squamous intra epithelial lesion (lesão escamosa intraepitelial de baixo grau); HSIL = high-grade squamous intra epithelial lesion (lesão escamosa intraepitelial de alto grau); ASC-US = atypical squamous cells of undetermined significance (atipia escamosa de significado indeterminado, possivelmente não neoplásica); ASC-H = atypical squamous cells cannot exclude HSIL (atipia escamosa de significado indeterminado, não afastando lesão de alto grau); AGC-US = atypical glandular cells of undetermined significance (atipia glandular de significado indeterminado, possivelmente não neoplásica); AGC-H = atypical glandular cells cannot exclude high-grade glandular lesion (atipia glandular de significado indeterminado, não afastando lesão de alto grau); CA = carcinoma.
O software BioEstat v5.0 (Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá; Belém, Pará, Brasil) foi utilizado para as análises estatísticas: o coeficiente de correlação de Spearman (rs) para analisar correlação entre a idade das pacientes e as alterações encontradas; o teste do qui-quadrado para comparar frequências de exames alterados desta amostra com dados da literatura pertinente.
A pesquisa teve o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (CEP/ICS/UFPA) em 30 de junho de 2014 (CAAE 32587514.2.0000.0018).
RESULTADOS
No período de setembro de 2012 a agosto de 2013, foram realizados 2.202 exames PCCU na Casa da Mulher, a maior parte desses (52,36%) proveniente de mulheres na faixa dos 40 a 60 anos de idade. Por outro lado, 31,97% e 15,67% foram, respectivamente, de mulheres com menos de 40 e mais de 60 anos de idade (Tabela 1). Dessa amostra, apenas 20 mulheres nunca haviam realizado o PCCU. A faixa etária das pacientes apresentou apenas uma fraca correlação positiva (rs = 0,1429) com a frequência de achados microbiológicos e uma fraca correlação negativa (rs = -0,2571) com a frequência de alterações citopatológicas.
Faixa etária (anos) | Exames realizados | Não fizeram PCCU anteriormente | ||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
≤ 19 | 34 | 1,54 | 6 | 30 |
20-29 | 240 | 10,89 | 3 | 15 |
30-39 | 430 | 19,54 | 1 | 5 |
40-49 | 575 | 26,11 | 4 | 20 |
50-59 | 578 | 26,25 | 4 | 20 |
≥ 60 | 345 | 15,67 | 2 | 10 |
Total | 2.202 | 100,00 | 20 | 100 |
Nas análises microbiológicas foram identificadas três espécies: Gardnerella vaginalis (23,48%), Candida sp. (12,44%) e Trichomonas vaginalis (0,68%). A tabela 2 resume os resultados relativos à citopatologia, cuja prevalência de anormalidades foi de 5,72%. As ASC, identificadas em 2,588% dos exames, foram as alterações com maior incidência.
Faixa etária (anos) | ASC-US | ASC-H | AGC-US | AGC-H | LSIL | HSIL | CA | Total |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
≤ 19 | - | - | - | - | 2 | - | - | 2 |
20-29 | 3 | - | - | 1 | 6 | 2 | - | 12 |
30-39 | 10 | 1 | - | - | 7 | 13 | 1 | 32 |
40-49 | 20 | 1 | 1 | - | 12 | 1 | 1 | 36 |
50-59 | 12 | - | - | - | 9 | 3 | - | 24 |
≥ 60 | 10 | - | - | - | 7 | 3 | - | 20 |
N | 55 | 2 | 1 | 1 | 43 | 22 | 2 | 126 |
% na amostra | 2,497 | 0,091 | 0,045 | 0,045 | 1,952 | 0,999 | 0,091 | 5,720 |
ASC-US: atipia escamosa de significado indeterminado, possivelmente não neoplásica; ASC-H: atipia escamosa de significado indeterminado, não afastando lesão de alto grau; AGC-US: atipia glandular de significado indeterminado, possivelmente não neoplásica; AGC-H: atipia glandular de significado indeterminado, não afastando lesão de alto grau; LSIL: lesão intraepitelial escamosa de baixo grau; HSIL: lesão intraepitelial escamosa de alto grau; CA: carcinoma; N: número total de exames que apresentaram anormalidades citológicas, por tipo de atipia. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero não resultante de arredondamento.
DISCUSSÃO
Coelho et al10 analisaram os resultados dos exames do Município de Floriano, Estado do Piauí, no ano de 2004, e, quanto à microbiologia, evidenciaram a presença das bactérias G. vaginalis (21,67%) e Leptothrix sp. (3,37%), além de Candida sp. (16,70%) e T. vaginalis (22,38%). Em comparação aos resultados do presente estudo, não houve diferença significativa quanto às frequências de G. vaginalis e Candida sp. (p = 0,5847), porém foi altamente significativa quanto à frequência de T. vaginalis (p = 0,0001). Segundo os mesmos autores, a ausência ou a baixa frequência de T. vaginalis favorece a análise citológica, pois a infecção pelo protozoário poderia interferir no diagnóstico de atipias de significado indeterminado. As frequências de G. vaginalis e Candida sp. encontradas por Lessa et al11, em mulheres privadas de liberdade, no Estado do Ceará, também não diferiram dos resultados desse estudo (p = 0,3631).
A prevalência de anormalidades citopatológicas no presente estudo (5,72%) não difere significativamente (p = 0,7546) das relatadas em diversas publicações recentes, como Nobre e Lopes Neto12 no Amazonas (1% a 5%), Sousa et al13 no Pará (4,05%), Coelho et al10 no Piauí (5,32%) e Fonseca et al14 em Roraima (7%). Embora a porcentagem de anomalias citopatológicas nos prontuários de presidiárias reclusas no Ceará11 tenha sido um pouco maior (9,8%), não chegou a ser estatisticamente diferente dos resultados do presente estudo.
Segundo o Instituto Nacional de Câncer, as atipias escamosas de significado indeterminado representam a variedade de atipia mais comumente descrita nos laudos citopatológicos do colo uterino, ficando entre 3,5% e 5% do total de exames realizados9. No presente levantamento, a frequência ficou abaixo da média nacional. Entretanto, Sousa et al13 encontraram frequência ainda menor (1,45%) para essas atipias nos exames PCCU provenientes de 16 municípios paraenses realizados no ano de 2008 e analisados no Laboratório Central do Estado do Pará (Lacen-PA).
Na tabela 2 também são apresentadas as frequências de LSIL (1,952%), HSIL (0,999%) e carcinoma (0,091%). A proporção de lesões neoplásicas potencialmente malignas (HSIL e carcinoma) foi mais elevada em mulheres da faixa de 30 a 39 anos de idade, todas com exame prévio alterado - seja por atipia de significado indeterminado ou lesão intraepitelial.
Há ainda carência na literatura de análises que avaliem o coeficiente de correlação entre a faixa de idade das pacientes e a ocorrência de alterações citopatológicas. A partir dos resultados de Sousa et al13, foi efetuada a estatística, encontrando uma correlação negativa moderada (rs = -0,4286). No levantamento também observou-se correlação negativa, embora fraca (rs = -0,2571). Possivelmente, a diminuição da frequência de alterações com o aumento da idade nas amostras está relacionada tanto a uma vida sexual menos ativa, quanto à maior preocupação na busca de acompanhamento especializado por parte das pacientes de idades mais avançadas.
Em relação à cobertura, observou-se uma proporção de 99,09% de mulheres que relataram já ter realizado PCCU previamente. Entretanto, o que levou a maioria das pacientes da amostra à Casa da Mulher foi um exame alterado feito na Rede Básica de Saúde, de modo que a cobertura obtida não representa a real situação das mulheres em Belém.
Análises da relação do Índice de Desenvolvimento Humano com a realização de mamografia e do exame de Papanicolaou nas capitais brasileiras e Distrito Federal, em 2011, demonstraram que foram dez as capitais brasileiras que atingiram a meta de 80% para realização do Papanicolaou em algum momento da vida e apenas sete para os últimos três anos5. A capital paraense não apareceu entre as que atingiram a meta.
A promoção da saúde deve ser efetivada por meio de parcerias intersetoriais, participação popular e responsabilização coletiva pela qualidade de vida. Ainda assim, os profissionais de saúde devem conduzir a mulher no sentido de sensibilizá-la ao ato de realizar o exame preventivo, tornando uma preocupação presente no cotidiano e em suas práticas de saúde15.
CONCLUSÃO
A falha na cobertura do exame PCCU em Belém vem sendo registrada na literatura e os resultados obtidos na Casa da Mulher, de setembro de 2012 a agosto de 2013, identificaram anormalidades citopatológicas com prevalência semelhante às observadas em outras cidades que também não atingiram a metade da cobertura de 80% estabelecida pela OMS. A ampliação na cobertura do exame PCCU, no sentido da promoção da saúde da mulher, exige não apenas as atividades e decisões individuais, mas também o engajamento e interesse da sociedade civil e do Estado.