INTRODUÇÃO
A Região Amazônica permanece como área endêmica de malária no Brasil, tendo como principal agente causador o protozoário Plasmodium vivax (83,5% em 2020)1. Seus transmissores são mosquitos culicídeos do gênero Anopheles, sendo o Anopheles (Nyssorhynchus) darlingi Root, 1926 o principal vetor da região2. Todavia, existem outras espécies consideradas de importância na transmissão3,4, como o Anopheles (Nyssorhynchus) aquasalis Curry, 1932 e espécies do complexo Anopheles (Nyssorhynchus) albitarsis Lynch-Arribálzaga, 18782,3.
Em 1992, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu o diagnóstico precoce e o tratamento imediato como principais estratégias de controle da malária5, o que também foi adotado no Brasil6. Apesar dos esforços das autoridades de saúde do país para controlar e diminuir a transmissão, a oscilação anual do número de casos registrados (de 2006 a 2020, variou de 124.000 em 2016 a 539.000 em 2006)1 e a incidência parasitária anual (IPA - número de casos registrados em um ano por 1.000 habitantes), que classifica os municípios quanto ao risco de contrair malária (baixo: < 10; médio: 10 a 50; e alto: > 50), mostram que o desafio permanece. Esses dois indicadores têm sido usados como base para a estratificação da intensidade de transmissão nos municípios dos estados que formam a Região Amazônica e a tomada de decisão quanto à necessidade de introduzir ou aperfeiçoar medidas complementares, como o controle dos vetores da malária, a fim de diminuir o contato homem/mosquito.
Assim, para escolher as ferramentas a serem utilizadas no controle da transmissão vetorial, é necessário o conhecimento de algumas características das espécies dos mosquitos Anopheles presentes na localidade, tais como identificação morfológica, abundância, frequência, hábito alimentar (preferência, horário e local - peri ou intradomicílio) e taxa de infecção por plasmódio da malária humana6.
Dentre os municípios amazônicos que apresentam alto risco de transmissão, está Cruzeiro do Sul, no estado do Acre. Em 2006, o município vivenciou a pior epidemia de malária já registrada, e, ao longo dos anos, tem apresentado IPA > 50 (menor - 71,7 em 2019 e maior - 409,8 em 2006), permanecendo classificado como de alto risco1. Dessa forma, este estudo objetivou identificar espécies de mosquitos anofelinos vetores da malária no município de Cruzeiro do Sul, Amazônia brasileira, e verificar o papel das mesmas no contexto da transmissão da malária humana.
MATERIAIS E MÉTODOS
Este estudo foi desenvolvido no município de Cruzeiro do Sul (7º37'51"S, 72º40'12"W), Vale do Juruá, estado do Acre (Figura 1), com população estimada de 89.760 habitantes em 20217. Quanto ao clima, é classificado como equatorial (Af, segundo a classificação de Köppen-Geiger)8, com temperatura média de 25,1 ºC e 2.169 mm de pluviosidade média anual8. As localidades selecionadas foram indicadas pelas autoridades de saúde municipal por apresentarem transmissão de malária, e/ou serem bairros periféricos com residências próximas a coleções hídricas ou serem áreas rurais periurbanas onde são desenvolvidas atividades de piscicultura.
De 2012 a 2019, foram realizadas duas expedições de campo, uma em cada semestre, exceto nos anos de 2012, com uma expedição no segundo semestre, e 2019, com uma expedição no primeiro semestre. Os mosquitos anofelinos foram capturados em coletas de 4 h (das 18 h às 22 h) e 12 h (das 18 h às 6 h) em localidades de Cruzeiro do Sul (Quadro 1), pelo método de atração humana protegida. A cada hora de coleta, foram registradas a temperatura e a umidade relativa do ar. As coletas foram conduzidas por dois técnicos treinados e especializados e ocorreram no intra/peridomicílio. Os espécimes coletados foram acondicionados em copos entomológicos, identificados com hora, data e local de coleta e os nomes dos coletores, e transportados ao laboratório em caixas térmicas. A identificação dos mosquitos foi baseada em chaves entomológicas9,10,11,12. A detecção de infecção por plasmódios humanos foi realizada pela técnica de ELISA em placas sensibilizadas com anticorpo monoclonal anti-CSP (proteína circunsporozoítica) para os genótipos de Plasmodium vivax (VK210 e VK247), Plasmodium falciparum e Plasmodium malariae13. Como antígeno, foi utilizada a cabeça/tórax dos espécimes, os quais foram testados individualmente.
Localidades de coleta | Coordenadas geográficas | Anos das coletas |
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Mariana | 07º40'52.2"S, 72º45'34.8"W | 2012 a 2016 |
Bairro Aeroporto Velho | 07º36'00.2"S, 72º41'21.1"W | 2012 a 2017 |
Bairro Cruzeirinho | 07º38'00.2"S, 72º40'48.7"W | 2012 a 2017 |
Santa Terezinha/Igarapé Preto | 07º35'12.7"S, 72º40'53.3"W | 2012 a 2019 |
Seringal Florianópolis | 07º39'61.0"S, 72º41'22.4"W | 2013, 2015 a 2017 |
Santa Luzia | 07º31'10.2"S, 72º53'39.0"W | 2015 a 2018 |
Bairro São Cristovão | 07º35'36.1"S, 72º41'14.4"W | 2017 |
Bairro Saboeiro | 07º38'20.0"S, 72º41'04.0"W | 2018 |
Buritirana | 07º42'40.2"S, 72º42'31.0"W | 2018 |
Vila Assis Brasil | 07º36'09.1"S, 72º48'07.5"W | 2018 a 2019 |
Canela Fina | 07º32'53.8"S, 72º44'14.1"W | 2018 a 2019 |
O índice de picada em humano (IPH) foi calculado dividindo o número de espécimes coletados por viagem, pelo número de horas das coletas e pelo número de coletores (dois), e a taxa de esporozoítos, dividindo o número de espécimes infectados pelo número de espécimes coletados e multiplicado por 10014.
Este estudo foi registrado no Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (SISBIO/ICMBIO/MMA), sob a licença permanente para coleta de material zoológico número 11.192-4, pertencente à Marinete Marins Póvoa.
RESULTADOS
Nos oito anos do estudo, foram realizadas 14 expedições de campo, 65 coletas (39 de 4 h e 26 de 12 h), perfazendo um esforço amostral de 468 h, nas quais foram coletados 4.150 espécimes de anofelinos, apresentando variações anuais. Esses mosquitos foram identificados como An. darlingi (99,64%), Anopheles oswaldoi (0,15%), An. albitarsis s.l. (0,07%), Anopheles peryassui (0,05%), Anopheles mediopunctatus (0,05%), Anopheles nuneztovari (0,02%) e Anopheles triannulatus (0,02%) (Tabela 1). É importante ressaltar que, no período do estudo, os espécimes foram coletados das 18 h às 6 h, sendo o horário de maior atividade hematofágica o de 18 h às 22 h.
Ano | Número de viagens | Número de coletas | Tempo de coletas | Horas de coleta | Número de espécimes coletados | IPH | Número de espécimes coletados por espécie | Número de espécimes infectados | Taxa de esporozoíto | |||||||||
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DAR | OSW | ALB | PER | MED | NUN | TRI | PV | PF | PV | PF | Total | |||||||
2012 | 1 | 3 | 1 (4 h) 2 (12 h) | 28 h | 294 | 5,25 | 294 | - | - | - | - | - | - | 3 | - | 1,02 | - | 1,02 |
2013 | 2 | 12 | 11 (4 h) 1 (12 h) | 56 h | 1.045 | 9,33 | 1.044 | 1 | - | - | - | - | - | 11 | 3 | 1,05 | 0,29 | 1,34 |
2014 | 2 | 11 | 6 (4 h) 5 (12 h) | 84 h | 528 | 3,14 | 528 | - | - | - | - | - | - | 4 | - | 0,76 | - | 0,76 |
2015 | 2 | 9 | 5 (4 h) 4 (12 h) | 68 h | 900 | 6,62 | 897 | 1 | 1 | 1 | - | - | - | 9 | 4 | 1,00 | 0,44 | 1,44 |
2016 | 2 | 7 | 3 (4 h) 4 (12 h) | 60 h | 661 | 5,51 | 661 | - | - | - | - | - | - | 6 | 2 | 0,91 | 0,30 | 1,21 |
2017 | 2 | 7 | 5 (4 h) 2 (12 h) | 44 h | 222 | 2,52 | 221 | - | - | 1 | - | - | - | - | - | - | - | - |
2018 | 2 | 10 | 2 (4 h) 8 (12 h) | 104 h | 430 | 2,07 | 424 | 1 | 2 | - | 2 | 1 | - | 5 | - | 1,16 | - | 1,16 |
2019 | 1 | 6 | 6 (4 h) | 24 h | 70 | 1,46 | 66 | 3 | - | - | - | - | 1 | NR | NR | - | - | - |
Total | 14 | 65 | - | 468 h | 4.150 | - | 4.135 | 6 | 3 | 2 | 2 | 1 | 1 | 38 | 9 | - | - | - |
IPH: Índice de picada em humano; DAR: An. darlingi; OSW: An. oswaldoi; ALB: An. albitarsis s.l.; PER: An. peryassui; MED: An. mediopunctatus; NUN: An. nuneztovari; TRI: An. triannulatus; PV: P. vivax; PF: P. falciparum; NR: Não realizado. Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
A temperatura média registrada nos períodos de coleta foi de 27 ºC, e a umidade relativa do ar, 86%.
An. darlingi foi o mais abundante, o mais frequente (presente em todas as coletas) e o que apresentou a maior taxa de infecção, tanto pelo P. vivax quanto pelo P. falciparum. Além disso, foi encontrado em todos os horários de coleta e apresentou a maior taxa de esporozoítos (1,44% em 2015) e o maior IPH (9,33 em 2013) (Tabela 1).
DISCUSSÃO
Cruzeiro do Sul vem enfrentando, desde 2006, os desafios da transmissão ativa de malária humana em sua população, pois, embora o número de casos varie ano a ano, a IPA permanece acima de 50, o que o classifica como área de alto risco de transmissão1. Durante esse período, o município tem merecido atenção permanente dos gestores de saúde federais, estaduais e municipais em relação às medidas de controle. Essas vão desde aquelas adotadas como principais, com o diagnóstico precoce e o tratamento imediato, até as complementares, cujo alvo é a transmissão vetorial, utilizando a termonebulização extradomiciliar, borrifação intradomiciliar com cipermetrina, mosquiteiros impregnados com inseticidas de longa duração, tratamento com biolarvicida e controle ambiental dos criadouros dos mosquitos13,15.
Ainda que aplicadas as medidas recomendadas, a população continua sendo afetada pela alta incidência da doença. O município apresenta fatores que propiciam a transmissão da malária, como condição do solo, vegetação, temperatura, umidade alta e chuvas constantes, o que, somado ao comportamento humano, biologia do protozoário infectante e do vetor, explicam a manutenção da transmissão16,17,18.
Tanto a temperatura quanto a umidade relativa do ar registradas durante as coletas foram ideais para o desenvolvimento e a proliferação das espécies de mosquitos anofelinos. A pluviosidade média do município8 é mais um fator favorável. Portanto, a presença de espécies de mosquitos vetores da malária já era esperada e foi observada no presente estudo.
Além disso, deve ser considerada a relação da incidência de casos e as mudanças ambientais que ocorrem na Amazônia devido às atividades de agricultura, pecuária, extrativistas e obras de desenvolvimento urbano, que resultaram em um impacto significativo do ecossistema e favorecem o desenvolvimento e a proliferação de mosquitos vetores18,19,20. Um fato evidenciado por este estudo foi a alta densidade dos anofelinos em Cruzeiro do Sul e sua relação com a principal atividade econômica, a produção de peixes em tanques. Essa atividade é caracterizada como rural, e o movimento de pessoas entre as populações rurais e urbanas pode também favorecer a manutenção da transmissão da malária21. Esse cenário permanece e continua sendo fator importante para a elevada IPA (> 50) no município.
Neste estudo, foi verificada a baixa diversidade de espécies de mosquitos anofelinos (apenas sete), mas abundância e frequência elevadas de uma das espécies, An. darlingi, considerada como principal vetor no Brasil. Foi observada variação anual quanto a sua abundância, o que não influenciou a manutenção da transmissão, já que o número de casos permaneceu acima de 13.000 nos anos de menor densidade vetorial1, o que ratifica uma característica já apontada para essa espécie, a de manter a transmissão mesmo com baixa densidade8. Todavia, é importante considerar as limitações do método de coleta utilizado neste estudo, que foram a atração humana protegida, a percepção do coletor à presença do mosquito e a variação da atratividade dos hospedeiros humanos aos mosquitos, o que também pode explicar a variação anual observada22.
A taxa de esporozoíto inferior a 1% já foi detectada em An. darlingi em áreas de transmissão elevada no Brasil, como no estado de Rondônia23, e no Peru, em áreas emergentes de transmissão24; porém, a taxa elevada (8,5%) também já foi reportada no estado de Roraima25. Esses fatos demonstram a capacidade da espécie em perpetuar a transmissão da malária em diferentes áreas. Espécimes do An. darlingi foram encontrados naturalmente infectados em todos os anos, exceto em 2017, e a taxa de esporozoíto variou de 0,76 a 1,44, o que, mais uma vez, reafirma sua condição de principal transmissor da malária na área estudada.
Considerando as características descritas do An. darlingi, como abundância, frequência, comportamento hematofágico noturno com atividade durante todo o horário de coleta26,27, portador de infecção tanto por P. vivax quanto P. falciparum, verifica-se que o seu papel vetorial é muito importante para a manutenção da transmissão da malária em Cruzeiro do Sul. As estratégias de controle vetorial utilizadas nesse município, principalmente a borrifação intradomiciliar com inseticidas do grupo dos piretroides e o uso de mosquiteiros impregnados com inseticida de longa duração, são adequadas; porém, são necessários estudos que avaliem a possibilidade de resistência dos mosquitos aos inseticidas e a ação desses na população e no ambiente, visando seu uso racional. Além disso, outras estratégias, como o controle larvário com biolarvicidas, podem complementar as ações28.