Introdução
A sífilis ainda se constitui um grave problema de Saúde Pública por sua magnitude e transcendência, apesar da existência de medidas de prevenção e controle efetivas.1 A via sexual é a forma predominante de transmissão da doença.2 Entre as principais consequências da infecção não tratada, destacam-se a transmissão vertical do Treponema pallidum - que ocasiona a sífilis congênita - e a associação com a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV).1-3 A coinfecção entre HIV e sífilis apresenta ação sinérgica, caracterizada tanto pela elevação da transmissibilidade do HIV quanto pela evolução atípica da infecção treponêmica.2,4
As ações para a prevenção e controle da sífilis encontram-se disponíveis e são de baixo custo: uso de preservativo, detecção precoce e tratamento adequado dos infectados e de seus parceiros sexuais.2,3 Ressalta-se que essas ações apresentam relação custo-efetividade extremamente favorável.1
Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2012, aproximadamente 18 milhões de adultos apresentavam sífilis no mundo, com 5,6 milhões de casos novos ao ano.5 A OMS estabeleceu a sífilis como uma das prioridades para implantação de ações de prevenção e controle de infecções sexualmente transmissíveis (IST) nos anos de 2016 a 2021.1 Para alcançar a meta definida pela OMS de redução de 90% dos casos até 2030, foram propostas várias estratégias, entre as quais se destaca o fortalecimento das atividades de vigilância para que seja possível o monitoramento e planejamento das ações a serem organizadas.1
No Brasil, a sífilis congênita é um agravo de notificação compulsória desde 1986. No entanto, a sífilis em gestante e a sífilis adquirida tornaram-se agravos de notificação compulsória apenas em 2005 e 2010, respectivamente.6
De 2010 a junho de 2016, foram notificados 227.663 casos de sífilis adquirida em adultos no país. O estado de São Paulo foi responsável por 44% desse total, com 9.976 e 25.909 casos de sífilis adquirida notificados em 2011 e 2015, respectivamente.7
No contexto brasileiro, a elevação do número de casos de sífilis adquirida pode ter ocorrido pela redução da subnotificação de casos; ela também pode ser atribuída à influência de mudanças no cenário das práticas e comportamentos sexuais, que poderiam favorecer a vulnerabilidade das pessoas às IST. Segundo uma revisão sistemática da literatura sobre o uso de preservativo no Brasil, os estudos apontam, principalmente a partir de 2005, a estabilização ou redução na frequência do uso do preservativo masculino.8
No país, as informações disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) referentes à sífilis são os dados de identificação: sexo, idade, raça/cor da pele, escolaridade e local de moradia. Os dados relativos à confirmação laboratorial, fase da doença, comportamentos sexuais, prescrição de tratamento e presença da coinfecção com HIV ainda não estão disponíveis para todo o território nacional.6,7 Sem a coleta sistemática de informações relativas às principais exposições e à presença de coinfecção com HIV, não é possível realizar uma avaliação adequada das tendências desse agravo. Nos Estados Unidos da América (EUA)9 e Europa,10 os sistemas de vigilância epidemiológica recomendam a notificação de sífilis em adultos com dados relativos à fase da doença, monitoramento das principais exposições e da coinfecção com HIV.
De acordo com os dados disponíveis no Sinan,7 não é possível conhecer a prevalência de coinfecção entre HIV e sífilis, pois não constam dados de coinfecção nas fichas de notificação e investigação de sífilis adquirida ou de HIV/aids. Para obter essa informação, seria necessário proceder relacionamentos entre bancos de dados referentes a cada um dos agravos, utilizando-se os dados nominais - que não são disponibilizados publicamente. Assim, justifica-se a investigação da prevalência da coinfecção entre HIV e sífilis em um serviço de atenção especializada, bem como o estudo dos fatores associados, de modo a contribuir com a proposição de medidas de prevenção e controle desses agravos em nível local.
O objetivo deste estudo foi descrever as características sociodemográficas e comportamentais e identificar os fatores associados à coinfecção por HIV em casos de sífilis adquirida notificados em um Centro de Referência de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal com dados secundários, provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan.
O Centro de Referência de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids onde foi realizada a investigação é um serviço público de assistência especializada que atende demanda espontânea e referenciada de outros serviços. Esse serviço está localizado na região sudeste do município de São Paulo, capital do Estado. Ele é organizado em ambulatórios especializados, que apresentam diferentes características segundo as populações atendidas: um ambulatório para pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA), predominantemente com demanda referenciada; e um ambulatório de DST e centro de testagem e aconselhamento (CTA) para diagnóstico de infecção por HIV e IST, predominantemente com demanda espontânea.
Foram incluídos todos os casos de sífilis adquirida diagnosticados no Centro de Referência de DST e Aids com 18 anos ou mais de idade no momento do diagnóstico, notificados no Sinan em 2014.
Foram analisadas as seguintes variáveis:
a) sociodemográficas
- sexo (masculino; feminino);
- faixa etária (em anos: até 24, 25-34, 35-44 ou 45 e mais);
- escolaridade (Ensino Fundamental, Ensino Médio ou Ensino Superior completo ou incompleto); e
- raça/cor da pele (branca, preta, amarela, parda ou indígena);
b) clínica
- classificação da sífilis adquirida (primária, secundária ou assintomática);
c) laboratorial (resultados de sorologia treponêmica e não treponêmica);
d) antecedentes epidemiológicos;
e) identidade de gênero (travesti, mulher transexual ou homem transexual);
f) categorias de exposição (heterossexual, homens que fazem sexo com homens [HSH], múltiplas parceiras sexuais, uso de drogas não injetáveis, uso de drogas injetáveis);
g) tipo de ambulatório (DST/CTA; PVHA); e
h) status em relação à coinfecção por HIV (resultado sorológico de infecção pelo HIV: não reagente ou reagente).
A definição de caso de sífilis adquirida adotada foi a seguinte: indivíduo assintomático, com sorologia não treponêmica reagente com titulação acima de 1/16 e teste treponêmico reagente; ou indivíduo com evidência clínica de sífilis primária ou secundária (presença de cancro duro ou lesões compatíveis com sífilis secundária), com sorologia não treponêmica reagente com qualquer titulação e teste treponêmico reagente. A definição de caso de infecção pelo HIV seguiu o fluxograma laboratorial definido pelo Ministério da Saúde.11 Todos os resultados dos testes sorológicos e de campo escuro foram obtidos dos laudos laboratoriais realizados no mesmo centro.
Foram utilizados dados do Sinan e dados provenientes das fichas de investigação e notificação de sífilis. O Sinan é um sistema de informações de abrangência nacional, gerenciado pelo Ministério da Saúde, utilizado para a vigilância epidemiológica no país. A entrada de dados nesse sistema é de responsabilidade local; esses dados são abstraídos das fichas de investigação e notificação específicas de cada agravo ou doença, sendo posteriormente consolidados e analisados pelos níveis municipal e estadual.12 Os dados do Sinan referentes à sífilis adquirida não incorporam os antecedentes clínicos, laboratoriais e epidemiológicos, tampouco o status em relação à infecção pelo HIV; constam no sistema apenas os dados relativos às características sociodemográficas. Para completar as informações faltantes, foi utilizada uma ficha complementar aplicada na rotina do serviço de vigilância epidemiológica da unidade. Os dados de identificação foram digitados no Sinan; e os demais dados, em uma planilha do aplicativo Excel®.
Todas as informações relativas aos resultados de sorologias para sífilis e HIV foram confirmadas com a fonte laboratorial, para garantir a fidedignidade dos dados. Avaliou-se a duplicidade de casos no banco de dados do Sinan, sendo retirados os casos duplicados. As variáveis possivelmente confundidoras foram controladas por meio da análise multivariada.
Foram incluídos todos os casos de sífilis adquirida notificados em 2014.
Na análise, foram calculadas as frequências relativas e absolutas das variáveis. Calcularam-se a prevalência da coinfecção por HIV e respectivas razões de prevalência (RP) e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Empregou-se o pacote estatístico Stata® (versão 11.0) para realização das análises. Utilizou-se o modelo de regressão de Poisson, com estimativa robusta da variância, para a análise multivariada.13 O modelo multivariada foi organizado com a inclusão de todas as variáveis analisadas que apresentaram valor de p<0,20 na razão de prevalência bruta, pelo teste de Wald. Adotou-se o nível de significância de 5% para a manutenção das variáveis no modelo final; a seleção das variáveis foi feita por meio da técnica stepwise backward. As variáveis que permaneceram no modelo foram aquelas que apresentaram nível de significância inferior a 0,05 pelo teste de Wald. Para testar o potencial efeito de confundimento da variável tipo de ambulatório, foram organizados dois modelos intermediários: modelo 1 e modelo 2. No modelo 1, testaram-se as variáveis sexo, faixa etária, escolaridade e comportamento sexual; exceção foi feita para o tipo de ambulatório, o qual foi incluído no modelo 2; o modelo 3 resultou da inclusão das variáveis melhor ajustadas.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição em 28 de abril de 2015 - CAAE: 43705715.2.0000.5375 -, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Foram utilizados exclusivamente dados secundários, registrados pelo sistema de vigilância epidemiológica local, de modo que houve dispensa da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Ao todo, foram notificados 648 casos de sífilis adquirida, com predominância do sexo masculino (97,8%), faixa etária de 25 a 34 anos (40,3%), escolaridade superior completa ou incompleta (47,5%) e raça/cor da pele autorreferida branca (59,9%) (Tabela 1); 56,9% eram assintomáticos e 90,6% apresentaram resultado do teste não treponêmico maior ou igual à diluição de 1/32 (Tabela 2). Entre as características de comportamento sexual e outras vulnerabilidades, do total de casos notificados, observaram-se: 8,2% de identidade de gênero travesti/transexual, 60,6% com múltiplas parcerias sexuais no último ano, 88,1% de HSH, 44,1% de uso de drogas não injetáveis e 1,5% de uso de droga injetável no último ano (Tabela 2). A prevalência da coinfecção por HIV observada foi de 56,5% (n=366) (Tabela 3).
Características | DST/CTA a | PVHA b | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | N | % | |
Sexo | ||||||
Feminino | 11 | 3,0 | 3 | 1,0 | 14 | 2,2 |
Masculino | 351 | 97,0 | 283 | 99,0 | 634 | 97,8 |
Faixa etária (em anos) | ||||||
≤24 | 126 | 35,0 | 22 | 7,7 | 148 | 22,9 |
25-34 | 156 | 43,0 | 105 | 36,7 | 261 | 40,3 |
35-44 | 54 | 15,0 | 93 | 32,5 | 147 | 22,6 |
≥45 | 26 | 7,0 | 66 | 23,1 | 91 | 14,2 |
Escolaridade | ||||||
Ensino Fundamental | 55 | 15,2 | 27 | 9,4 | 82 | 12,7 |
Ensino Médio | 121 | 33,4 | 102 | 35,7 | 223 | 34,4 |
Ensino Superior completo ou incompleto | 161 | 44,5 | 147 | 51,4 | 308 | 47,5 |
Ignorada | 25 | 6,9 | 10 | 3,5 | 35 | 5,4 |
Raça/cor da pele autorreferida | ||||||
Branca | 196 | 54,1 | 192 | 67,1 | 388 | 59,9 |
Preta | 38 | 10,6 | 26 | 9,1 | 64 | 9,9 |
Amarela | 4 | 1,1 | 7 | 2,5 | 11 | 1,7 |
Parda | 88 | 24,3 | 53 | 18,5 | 141 | 21,8 |
Indígena | 3 | 0,8 | 4 | 1,4 | 7 | 1,0 |
Ignorada | 33 | 9,1 | 4 | 1,4 | 37 | 5,7 |
Total | 362 | 100,0 | 286 | 100,0 | 648 | 100,0 |
a) DST/CTA: Ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Centro de Testagem e Aconselhamento.
b) PVHA: Ambulatório de Pessoas Vivendo com HIV/Aids.
Características | DST/CTA a | PVHA b | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | N | % | |
Classificação clínica | ||||||
Primária | 53 | 14,6 | 28 | 9,8 | 81 | 12,5 |
Secundária | 115 | 31,8 | 80 | 28,0 | 195 | 30,1 |
Assintomática | 194 | 53,6 | 175 | 61,2 | 369 | 56,9 |
Ignorada | - | - | 3 | 1,0 | 3 | 0,5 |
Resultado da sorologia não treponêmica | ||||||
Título <1/32 | 33 | 9,1 | 28 | 9,8 | 61 | 9,4 |
Título ≥1/32 | 329 | 90,9 | 258 | 90,2 | 587 | 90,6 |
Status de sorologia para o vírus da imunodeficiência humana (HIV) c | ||||||
Não reagente | 279 | 77,1 | 2 | 0,7 | 281 | 43,5 |
Reagente | 82 | 22,7 | 284 | 99,3 | 366 | 56,5 |
Identidade de gênero | ||||||
Travesti | 25 | 6,9 | 8 | 2,8 | 33 | 5,1 |
Mulher transexual | 12 | 3,3 | 6 | 2,1 | 18 | 2,8 |
Homem transexual | 2 | 0,6 | - | - | 2 | 0,3 |
Não se aplica | 310 | 85,6 | 250 | 87,4 | 560 | 86,4 |
Ignorada | 13 | 3,6 | 22 | 7,7 | 35 | 5,4 |
Múltiplas parcerias sexuais no último ano | ||||||
Sim | 257 | 71,0 | 136 | 47,6 | 393 | 60,6 |
Não | 75 | 20,7 | 61 | 21,3 | 136 | 21,0 |
Ignorada | 30 | 8,3 | 89 | 31,1 | 119 | 18,4 |
Categoria de exposição | ||||||
Heterossexual | 53 | 14,7 | 16 | 5,6 | 69 | 10,6 |
HSH d | 306 | 84,5 | 265 | 92,7 | 571 | 88,1 |
Ignorada | 3 | 0,8 | 5 | 1,7 | 8 | 1,2 |
Uso de drogas injetáveis no último ano | ||||||
Sim | 5 | 1,4 | 5 | 1,7 | 10 | 1,5 |
Não | 281 | 77,6 | 200 | 69,9 | 481 | 74,2 |
Ignorado | 76 | 21,0 | 81 | 4,0 | 157 | 24,3 |
Uso de drogas não injetáveis | ||||||
Sim | 181 | 50,0 | 105 | 36,7 | 286 | 44,1 |
Não | 133 | 36,7 | 109 | 38,1 | 242 | 37,3 |
Ignorado | 48 | 13,3 | 72 | 25,2 | 120 | 6,0 |
Total | 362 | 100,0 | 286 | 100,0 | 648 | 100,0 |
a) DST/CTA: Ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Centro de Testagem e Aconselhamento.
b) PVHA: Ambulatório de Pessoas Vivendo com HIV/Aids.
c) Um caso com informação ignorada.
d) HSH: homens que fazem sexo com homens.
Características | Infecção por HIV (n) a | Total (n) | Percentual de infecção por HIV (%) | Razão de prevalência | IC 95% b |
---|---|---|---|---|---|
Sexo | |||||
Feminino | 3 | 14 | 21,4 | 1,00 | |
Masculino | 363 | 633 | 57,3 | 2,68 | 1,30;5,50 |
Faixa etária (em anos) | |||||
≤24 | 49 | 148 | 33,1 | 1,00 | - |
25-34 | 142 | 261 | 54,4 | 1,64 | 1,27;2,12 |
35-44 | 107 | 147 | 72,8 | 2,19 | 1,71;2,82 |
≥45 | 68 | 91 | 74,7 | 2,26 | 1,74;2,92 |
Raça/cor da pele autorreferida c | |||||
Branca | 239 | 388 | 61,6 | 1,00 | - |
Preta | 34 | 64 | 53,1 | 0,86 | 0,67;1,10 |
Amarela | 11 | 11 | 100 | 1,62 | 1,50;1,75 |
Parda | 73 | 141 | 51,8 | 0,84 | 0,70;1,00 |
Indígena | 5 | 7 | 71,4 | 1,16 | 0,72;1,86 |
Escolaridade (em anos de estudo) d | |||||
0-7 | 22 | 56 | 39,3 | 1,00 | - |
≥8 | 333 | 556 | 59,9 | 1,52 | 1,09;2,12 |
Homens que fazem sexo com homens (HSH) e | |||||
Não | 13 | 55 | 23,6 | 1,00 | - |
Sim | 349 | 585 | 59,7 | 2,52 | 1,77;3,59 |
Múltiplas parcerias sexuais no último ano f | |||||
Não | 75 | 136 | 55,1 | 1,00 | - |
Sim | 188 | 392 | 48,0 | 0,87 | 0,72;1,04 |
Uso de drogas não injetáveis no último ano g | |||||
Não | 136 | 242 | 56,2 | 1,00 | - |
Sim | 148 | 285 | 51,9 | 0,92 | 0,78;1,08 |
Classificação clínica h | |||||
Primária | 36 | 80 | 45,0 | 1,00 | - |
Secundária | 105 | 195 | 53,8 | 1,19 | 0,90;1,57 |
Assintomática | 222 | 369 | 60,2 | 1,34 | 1,03;1,72 |
Tipo de ambulatório | |||||
PVHA i | 284 | 286 | 99,3 | 1,00 | - |
DST/CTA j | 82 | 361 | 22,7 | 0,23 | 0,19;0,26 |
Total | 366 | 647 | 56,6 | - | - |
Foram excluídos desta análise casos com informação ignorada: (a) Um caso com informação ignorada; (c) 36 casos com informação ignorada; (d) 35 casos com informação ignorada; (e) 7 casos com informação ignorada; (f) 119 casos com informação ignorada; (g) 120 casos com informação ignorada; e (h) 3 casos com informação ignorada.
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
i) PVHA: Ambulatório de Pessoas Vivendo com HIV/Aids.
j) DST/CTA: Ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Centro de Testagem e Aconselhamento.
Foram identificadas diferenças entre os indivíduos, segundo o atendimento em cada um dos dois ambulatórios localizados no Centro de Referência de DST e Aids, especialmente em relação a características sociodemográficas, comportamento sexual e soropositividade para o HIV: maior frequência de casos com idade acima de 35 anos (55,6%) no ambulatório de PVHA; maior frequência de heterossexuais (14,6%); e maior frequência de uso de drogas não injetáveis (50%) no ambulatório de DST/CTA. Conforme esperado, a prevalência de coinfecção por HIV foi muito superior no ambulatório de PVHA (99,3%), sendo essa prevalência de 22,7% (82) no ambulatório de DST/CTA (Tabela 3).
As maiores RP de coinfecção por HIV encontradas em casos notificados de sífilis adquirida foram as seguintes: sexo masculino, RP=2,68 (IC95% 1,30;5,50); idade de 45 anos e mais, RP=2,26 (IC95% 1,74;2,92); escolaridade de oito anos ou mais de estudo, RP=1,52 (IC95% 1,09;2,12); HSH, RP=2,52 (IC95% 1,77;3,59); classificação clínica da sífilis assintomática, RP=1,34 (IC95% 1,03;1,72); e tipo de ambulatório de DST/CTA, RP=0,23 (IC95% 0,19;0,26) (Tabela 3).
Na análise multivariável, observou-se diferença entre os modelos: no modelo 1, foram identificadas associações relacionadas à faixa etária e à categoria de exposição HSH. Nos modelos 2 e 3, as variáveis associadas foram sexo, escolaridade, categoria de exposição HSH e tipo de ambulatório. Observou-se um efeito de confundimento das variáveis faixa etária e tipo de ambulatório. A inclusão da variável tipo de ambulatório no modelo 2 tornou visível o efeito de confundimento da variável faixa etária, dada a redução de mais de 20% na medida de associação, pois a faixa etária dos casos do ambulatório de PVHA foi mais elevada que a do ambulatório de DST/CTA. No modelo 3, as variáveis associadas de forma independente à infecção pelo HIV foram as seguintes: sexo masculino (RP=1,95; IC95% 1,05;3,61); escolaridade de oito anos ou mais de estudo (RP=0,96; IC95% 0,93;0,99); HSH (RP=1,87; IC95% 1,38;2,53); e tipo de ambulatório (RP=0,24; IC95% 0,19;0,29) (Tabela 4).
Características | Modelo 1 a | Modelo 2 b | Modelo 3 c | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Razão de prevalência bruta | Razão de prevalência ajustada | IC 95% d | Razão de prevalência ajustada | IC 95% d | Razão de prevalência ajustada | IC 95% d | |
Sexo | |||||||
Feminino | 1,00 | 1,00 | - | 1,00 | - | 1,00 | - |
Masculino | 2,68 | 2,52 | 0,95;6,59 | 1,96 | 1,07;3,59 | 1,95 | 1,05;3,61 |
Faixa etária (em anos) | |||||||
≤24 | 1,00 | 1,00 | - | 1,00 | - | ||
25-34 | 1,64 | 1,66 | 1,29;2,13 | 1,08 | 0,88;1,33 | ||
35-44 | 2,19 | 2,34 | 1,84;2,98 | 1,11 | 0,91;1,35 | ||
≥45 | 2,26 | 2,37 | 1,84;3,05 | 1,04 | 0,86;1,26 | ||
Escolaridade (em anos de estudo) | |||||||
0-7 | 1,00 | 1,00 | - | 1,00 | - | 1,00 | - |
≥8 | 1,52 | 0,95 | 0,91;1,00 | 0,96 | 0,93;0,99 | 0,96 | 0,93;0,99 |
Homens que fazem sexo com homens (HSH) | |||||||
Não | 1,00 | 1,00 | - | 1,00 | - | 1,00 | - |
Sim | 2,52 | 2,95 | 1,84;4,71 | 1,88 | 1,39;2,57 | 1,87 | 1,38;2,53 |
Tipo de ambulatório | |||||||
PVHA e | 1,00 | - | - | 1,00 | - | 1,00 | - |
DST/CTA f | 0,23 | - | - | 0,24 | 0,20;0,30 | 0,24 | 0,19;0,29 |
a) Modelo 1: incluídas as variáveis sexo, faixa etária, escolaridade e HSH - ajustadas.
b) Modelo 2: incluídas as variáveis sexo, faixa etária, escolaridade, tipo de ambulatório e HSH - ajustadas.
c) Modelo 3: incluídas as variáveis sexo, escolaridade e HSH - ajustadas.
d) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
e) PVHA: Ambulatório de Pessoas Vivendo com HIV/Aids.
f) DST/CTA: Ambulatório de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Centro de Testagem e Aconselhamento.
Discussão
No Centro de Referência de DST e Aids considerado, os casos de sífilis adquirida diagnosticados e notificados foram, predominantemente, de homens jovens, mais escolarizados, de raça/cor da pele autorreferida como branca, com múltiplas parcerias sexuais no último ano, HSH, com antecedentes de uso de drogas não injetáveis e com sorologia reagente ao HIV.
Dos casos notificados de sífilis adquirida no serviço em 2014, quase a metade apresentava idades de 25 a 34 anos, resultado que se assemelha à faixa etária mais frequente entre os casos notificados no estado de São Paulo no mesmo ano.6 No Brasil, segundo os dados de casos de sífilis adquirida notificados em 2015, 33% se referem a indivíduos na faixa etária de 20 a 29 anos.7 Nos EUA, dos casos notificados de sífilis em 2015, a maior taxa de incidência de sífilis primária e secundária em adultos ocorreu na faixa etária de 25 a 29 anos de idade (23,5 casos por 100 mil habitantes).9
Os resultados relativos à escolaridade refletem, em parte, as características do território onde se localiza o Centro de Referência de DST e Aids em questão, região sudeste do município de São Paulo. Em 2010, essa região apresentou baixíssimo índice de vulnerabilidade social.14
A elevada frequência de HSH, múltiplos parceiros sexuais e o uso de drogas não injetáveis também foram relatadas por outro estudo, conduzido no ano de 2006, em serviço semelhante localizado na região central do mesmo município de São Paulo, em que se constatou mais de 50% dos casos de sífilis em HSH,15 apontando a necessidade de intensificar as ações de prevenção das IST nesses grupos que apresentam maior vulnerabilidade.
Em estudos para estimar a prevalência de sífilis e infecção por HIV em HSH, conduzidos no Brasil em 2008 e 2009, encontrou-se elevada prevalência de sífilis na Bahia (8,8%)16 e em Minas Gerais (14%).17 Estes resultados são bastante superiores à prevalência de sífilis em puérperas com parto hospitalar, correspondente a 1%,18 apontando um risco acrescido na população HSH. Nos EUA, dos 23.872 casos notificados de sífilis primária e secundária em adultos no ano de 2015, 60% eram HSH.9
Ressalta-se que a elevada prevalência de coinfecção por HIV entre os casos de sífilis adquirida no serviço estudado aqui deve-se ao fato de muitos deles se encontrarem em seguimento no ambulatório de PVHA. A despeito da finalidade desse ambulatório, a elevada frequência de coinfecção encontrada pode retratar possíveis falhas na adesão às medidas de prevenção e, potencialmente, a ocorrência de novas exposições ao agente etiológico da sífilis.
Cerca de um quarto dos casos de sífilis adquirida atendidos no ambulatório de DST/CTA apresentava coinfecção por HIV. Essa elevada frequência, muito superior àquela estimada para a população brasileira, também se deve às características do serviço. Cabe lembrar que, por se tratar de um CTA, as pessoas recentemente expostas procuram o serviço para realização de testagem. Em estudo sobre as características pessoais e fatores associados à soropositividade para o HIV em usuários de CTA, referente ao período de 2000 a 2007, encontrou-se 7,5% de infecção pelo HIV, e uma prevalência de HIV de 11,6% entre os que apresentaram sífilis.19
As variáveis associadas independentemente à coinfecção por HIV nos casos de sífilis adquirida foram sexo masculino e HSH. As associações encontradas entre sexo masculino, HSH e coinfecção por HIV, independentemente do tipo de ambulatório, corroboram os resultados de outros estudos que mostraram risco aumentado de coinfecção por HIV em HSH. Pesquisa realizada em 2013, com 391 HSH no Rio de Janeiro, revelou prevalência de coinfecção entre HIV e sífilis de 10,8%;20 outro trabalho, este conduzido de 2008 a 2009 em Salvador, com 383 HSH, encontrou 44 destes com diagnóstico de sífilis, 22,7% apresentando coinfecção por HIV%.16 Dados de vigilância na Inglaterra, referentes ao período de 2009 a 2013, mostraram que a chance de HSH com infecção por HIV serem acometidos por sífilis é quatro vezes maior do que em outra categoria de exposição.21 Nos EUA, em 2015, 50% dos casos notificados de sífilis primária e secundária em HSH eram coinfectados por HIV.9
O presente estudo apresenta algumas limitações. A qualidade dos dados poderia estar comprometida, em face da incompletude e da inconsistência - bastante presentes, quando utilizados dados secundários. Para reduzir possíveis perdas, as informações foram conferidas com as de outras fontes. A fim de minimizar a subnotificação de casos, todos os usuários do serviço que apresentaram resultados reagentes às provas sorológicas para sífilis foram investigados e notificados.
Os resultados desta investigação apontam para a necessidade de fortalecer a oferta de ações de prevenção do HIV em HSH que procuram atenção à saúde na vigência do diagnóstico de sífilis. As diversas estratégias de prevenção disponíveis devem ser ofertadas de acordo com as exposições e vulnerabilidades da população, de forma articulada. Entre essas estratégias, destacam-se as comportamentais (distribuição de preservativos), educacionais (aconselhamento) e biomédicas (terapia com antiretrovirais pré [PrEP] e pós-exposição [PEP] ao HIV).21-25
A política brasileira de enfrentamento ao HIV e aids adota a estratégia da prevenção combinada, por compreender que as diversas estratégias de prevenção devem oferecer oportunidade de escolha da ferramenta de prevenção mais apropriada.26
Nesse serviço estudado em 2014, os HSH notificados com sífilis adquirida foram desproporcionalmente afetados pela coinfecção por HIV. A possibilidade de oferta de ações de prevenção combinada, conforme preconizado na política brasileira de enfrentamento ao HIV e aids para os serviços de atenção especializada às IST e aids, possibilitaria a redução da vulnerabilidade dessa população.
Nas recomendações do ‘Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) de Risco à Infecção pelo HIV’,26 consta a indicação da PrEP como um dos componentes das ações de prevenção combinada. A presença de IST recorrentes em HSH constitui um dos critérios para oferta dessa estratégia de prevenção no Brasil26 e nos EUA.27 Portanto, recomenda-se que a presença de infecções sexuais bacterianas em HSH, assim como em outras populações com risco acrescido, seja um dos critérios de eleição para a instituição da PrEP.26
Em conclusão, a análise da prevalência de coinfecção por HIV em pacientes com sífilis adquirida e seus fatores associados pode contribuir para a formulação de medidas de prevenção da infecção por HIV em populações que frequentam serviços especializados de IST e aids. Estudos futuros devem aprofundar o conhecimento dos diferentes perfis da coinfecção entre HIV e sífilis em outros cenários de atenção às IST e aids.