Introdução
Estimativas globais, regionais e nacionais sobre os indicadores de saúde são importantes para se avaliar e monitorar o progresso dos países e para se orientar a alocação de recursos na perspectiva da saúde pública.1,2 Entretanto, essas estimativas geralmente escondem diferenças substanciais entre subgrupos populacionais.2-4 Além disso, a promoção da igualdade entre estes subgrupos, priorizando a melhora dos indicadores entre os mais desfavorecidos, pode ser considerada uma estratégia eficiente para melhorar os indicadores nacionais.4-7 Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pelas Nações Unidas em 2015, sobre as bases dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), enfatizam a importância da cobertura universal de saúde e do enfrentamento das desigualdades.5
Cabe mencionar que, apesar de muitas vezes serem apresentados como sinônimos, desigualdade e iniquidade são conceitos distintos. Desigualdades em saúde se referem a quaisquer diferenças observáveis entre subgrupos (de nível econômico, escolaridade, local de residência, sexo, entre outras) dentro de uma população.4,8 Por sua vez, iniquidades são diferenças (ou desigualdades) consideradas injustas a partir de um juízo de valor.3,8 Nesse sentido, embora o foco em saúde pública seja o combate às iniquidades, cabe inicialmente aos pesquisadores a busca por evidências de desigualdades entre os subgrupos populacionais.
Diversos são os métodos e estratégias utilizados na literatura para descrever e analisar a distribuição dos problemas de saúde com foco em desigualdades.4 O principal objetivo é identificar os grupos mais vulneráveis (ou menos favorecidos), que devem ser priorizados em intervenções de saúde pública.3,4 As desigualdades de sexo e/ou gênero, raça/etnia/cor da pele, nível econômico, escolaridade, área de residência (urbana e rural) e região geográfica estão entre as mais usualmente estudadas.4
O Brasil, especificamente, apresenta desigualdades sociais históricas bastante expressivas.9,10 Isso se reflete na saúde da população brasileira, fazendo com que os determinantes sociais de saúde sejam grandes protagonistas neste contexto.10,11 Na saúde da mulher e da criança, por exemplo, as evidências sobre os avanços conquistados a partir da década de 1990 são indiscutíveis, mas grandes desigualdades de acordo com a área de residência, nível econômico e região geográfica ainda persistem.12-15 Nesse sentido, é de extrema importância que as evidências de desigualdades em saúde sejam apresentadas e levadas em consideração no embasamento de políticas públicas.10
Assim, aspectos metodológicos de análise e descrição das desigualdades em saúde, já bastante debatidos na literatura internacional, merecem ser destacados para a produção do conhecimento em âmbito nacional. O objetivo deste artigo é apresentar os principais métodos de mensuração e monitoramento das desigualdades sociais em saúde e ilustrar suas aplicações práticas, utilizando como exemplo dados de cobertura e qualidade do cuidado pré-natal no Brasil, provenienes da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS-2006) e da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-2013).
Métodos para mensuração de desigualdades em saúde
Foram revisados os principais métodos de mensuração de desigualdades em saúde encontrados na literatura.16,17 Para exemplificar a mensuração e interpretação das desigualdades em saúde, bem como sua evolução ao longo do tempo, foram utilizados dados secundários de dois inquéritos brasileiros com representatividade nacional: a PNDS de 2006 e a PNS de 2013.
A PNDS 2006 está inserida na 5ª Fase do projeto Measure DHS (Demographic and Health Survey),18 conduzido em países de baixa e média renda e com foco em saúde e nutrição de mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) e de crianças menores de 5 anos.19 A PNS é um inquérito de âmbito nacional que contempla a saúde dos adultos brasileiros maiores de 18 anos e que apresenta características metodológicas semelhantes às da PNDS. Ambos os inquéritos foram realizados com amostragem em múltiplos estágios e conduzidos de forma semelhante, o que favorece a sua comparabilidade.20 Foram incluídas nas análises informações referentes a mulheres com idades entre 18 e 49 anos que tiveram filhos nos dois anos anteriores aos inquéritos. Entre aquelas mulheres com mais de um filho no período em análise, apenas as informações referentes à última gestação foram consideradas. Assim, a amostra analisada foi composta por 1.440 mulheres na PNDS e 1.918 na PNS.
Utilizaram-se indicadores de qualidade do cuidado pré-natal presentes nos dois inquéritos para ilustração dos métodos. Os indicadores utilizados foram a realização de seis ou mais consultas de pré-natal ao longo da gestação e a qualidade do cuidado pré-natal. O número de consultas foi categorizado (<6 ou ≥6) de acordo com a atual recomendação do Ministério da Saúde.21 A qualidade do cuidado foi definida como a realização de seis procedimentos que são preconizados para um pré-natal adequado21 e que estavam disponíveis de forma padronizada nos dois inquéritos: (i) seis ou mais consultas de pré-natal; (ii) primeira consulta realizada no primeiro trimestre de gestação; (iii) pressão arterial aferida em pelo menos uma consulta; (iv) peso mensurado em pelo menos uma consulta; (v) realização de exame de sangue; e (vi) realização de exame de urina. Apenas as mulheres que reportaram a realização de todos esses seis procedimentos foram consideradas como tendo um pré-natal de qualidade adequada.
As proporções de mulheres que realizaram seis ou mais consultas de pré-natal e que tiveram acesso ao cuidado pré-natal de qualidade foram calculadas em nível nacional e, para identificação das desigualdades, por subgrupos, de acordo com a área de residência (urbana ou rural) e os quintis de riqueza domiciliar.
Os quintis de riqueza foram calculados a partir de informações específicas de cada inquérito sobre posse de bens e características do domicílio, utilizando-se análises de componentes principais (ACP). Na PNDS (2006), as variáveis utilizadas foram o sistema de abastecimento de água e eletricidade, número de cômodos, existência e tipo banheiro no domicílio, material de construção da casa (telhado, piso e paredes), empregada doméstica, posse (quantidade) de utensílios domésticos (rádio, televisão, videocassete/DVD, telefone, geladeira, freezer, aspirador de pó, máquina de lavar), acesso à internet e posse de carros. Na PNS (2013), as informações disponíveis e utilizadas se referiam, novamente, ao material de construção da casa, existência de empregada doméstica, posse de carro e utensílios domésticos (televisão, DVD, telefone celular, computador, geladeira, micro-ondas e máquina de lavar). Em cada inquérito, os escores dos domicílios resultantes da ACP foram divididos em quintis, nos quais o quintil 1 (Q1) representa os 20% dos domicílios que se encontram no extremo da distribuição com piores condições socioeconômicas, e o quintil 5 (Q5), os 20% dos domicílios com melhores condições socioeconômicas. Mulheres que tiveram filhos nos últimos dois anos foram categorizadas de acordo com a classificação de seus domicílios e referidas, por simplificação, como 20% mais pobres (Q1) e 20% mais ricas (Q5). Salienta-se que as variáveis área de residência e quintis de riqueza são chamadas variáveis de estratificação, pois nos permitem dividir a amostra em grupos (ou estratos), para discriminação dos resultados de acordo com cada um destes grupos e comparação entre eles.
Os procedimentos analíticos que identificam e descrevem as desigualdades entre os grupos serão descritos a seguir, juntamente com a apresentação dos resultados.
Aplicações: mensuração, descrição e interpretação de desigualdades em saúde
A Tabela 1 apresenta a proporção de mulheres que realizaram pelo menos seis consultas de pré-natal e que apresentaram qualidade adequada das consultas durante a gestação. Também são apresentadas as estimativas estratificadas por área de residência e quintis de riqueza, bem como medidas absolutas e relativas de desigualdade. Em 2006 e 2013, 76,9% (IC95% 72,8; 81,0) e 81,6% (IC95% 78,8; 84,5) das mulheres entrevistadas realizaram, respectivamente, pelo menos seis consultas de pré-natal, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde. Em relação à qualidade das consultas de pré-natal, um aumento foi encontrado: em 2006, 60,6% (IC95% 56,6; 64,6) das gestantes realizaram pré-natal com qualidade adequada, enquanto em 2013 este percentual foi de 73,9% (IC95% 70,6; 77,3).
Estratificador | Pelo menos seis consultas de pré-natal | |||||
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2006 | 2013 | |||||
n | (%) | IC 95% a | n | (%) | IC 95% a | |
Nacional | 1.440 | 76,9 | 72,8: 81,0 | 1.918 | 81,6 | 78,8: 84,5 |
Rural | 263 | 67,5 | 61,7: 73,4 | 303 | 73,8 | 65,7: 81,9 |
Urbano | 1.178 | 79,0 | 74,2: 83,8 | 1.615 | 83,1 | 80,1: 86,1 |
Diferença urbano-rural | - | 11,5 | 3,8: 19,2 | - | 9,3 | 0,5: 18,1 |
Razão urbano/rural | - | 1,2 | 1,0: 1,3 | - | 1,1 | 1,0: 1,3 |
Q1 (20% mais pobres) | 411 | 67,3 | 61,7: 72,8 | 525 | 66,1 | 59,4: 72,7 |
Q2 | 378 | 72,3 | 63,4: 81,2 | 372 | 81,9 | 75,4: 88,3 |
Q3 | 263 | 79,1 | 69,5: 88,8 | 339 | 86,9 | 81,8: 91,9 |
Q4 | 239 | 90,8 | 83,6: 98,1 | 351 | 89,6 | 84,6: 94,6 |
Q5 (20% mais ricos) | 150 | 88,7 | 78,2: 99,1 | 331 | 92,2 | 88,3: 96,0 |
Diferença Q5-Q1 (p.p.)b | - | 21,4 | 8,3: 34,5 | - | 26,1 | 18,3: 33,9 |
Razão Q5/Q1 | - | 1,3 | 1,1: 1,5 | - | 1,4 | 1,2: 1,6 |
CIXc | - | 7,1 | 4,7: 9,4 | - | 7,0 | 4,9: 9,2 |
SIId (p.p.)b | - | 31,2 | 19,9: 42,5 | - | 34,2 | 24,3: 44,1 |
Estratificador | Cuidado pré-natal adequado | |||||
2006 | 2013 | |||||
n | (%) | IC 95% a | n | (%) | IC 95% a | |
Nacional | 1.440 | 60,6 | 56,6: 64,6 | 1.851 | 73,9 | 70,6: 77,3 |
Rural | 263 | 56,4 | 50,9: 61,9 | 293 | 66,2 | 57,8: 74,6 |
Urbano | 1.178 | 61,6 | 56,8: 66,3 | 1.558 | 75,4 | 71,8: 79,0 |
Urbano-rural | - | 5,2 | -2,2: 12,6 | - | 9,2 | 0,0: 18,5 |
Urbano/rural | - | 1,1 | 1,0: 1,2 | - | 1,1 | 1,0: 1,3 |
Q1 (20% mais pobres) | 411 | 51,3 | 45,2: 57,3 | 496 | 60,3 | 53,5: 67,1 |
Q2 | 378 | 56,1 | 46,7: 9,3 | 358 | 74,4 | 67,5: 81,3 |
Q3 | 263 | 62,9 | 53,3: 9,6 | 332 | 77,7 | 70,8: 84,6 |
Q4 | 239 | 70,9 | 62,2: 8,7 | 345 | 79,6 | 72,4: 86,8 |
Q5 (20% mais ricos) | 150 | 77,3 | 66,8: 10,5 | 322 | 84,5 | 77,2: 91,9 |
Q5-Q1 (p.p.)b | - | 26,0 | 12,7: 13,3 | - | 24,2 | 14,1: 34,3 |
Q5/Q1 | - | 1,5 | 1,2: 0,3 | - | 1,4 | 1,2: 1,6 |
CIXc | - | 9,1 | 6,0: 12,1 | - | 6,8 | 4,1: 9,5 |
SIId (p.p.)b | - | 29,6 | 18,8: 40,4 | - | 29,5 | 18,1: 41,0 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
b) p.p.: pontos percentuais.
c) CIX: Concentration Index, ou índice de concentração.
d) SII: Slope Index of Inequality, ou índice absoluto de desigualdade.
No entanto, destaca-se novamente que estimativas nacionais podem esconder importantes desigualdades entre subgrupos, tanto em uma descrição do panorama atual, quanto na descrição de suas evoluções ao longo do tempo. Essas desigualdades podem ser expressas tanto na forma de medidas absolutas como relativas,17 conforme descrito a seguir.
Medidas de desigualdade absoluta
A desigualdade absoluta é calculada como a diferença das medidas de ocorrência (prevalência, incidência, mortalidade) entre grupos, ou seja, através da subtração dos valores extremos, e é expressa em pontos percentuais (p.p.) ou segundo o mesmo fator multiplicador do indicador - por exemplo, por 1.000, por 10.000 etc. Dois exemplos amplamente utilizados são a diferença de prevalências entre os 20% mais ricos (Q5) e os 20% mais pobres (Q1), ou a estimativa do indicador na área urbana subtraída pela estimativa do mesmo indicador na área rural.
O Slope Index of Inequality (SII), ou índice absoluto de desigualdade, é outra medida de desigualdade absoluta, usada especificamente para variáveis de estratificação que sejam ordinais (geralmente indicadores econômicos como grupos de renda, de índices de riqueza ou de escolaridade). Ele representa a diferença absoluta, em valores preditos, de um indicador de saúde entre os indivíduos mais favorecidos e menos favorecidos em termos de indicadores socioeconômicos, levando em consideração toda a distribuição do estratificador por meio de um modelo de regressão adequado.4,16,17 Dessa forma, o SII é calculado como a diferença, em pontos percentuais, entre os valores estimados para os grupos extremos da variável de estratificação. Embora o SII tenha sido concebido baseado em uma regressão linear, em geral a regressão logística é mais adequada quando se trata de indicadores de cobertura ou prevalência de desfechos de saúde, pois evita predições lineares fora do intervalo esperado para proporções (de 0 a 100).16
Quando se trata de uma proporção, tanto a diferença absoluta entre as estimativas dos grupos, quanto o SII, variam de -100 a 100 p.p., e valores próximos de zero são esperados na ausência de desigualdade. Valores positivos refletem que o indicador de saúde de interesse, quer seja cobertura de uma intervenção ou prevalência de um agravo de saúde, é mais frequente no grupo mais favorecido - por exemplo, no grupo mais rico ou com maior escolaridade. Esta é considerada uma desigualdade “pró-ricos”. Valores negativos sugerem que o indicador de saúde é mais prevalente no grupo mais desfavorecido - por exemplo, o grupo mais pobre ou com menor escolaridade -, o que configura desigualdades “pró-pobres”. Mais exemplos de diferenças e interpretação em análises de cobertura e agravos à saúde podem ser encontrados em Barros e Victora.16
Nas análises de dados realizadas no presente estudo, a estimativa da diferença absoluta entre os grupos evidenciou que a cobertura da realização de pelo menos seis consultas de pré-natal entre as mulheres residentes na área urbana, em 2013, foi 9,3 p.p. (IC95%; 0,5; 18,1) maior do que entre as residentes na área rural. A desigualdade foi ainda maior quando avaliados os quintis extremos de riqueza (Q5 - Q1), evidenciando-se que mulheres das famílias mais ricas apresentaram uma prevalência 26,1 p.p. (IC95%; 18,3; 33,9) maior do que as mais pobres. Resultados semelhantes foram encontrados nas análises de qualidade da atenção pré-natal, em 2013 (Tabela 1).
Essas diferenças entre os subgrupos também podem ser ilustradas de forma simples e clara utilizando-se os gráficos do tipo Equiplot (www.equidade.org/equiplot), apresentados nas Figuras 1 e 2. Com relação às diferenças socioeconômicas expressas nas análises por quintis de riqueza, os resultados do SII identificaram desigualdades mais acentuadas, exatamente por considerarem toda a distribuição dos dados e não apenas os grupos extremos, como exemplificado na Figura 3(A). Nesse sentido, a diferença absoluta na prevalência de pelo menos seis consultas de pré-natal entre mulheres de famílias pertencentes ao quintil mais rico e as mulheres do quintil mais pobre foi de 34,2 p.p. em 2013, conforme a Tabela 1 e a Figura 3(A).
Nota: Os pontos mostram a cobertura média em cada categoria (urbana/rural). As linhas horizontais conectam a média de cobertura em áreas urbanas (círculos cinza claro) e áreas rurais (círculos cinza escuro). A distância entre os pontos representa desigualdade absoluta. Quanto maior a linha entre os dois grupos, maior a desigualdade absoluta.
Nota: Os pontos mostram a cobertura média em cada quintil de riqueza. Q1 representa os 20% mais pobres e Q5 representa os 20% mais ricos. A distância entre os quintis 1 e 5 representa a desigualdade absoluta.
Notas:
Na Figura 3(A), os pontos mostram a cobertura média observada em cada quintil de riqueza e a linha representa os valores estimados. A diferença entre os valores extremos desta distribuição expressa o valor do SII (34,2 p.p.).
Na Figura 3(B), o CIX corresponde a duas vezes a área formada entre a curva, que expressa a cobertura observada, e a linha reta diagonal, que representa a igualdade perfeita (CIX =7,0).
As medidas de desigualdades absolutas apresentam grande potencial em termos de interpretabilidade. A “distância” entre pobres e ricos, ou o quanto seria preciso aumentar a cobertura em um determinado subgrupo para se alcançar a igualdade, é uma informação de extrema importância e fácil compreensão para gestores em saúde pública.
Medidas de desigualdade relativa
A razão entre as estimativas dos grupos extremos da variável de estratificação é a medida mais simples de desigualdade relativa. Pode ser calculada, por exemplo, dividindo-se os valores (de prevalência, cobertura etc.) correspondentes ao grupo mais rico (Q5) pelo valor do grupo mais pobre (Q1). Ela informa o percentual excedente de uma categoria com relação à outra, ou quantas vezes maior é a prevalência em um grupo comparado a outro.
Outra medida de desigualdade relativa é o Concentration Index (CIX), ou índice de concentração, que, assim como o SII, leva em consideração todas as categorias da variável de estratificação. O CIX é análogo ao índice de Gini - varia de -1 a +1, assume o zero como igualdade, e, quanto mais afastados do zero forem os valores, maior será a desigualdade relativa.16,17,22 O valor do CIX corresponde a duas vezes a área entre uma linha diagonal que representaria a igualdade perfeita entre os grupos e a curva que expressa a cobertura observada para cada percentual cumulativo da população em estudo (Figura 3(B)). Quando a cobertura é maior entre os mais ricos, a área gerada se situa abaixo da linha diagonal, e o contrário é evidenciado quando a cobertura é maior entre os mais pobres. Assim como nas medidas absolutas, quando a cobertura de uma intervenção é avaliada em relação aos subgrupos de riqueza, valores positivos indicam diferenças pró-ricos e valores negativos significam diferenças pró-pobres.16 Alguns estudos apresentam o CIX também como valores multiplicados por 100, por questões de visualização dos dados, junto a medidas de desigualdades absolutas, sem se alterar sua interpretação.
Nas análises dos dados nacionais sobre a realização de pelo menos seis consultas de pré-natal em 2013, diferenças relativas relacionadas ao número de consultas e área de residência não foram evidenciadas (razão urbano/rural: 1,1; IC95%; 1,0; 1,3), enquanto na análise do CIX, evidências de desigualdades pró-ricos foram identificadas (CIX: 7,0; IC95%; 4,9; 9,2), conforme a Figura 3(B) e a Tabela 1.
As medidas relativas têm o potencial de destacar quão desiguais são as estimativas entre os grupos, embora sejam muito sensíveis à ocorrência do desfecho em estudo. Indicadores com menor frequência podem apresentar altas desigualdades relativas, superestimando a relevância desta diferença em termos de saúde pública. De forma análoga, desfechos com prevalências elevadas podem apresentar desigualdades importantes, mas que não são captadas pelas medidas relativas. Por exemplo, uma intervenção que apresenta cobertura de 5% entre os mais ricos e 1% entre os mais pobres apresentará uma desigualdade absoluta de 4 p.p. e uma desigualdade relativa de 5 vezes (isto é, 5%/1%), ou 400% maior em direção aos ricos (isto é, [5-1] x 100%). Enquanto isso, em outra localidade onde a intervenção tem uma cobertura de 50% entre os mais ricos e 10% entre os mais pobres, a mesma desigualdade relativa de 400% será evidenciada, mas com uma desigualdade absoluta de 40 p.p. maior entre os ricos. Ambas as situações apresentam a mesma desigualdade relativa, mas representam situações bastante distintas em termos de implicações para a saúde pública. Isso não significa que a medida absoluta seja mais adequada que a relativa, ou vice-versa, mas que as duas se complementam e devem ser apresentadas conjuntamente.
Cabe ainda destacar que, para a interpretação das desigualdades absolutas e relativas, é necessário distinguir entre diferenças expressas em percentuais (%) e em pontos percentuais (p.p.). Em 2013, o percentual de mulheres que relataram pelo menos seis consultas de pré-natal foi 92,2% entre as mais ricas (Q5) e 66,1% entre as mais pobres (Q1), evidenciando uma diferença de 26,1 p.p. (diferença absoluta). A razão entre estes dois valores fornece um resultado igual a 1,4 (IC95%; 1,2; 1,6), evidenciando uma prevalência aproximadamente 40% maior entre as mais ricas (diferença relativa).
Padrões de desigualdade
Uma vez identificadas as desigualdades, sejam elas absolutas ou relativas, podem ser também estudados os padrões que essas desigualdades apresentam. Isto pode ajudar na concepção de abordagens mais eficientes, para melhorar a cobertura e reduzir tais desigualdades.16 Dois padrões são bastante comuns em países de renda média e baixa e devem ser destacados: bottom e top inequality. O padrão botton inequality, ou exclusão marginal, é identificado quando a cobertura de uma determinada intervenção atinge a maior parte da população, mas não consegue alcançar um grupo menos privilegiado, como o quintil de menor nível socioeconômico. Na prática, esse padrão é caracterizado por uma cobertura marcadamente menor no quintil mais pobre, em comparação aos demais. Por seu turno, o padrão top inequality, ou privação generalizada, apresenta o fenômeno oposto, no qual determinada intervenção que deveria atingir toda a população acaba sendo aplicada em maior magnitude para aqueles com maior nível econômico.16,22,23 Nas análises dos dados de atenção pré-natal no Brasil, é possível observar estes dois padrões (Figura 2). Em 2006, a qualidade adequada da atenção pré-natal e, principalmente, a cobertura de seis ou mais consultas, apresentaram padrão top inequality, com cobertura marcadamente maior entre os dois quintis mais ricos (40% mais ricos). Em 2013, o padrão de desigualdade se inverteu, tornando-se botton inequality, em virtude de apenas as mulheres pertencentes ao grupo mais pobres terem ficado marcadamente para trás (Figura 2). É comum se verificar este tipo de transição ao longo do tempo. Em geral, os mais ricos e mais escolarizados são os primeiros a ter acesso às intervenções, que, com o tempo, passam a contemplar os grupos mais pobres.24
Tendências das desigualdades
A avaliação de tendência das desigualdades é importante para evidenciar se as diferenças históricas entre subgrupos populacionais estão mudando ao longo do tempo. O principal método consiste na avaliação da tendência temporal de índices sumários de desigualdade (como o SII e CIX), e, nesse sentido, mais uma vez salienta-se a complementaridade das medidas absolutas e relativas.16,25 Em um cenário hipotético no qual a cobertura de determinada intervenção no início da avaliação era de 40% entre os ricos e 20% entre os pobres, uma medida relativa baseada na razão entre os dois grupos identificaria uma prevalência duas vezes maior entre os ricos, enquanto uma medida de desigualdade absoluta identificaria que os ricos apresentam uma cobertura 20 p.p. maior que os pobres. Caso a cobertura aumentasse para 60% entre os mais ricos e para 30% entre os pobres, e se fosse avaliada unicamente a evolução da desigualdade relativa, seria identificada uma estabilidade da desigualdade (a cobertura continuaria duas vezes maior entre os mais ricos). No entanto, a medida absoluta identificaria um importante aumento da desigualdade, de 20 para 30 p.p.
Outra possibilidade de avaliação da evolução das desigualdades é o estudo de tendência temporal do indicador de interesse estratificado por subgrupos populacionais. Nesse sentido, as desigualdades podem ser identificadas tanto pela diferença na magnitude de mudança da estimativa entre os grupos ao longo do tempo (por exemplo, aumento na cobertura em todos os grupos, mas com maior magnitude entre os mais pobres em comparação aos mais ricos), quanto pela existência de mudanças apenas em um grupo populacional (por exemplo, a cobertura aumenta apenas entre os mais pobres).26 Nos dois exemplos anteriores, seria observada uma redução das desigualdades. Utilizando esse método, Victora e colaboradores (2017) avaliaram a tendência temporal entre 1993 e 2014 de um indicador composto de cobertura de saúde da mulher e da criança (composite coverage index - CCI), estratificada por dois grupos de riqueza. Os autores evidenciaram que a diferença na cobertura entre ricos e pobres diminuiu mais substancialmente apenas em países de renda média, comparados aos países de renda baixa. Em países de renda média, a magnitude do aumento da cobertura deste indicador composto foi maior entre os grupos mais pobres, comparados aos grupos mais ricos.27
Nas análises sobre a atenção pré-natal no Brasil apresentadas neste artigo, não houve diferenças significativas, em termos de desigualdade relativa e absoluta, nos dois indicadores avaliados, entre os anos de 2006 e 2013 (Tabela 1).
Discussão
Os métodos de mensuração e monitoramento de desigualdades aplicados à análise da cobertura de pelo menos seis consultas de pré-natal e da qualidade adequada do cuidado durante a gestação, conforme recomendações do Ministério da Saúde, evidenciaram desigualdades nos dois anos estudados (2006 e 2013). Ademais, nenhum avanço foi evidenciado na redução da magnitude dessas diferenças, no período. No entanto, a discussão deste artigo será focada nos métodos apresentados, os quais consistiram nas principais formas de identificação e descrição das desigualdades em saúde. Medidas absolutas e relativas foram descritas e exemplificadas, bem como padrões de desigualdades e seu monitoramento ao longo do tempo.
Análises de desigualdade em saúde da mulher e da criança podem ser baseadas em indicadores simples, como a cobertura de determinada intervenção de saúde (atendimento especializado ao parto, número de consultas de pré-natal), e por indicadores compostos, como a qualidade do pré-natal. O indicador de qualidade do pré-natal, neste contexto, compilou apenas as informações acessíveis nos dois inquéritos disponíveis para o Brasil, e não teve a pretensão de contemplar todos os requisitos implicados na avaliação da qualidade do cuidado pré-natal. Apesar de suas limitações, cabe destacar que este indicador foi capaz de expressar importantes diferenças relacionadas a condições socioeconômicas e de área de residência no Brasil. Indicadores compostos tendem a ser robustos na identificação de desigualdades em saúde, uma vez que a cobertura de alguns indicadores específicos pode apresentar maior variabilidade entre os subgrupos populacionais, enquanto o conjunto desses indicadores viabiliza a identificação de um padrão. Entre os indicadores compostos de saúde da mulher e da criança, um dos mais utilizados é o CCI, indicador desenvolvido pela iniciativa Countdown to 2015.28 Este indicador composto contempla o contínuo do cuidado de saúde reprodutiva, materno, neonatal e infantil, avaliando planejamento familiar, atendimento especializado ao parto, consultas de pré-natal, vacinas (DPT3, BCG e sarampo) e cuidados para diarreia e suspeita de pneumonia.28,29
Evidências do monitoramento das desigualdades apontam para a necessidade de avaliação de suas diversas dimensões. Embora as análises originais deste estudo tenham se restringido a um indicador socioeconômico e à área de residência, diferenças entre regiões geográficas, etnias, grupos etários e categorias de sexo/gênero merecem ser estudadas. Além destes estratificadores, que são classicamente apresentados na literatura, outros podem ser utilizados de acordo com especificidades da população em estudo. O nível de empoderamento feminino em dada região, por exemplo, pode ser utilizado para avaliar a diferença no acesso a diferentes serviços e intervenções por mulheres com diferentes níveis de independência e poder de decisão.30
Com relação aos indicadores socioeconômicos, existe uma ampla gama de opções que têm sido usadas no estudo das desigualdades.30-34 Informações sobre consumo e posse de bens têm sido consideradas boas alternativas para mensuração do nível socioeconômico, tendo em vista que, em inquéritos populacionais, a renda domiciliar ou individual é de difícil mensuração. Nesse contexto, indicadores socioeconômicos baseados nos bens dos domicílios têm sido uma boa alternativa, devido a sua relativa facilidade de mensuração e comparabilidade entre diferentes populações em estudo.32,33 Por fim, outro indicador socioeconômico que é usualmente coletado em inquéritos populacionais e que pode ser utilizado em análises de desigualdade é a escolaridade. Em países de renda média e baixa, como o Brasil, quanto maior a escolaridade, maior o nível socioeconômico. No entanto, nível socioeconômico e escolaridade podem não apresentar exatamente o mesmo significado em alguns desfechos de saúde, principalmente aqueles mais influenciados pelo nível de conhecimento e acesso à informação.
Outro aspecto relevante na avaliação de desigualdades é a disponibilidade de dados, bem como a comparabilidade entre diferentes estudos. Em termos de saúde da mulher e da criança, existem séries de inquéritos padronizados que vêm sendo realizados periodicamente em países de renda média e baixa. Os Inquéritos de Demografia e Saúde (Demographic Health Surveys - DHS, disponíveis em: http://dhsprogram.com) e os Inquéritos de Indicadores Múltiplos por Conglomerado (Multiple Indicator Cluster Surveys - MICS, disponíveis em: http://mics.unicef.org) são a principal fonte de dados sobre o tema nesses países. No Brasil, dois inquéritos do tipo DHS foram realizados (1986 e 1996). Os inquéritos nacionais de saúde mais recentes (como a PNDS e PNS), embora atendam a demandas específicas do país, podem não contemplar todos os temas de saúde da mulher e da criança de relevância global, nem possibilitar a padronização necessária de diversos indicadores, impossibilitando estudos comparativos com outros países, ou mesmo pesquisas para a avaliação de tendências temporais no Brasil. Para a realização deste estudo, por exemplo, visando principalmente apresentar e discutir os principais métodos de mensuração de desigualdades em saúde, utilizamos dois inquéritos que não foram delineados com os mesmos objetivos e, assim, o processo de amostragem e a população-alvo apresentam algumas diferenças.
Considerações finais
No presente estudo, foram apresentadas diferentes abordagens para identificação e apresentação das desigualdades em saúde, sem a pretensão de se esgotarem as possibilidades de análise. Destacamos que, ao se realizar a descrição e monitoramento das desigualdades em saúde, deve ser considerada a complementariedade de medidas absolutas e relativas, para uma descrição ampla das desigualdades. A escolha da abordagem a ser utilizada deve levar em conta uma série de fatores, mas precisa ser guiada pela pergunta de pesquisa a que se pretende responder ou pela resposta imediata ao poder público que se pretende fornecer.
Medidas sumárias de desigualdade, como o SII e CIX, que levam em consideração toda a distribuição dos dados, e não apenas grupos extremos, podem ser consideradas medidas mais adequadas metodologicamente. Em contrapartida, medidas baseadas na simples razão ou diferença de grupos populacionais podem parecer demasiadamente simplificadas, mas apresentam grande vantagem na divulgação de resultados para determinados públicos, em virtude de sua fácil compreensão. Apesar do incremento da produção acadêmica/científica sobre desigualdades em saúde, o diálogo com os gestores permanece um dos principais desafios e, nesse sentido, medidas mais simples são importantes instrumentos para favorecer esta interação. Ressalta-se, por fim, que o objetivo principal do monitoramento das desigualdades em saúde, de oferecer suporte a políticas que visem reduzir a desigualdade, depende da apresentação adequada dos resultados e da interpretação rigorosa, à luz dos métodos empregados.