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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.21 n.3 Brasília set. 2012

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742012000300009 

ARTIGO ORIGINAL

 

Acidentes com produtos perigosos no Brasil, no período 2006-2009: análise dos dados dos sistemas de informações como subsídio às ações de vigilância em saúde ambiental*

 

Hazardous materials acidentes in Brazil, in the period 2006-2009: information system data analysis as support for environmental health surveillance actions

 

 

Aramis Cardoso BeltramiI; Carlos Machado de FreitasII; Jorge Huet Mesquita MachadoIII

IGerência de Contratos e Arrecadação, Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Rural, Governo do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IIIFundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: analisar os dados dos sistemas de informações sobre os acidentes com produtos perigosos (APP) notificados no Brasil, no período 2006-2009.
MÉTODOS: os dados foram organizados em três (situação, efeitos e respostas) das seis camadas utilizadas para indicadores em saúde ambiental.
RESULTADOS: foram registrados 3.601 APP no período, relacionados com exposição a produtos químicos; para morbidade, foram registrados 27.304 agravos em três bases de dados diferentes, e para mortalidade foram registrados 4.852 agravos em duas bases de dados; como respostas institucionais, a Vigilância em Saúde Ambiental relacionada ao tema foi identificada em 14 estados e no DF, e órgãos colegiados relacionados à urgências, emergências e desastres foram encontrados em 10 estados.
CONCLUSÃO: divergências de dados e ausência de análises integradas apontam para a necessária estruturação de uma interface entre os sistemas de informações para a gestão dos acidentes com produtos perigosos e o monitoramento de populações expostas.

Palavras-chave: Acidentes e Eventos com Materiais Perigosos; Vigilância de Evento Sentinela; Saúde Ambiental.


ABSTRACT

OBJECTIVE: to analyse the information system data of hazardous materials accidents (HMA) notified in Brazil, in the period 2006-2009.
METHODS: the research was based on three (situation, effects and actions) out of six data layers used to build environmental health indicators.
RESULTS: 3,601 accidents with hazardous materials were notified; concerning to morbidity, 27,304 injuries related to exposure to chemicals in three different databases were notified, and to mortality, 4,852 injuries related to exposure to chemicals in two databases were notified; in terms of Health sector response capacity, Environmental Health Surveillance on Hazardous Materials Accidents wasfound in 14 states and the Federal District, and related committees were found in 10 states
CONCLUSION: data differences and absence of integrated analysis point out the need of developing integrated and harmonized information systems to manage hazardous materials and monitoring of exposed population.

Key words: Accidents and Events with Hazardous Materials; Sentinel Surveillance; Environmental Health.


 

 

Introdução

Milhares de eventos denominados, genericamente, Acidentes com Produtos Perigosos (APP), ocorrem por ano no Brasil, com potencial de causar impactos ao meio ambiente e expor um número não estimado de pessoas aos riscos de efeitos à saúde, desde traumas e doenças a óbitos.

Os APP podem ser definidos como eventos agudos, a exemplo de explosões, incêndios, vazamentos ou emissões de um ou mais produtos perigosos com potencial de causar danos ao patrimônio, ao meio ambiente e à saúde dos seres humanos, no curto e longo prazos. São eventos que, além da possibilidade de provocar graves lesões e traumas, podem alterar determinadas situações ambientais e resultar em agravos à saúde, doenças ou óbitos, em caso de exposição.1

A exposição ocorre quando populações entram em contato com o(s) produto(s) perigoso(s) por uma ou mais vias - como a ingestão de água ou alimentos contaminados, inalação de poeiras tóxicas ou gases provenientes de vazamentos e incêndios -, lesões resultante de fragmentos de explosões ou queimaduras químicas e térmicas a partir do contato com produtos ou ondas de calor. Em determinadas situações, pode haver uma complexa combinação desses fatores. Os efeitos dessas exposições manifestam-se desde a forma subclínica até os mais intensos, como as intoxicações agudas; ou ainda, tomam a forma de doenças crônicas ou mesmo carcinogênese, mutagênese e teratogênese.1-3

As ações de resposta podem ser de curto prazo, como a recuperação ambiental do local impactado e o tratamento de pessoas afetadas, ou de longo prazo, visando à redução da vulnerabilidade das populações ao se utilizar procedimentos de controle e prevenção mais eficazes, no sentido de procurar interromper mecanismos de ocorrência dos eventos, exposição e contaminação.

Este é um tema relevante para nosso país, que se encontrava na sétima posição mundial na produção de produtos químicos4 e décimo quinto na produção mundial de petróleo em 2009.5 Entretanto, esse crescimento econômico ainda não se traduziu em sistemas de informações para notificar os APP de forma a possibilitar o estabelecimento de políticas públicas integradas, de prevenção e controle destes eventos, seus impactos ambientais e efeitos sobre a saúde.6-8

Para o setor Saúde, mais do que relevante, o tema constitui um compromisso constitucional, direito de todos e dever do Estado. Envolve a participação do Sistema Único de Saúde (SUS) no controle e na fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de produtos psicoativos, tóxicos e radioativos, além da colaboração no sentido de proteger o meio ambiente, nele compreendido o ambiente do trabalho.9 A Lei no 8.080, em seu artigo 3o, ratifica esse dispositivo ao afirmar que ao SUS compete participar, com órgãos afins, da definição de normas e mecanismos de controle de agravos sobre o meio ambiente, ou deles decorrentes, que tenham repercussão sobre a saúde humana.10

Especificamente no que tange à vigilância em saúde ambiental, a Instrução Normativa no 1 define-a como o conjunto de ações que proporcionam o conhecimento e a detecção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana. Tem a finalidade de identificar medidas de prevenção e controle dos fatores de riscos ambientais relacionados às doenças ou outros agravos à saúde, sendo a vigilância dos APP uma das linhas de ação prioritárias.11

O objetivo deste artigo é analisar dados dos setores da Defesa Civil, do Meio Ambiente e da Saúde sobre os APP, tendo como referência informações sobre a situação ambiental, exposição de populações, efeitos sobre a saúde humana e respostas/ações, de modo a contribuir para o fortalecimento da Vigilância em Saúde Ambiental (VSA).

 

Métodos

A busca de dados em diferentes sistemas de informações teve como base de referência três (situação, efeitos e resposta/ação) das seis camadas de informações que vêm sendo utilizadas na construção de indicadores em saúde ambiental, quais sejam: força motriz; pressão; situação; exposição; efeitos; e resposta/ação.14

Este modelo de camadas de informações serviu de base para a coleta e sistematização dos dados oficiais da Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec), do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ministério da Saúde (MS), de abrangência nacional, cobrindo os anos de 2006 a 2009, período para o qual se dispunha de dados de todos os sistemas de informações quando a pesquisa foi concluída. Os dados formaram as seguintes camadas de informações: eventos compondo a camada de situação ambiental; dados de morbidade e mortalidade compondo a camada de efeitos; e as informações sobre ações compondo a última camada. Dados sobre populações expostas aos APP, embora fundamentais para as ações de VSA, não se encontravam disponíveis.

A seleção dos sistemas de informações utilizados na presente pesquisa seguiu os seguintes critérios para consulta dos dados: 1) serem oficiais, objetivando a confiabilidade e segurança dos dados; 2) ter abrangência nacional, objetivando a representatividade no âmbito de todo o território nacional; 3) estarem disponíveis publicamente, na rede mundial de computadores, para todo e qualquer cidadão, objetivando a democratização no acesso às informações e principalmente à reprodutibilidade do presente estudo; e 4) serem referentes a um mesmo período (2006-2009), objetivando a comparabilidade entre eles.

Quanto aos dados de 'situação/eventos', a escolha dos sistemas de informações da Sedec15 e do Plano Nacional de Prevenção, Preparação e Resposta Rápida a Emergências Ambientais com Produtos Químicos Perigosos (P2R2) do MMA16 deve-se ao fato de serem os sistemas nacionais oficiais sobre desastres e emergências ambientais com produtos químicos perigosos, como também ao fato de abrangerem os eventos geradores de exposições - desastres humanos de natureza tecnológica reconhecidos pela Sedec; e emergências ambientais com produtos químicos perigosos reconhecidas pelo P2R2. Os dados foram sistematizados da seguinte maneira: a) número de desastres reconhecidos pela Sedec; e b) número de emergências ambientais com produtos perigosos registradas no P2R2.

Quanto aos dados de 'efeitos', foram selecionados os sistemas de informações que captam: intoxicações e óbitos atribuídos à exposição a produtos químicos industriais, registrados no Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas (Sinitox);17 intoxicações exógenas atribuídas a produtos químicos, registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan);18 internações hospitalares, registradas no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS)19 e tendo como causas a exposição ao fogo e às chamas, envenenamento, e intoxicação por exposição a substâncias nocivas; e óbitos registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)19 como causados pela exposição ao fogo e às chamas, envenenamento, e intoxicação por exposição a substâncias nocivas.

Na composição de dados de morbidade e mortalidade (intoxicações, internações e óbitos), procurou-se selecionar os efeitos que mais se aproximam dos ocasionados pelos APP. No Sinitox,17 foram obtidas informações acerca do número de intoxicações agudas e óbitos atribuídos à exposição a produtos químicos industriais. No Sinan,18 foram obtidas informações sobre o número de intoxicações exógenas atribuídas a produtos químicos. No SIH/SUS19 e no SIM,20 foram obtidas informações sobre o número de internações hospitalares e óbitos tendo como causas a exposição ao fogo e às chamas (X00-X09), envenenamento, e intoxicação acidental por exposição a substâncias nocivas (X40-X49).

Quanto às informações sobre 'respostas/ações', a busca limitou-se às informações sobre as unidades da federação que possuem Vigilância em Saúde Ambiental dos Riscos Associados aos Desastres de Origem Antropogênica, Resultantes de Acidentes com Produtos Químicos Perigosos (Vigiapp), informações essas oriundas do Inventário Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental. Com o objetivo de melhor compreender as ações públicas e sua complexidade, incluiu-se, também, informações sobre os estados que dispõem de órgãos colegiados desenvolvendo alguma ação sobre os APP, conforme publicado nos Diários Oficiais dos Estados.

Para efeitos comparativos, os dados nacionais foram complementados com dados de determinados sistemas de informações estaduais, no âmbito dos setores do Meio Ambiente e da Defesa Civil, quais sejam: 1) Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - Cetesb -,17 centro colaborador da Organização Mundial da Saúde - OMS - para emergências químicas, que disponibiliza as variáveis 'emergências químicas por atividade geradora' e 'classes de risco'; e 2) Coordenadoria Estadual de Defesa Civil do Paraná - Cedec/PR -,18 que disponibiliza dados sobre o número de acidentes com produtos perigosos notificados e dados sobre exposição humana - pessoas envolvidas, levemente feridas, gravemente feridas e óbitos.

O projeto de pesquisa, do qual resultou este artigo, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Instituto Oswaldo Cruz - ENSP/Fiocruz - em 09/10/2009, sob o Protocolo no 97/09.

 

Resultados

Os dados e informações sobre eventos/situações, efeitos e ações encontram-se sistematizados na Tabela 1. Na Figura 1, incluímos as informações complementares sobre ações nos Estado.

 

 

 

 

Em relação à situação/eventos que resultam na alteração da situação ambiental e são potencialmente geradores de exposições (Tabela 1), os dados oriundos do P2R2 totalizaram 3.601 no período, resultando em médias de 900 por ano e 75 por mês. A região Sudeste concentrou dois terços dos APP (n=2.393), com São Paulo concentrando metade desses eventos e um terço do total do país. Em relação aos estados da federação, após São Paulo, aparece Minas Gerais com 20,0% e Rio de Janeiro e Paraná com cerca de 8,0% cada um. Destaca-se ainda a Bahia com 5,0%, Espírito Santo e Rio Grande do Sul com 4,0% cada um. Somando-se os sete estados, tem-se quase 84,0% do total de eventos (n=3.010) notificados.

Os dados da Sedec demonstram não haver registro de eventos envolvendo APP reconhecido como desastre (desastre humano de natureza tecnológica), ainda que esse tipo de evento esteja incluído no âmbito de suas responsabilidades institucionais.

Em relação aos dados de efeitos, particularmente a morbidade, observou-se um quadro bastante diversificado, apresentado na Tabela 1.

Os dados do Sinitox sobre as intoxicações agudas somaram 419.865 nos quatro anos, sendo que aquelas atribuídas a produtos químicos de uso industrial totalizaram 23.724 intoxicações (5,7% do total), 51,0% delas concentradas na região Sudeste. Em relação aos estados, São Paulo concentrou 39,0% do total, seguido pelo Rio Grande do Sul com 19,0% e logo, com cerca de 5,0% cada, Distrito Federal, Goiás, Bahia e Espírito Santo.

Todavia, no que concerne à morbidade, os dados de intoxicações exógenas atribuídas a produtos químicos disponíveis no Sinan demonstraram que, dos 3.389 registros, 41,0% concentram-se na região Sul, particularmente no Rio Grande do Sul, que concentrou 86,0% dos registros e pouco mais de dois terços do total do país. A região Sudeste registrou um terço do total no período, com pouco mais da metade concentrada em São Paulo.

Sobre as internações hospitalares, os dados demonstraram que ocorreram 191, 45,0% delas no Sul, com o Paraná concentrando 93,0% das ocorrências na região. A região Sudeste registrou 30,0%, dos quais 75,0% em São Paulo.

Em relação à razão de efeitos de morbidade por APP registrados no P2R2, durante o período (2006-2009), foi de 6,6 casos no Sinitox, 0,9 no Sinan e 0,05 no SIH/SUS. Ainda em relação à razão de efeitos por APP, chama a atenção o número de casos de intoxicações por evento no Distrito Federal, que foi de 91 em todo o período no Sinitox. No Sinan, com exceção da região Sudeste que teve uma razão de 0,4 registro por evento, todas as outras tiveram uma razão superior a 1, sendo a maior a de região Sul, que foi de 2,8 por APP, destacando o estado do PR, com 4,3 por APP.

Em relação aos dados de efeitos, particularmente mortalidade, observamos também um quadro bastante diversificado apresentado na Tabela 1.

Dos 78 óbitos registrados no Sinitox, destacam-se as regiões Sudeste e Centro-Oeste, com 30,0% e 27,0% respectivamente. Em relação aos estados, Goiás sozinho concentrou o maior número, quando comparado com outros estados, 13,0% do país e 90,0% da respectiva macrorregião. Dos 4.774 registros de óbitos observados no SIM, 41,0% se concentraram na região Sudeste, sendo que quase metade destes (45,0%) ocorreram em SP. Em seguida aparecem as regiões Nordeste com 22,0% e Sul com 21,0%.

Em relação à razão dos efeitos de mortalidade por APP no período de 2006 a 2009, os resultados foram de 0,02 para os dados no Sinitox e 1,3 para os dados do SIM. Sobre os dados do SIM, o Sudeste apresentou a menor razão de óbitos por APP, com 0,7 por evento, e o Rio de Janeiro foi o único Estado a apresentar uma razão maior que um óbito por evento. A região Norte, com uma razão de 4,2 óbitos por APP, foi a que apresentou maior valor para o período.

Em relação às ações de VSA, constatou-se, de acordo com os dados apresentados na Tabela 1, que a Vigiapp se encontra estruturada em mais da metade dos estados e no Distrito Federal, totalizando 15. Na macrorregião Sudeste, todos os estados contam com Vigiapp, à exceção do Espírito Santo. Nas regiões Norte e Sul, a Vigiapp encontra-se estruturada em pelo menos dois terços dos estados, na Centro-Oeste em metade dos estados e na Nordeste em apenas um terço dos estados.

Ainda sobre às ações, constatou-se, segundo os dados apresentados na Figura 1, a existência de diversos comitês, comissões e grupos sobre o tema no país; alguns estados, inclusive, possuem mais de um. Ao todo, são dez estados que os possuem, sendo a região Sul a única onde eles se fazem presentes em todos os estados, seguida da região Sudeste, com metade dos Estados nessa condição, e a região Nordeste, com quase metade. Na região Norte, apenas o estado do Pará possui comitê.

 

Discussão

O presente estudo revelou que sete estados nos quais se concentraram 84,0% dos eventos - Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e os quatro da região Sudeste -, reuniam 51,0% da população brasileira em 2010, 72,0% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional em 2009 e 90,0% das fábricas de produtos químicos do país (n=892). Somente o estado de São Paulo concentrava 57,0% dessas fábricas.4 Esta concentração das atividades econômicas relacionadas a produtos perigosos (produção, armazenamento e transporte), em que seis desses estados estabelecem divisas e conectam-se entre si pela mesma malha viária de escoamento desses produtos, circulando entre os pólos petroquímicos de Camaçari-BA (Nordeste) e Triunfo-RS (Sul), aponta para os estados - e estradas - sob risco de maior concentração de APP.

O percentual de eventos nesses estados é relativamente compatível com o percentual de atividades envolvendo a manipulação de produtos perigosos nos mesmos estados. Não obstante, também deve-se considerar que foram encontradas limitações nos registros de APP em nível nacional, em que eventos geradores de alteração da situação ambiental resultam em exposições de populações, com potenciais efeitos sobre a saúde.

Quando comparamos com os dados de estados que possuem estrutura de defesa civil ou órgão ambiental preparados para o registro de APP, essas limitações tornam-se ainda mais evidentes.

Em relação aos dados do sistema de informações da Sedec, constata-se que, apesar de haver sido registrado grande número de desastres durante os anos de 2006 a 2009, não foi encontrado qualquer registro de evento envolvendo APP (desastre humano de natureza tecnológica). Essa ausência de registros reflete a limitação desse sistema nacional de informações, focado principalmente nas demandas de socorro aos desastres naturais e suas vítimas, independentemente de os municípios possuírem estrutura de Defesa Civil - por vezes inexistente, ou precária.21

Inclusive nos estados com estrutura de Defesa Civil e registro de APP, as limitações do nível nacional para a constituição de um sistema de informações ficam bastante evidentes. Tomemos como exemplo o estado do Paraná. De acordo com resultados de Beltrami,22 durante o ano de 2006, a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil do Paraná registrou 74 eventos, com 9 óbitos, 5 pessoas gravemente feridas, 24 levemente feridas e 77 envolvidas. Já em 2007, foram 89 eventos, com 14 óbitos, 7 pessoas gravemente feridas, 4 levemente feridas e 43 envolvidas de alguma forma nesses acidentes. Totalizou-se, nesses dois anos, 163 eventos, 23 óbitos e 40 pessoas lesionadas, resultando numa razão de 0,14 óbito por acidente (ou 1 óbito a cada 7 acidentes) e 0,24 pessoas lesionadas por acidente (ou 1 lesão a cada 4 acidentes).

Os dados do Paraná demonstram que, mesmo um estado que possui estrutura de Defesa Civil organizada para registrar dados referentes aos APP e seus efeitos sobre a saúde, tais dados não se encontram registrados no sistema de informações do nível nacional, representando muito mais um reflexo das limitações do nível nacional que da não ocorrência de eventos desse tipo, cujo registro é da responsabilidade da Sedec, segundo a Política Nacional de Defesa Civil.

Ainda em relação aos dados de situação oriundos do P2R2, se por um lado temos os registros de dados em um sistema de informações de nível nacional, esse sistema permanece com relativas limitações, possíveis de serem superadas.

Beltrami,22 ao analisar os anos de 2006 e 2007, demonstra que a partir dos dados disponíveis, não é possível concluir que o aumento de 32,0% no número de eventos registrados em 2007, frente aos dados de 2006, deve-se ao incremento real no número de acidentes ou ao provável aprimoramento nesse sistema de registro de APP, bastante abrangente e não exclusivo dos órgãos ambientais estaduais.

Tal sistema também conta com fonte os registros das defesas civis estaduais, corpos de bombeiros, polícias rodoviárias federais, policiais ambientais, Ibama, empresas de atendimento a emergências químicas, e com a Associação Brasileira de Indústrias Químicas.

E, mesmo tendo como referência um órgão ambiental estadual, integrante do sistema nacional de meio ambiente, Beltrami22 demonstrou limitações no que se refere aos registros nacionais. Comparativamente, enquanto os dados da base de dados do P2R2 apontavam que em São Paulo, durante 2006, foram 330 eventos, e em 2007, 380 APP, a atual Companhia Ambiental do Estado de São Paulo - Cetesb -, conhecida naquele período como Companhia Estadual de Tecnologia e Saneamento Básico, registrava a ocorrência de 397 eventos em 2006 (27,0% acima dos dados do P2R2) e 454 em 2007 (26,0% acima dos dados do P2R2).

O conjunto de dados sobre situação/eventos potenciais geradores de exposições demonstrou que o registro de acidentes com produtos perigosos envolve, setorialmente, situações diametralmente opostas.

No período analisado, o Decreto Presidencial no 5.376/2005, que dispunha sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil (Sindec) e previa a implantação de Sistemas de Informações sobre Desastres no Brasil (Sindesb) de forma a possibilitar que se conhecesse o perfil da ocorrência de eventos e se aprofundasse a realização de estudos epidemiológicos e, principalmente, servisse de subsídio à orientação do planejamento estratégico e ao processo de tomada de decisão, orientou a organização dos dados pela Sedec. Porém, como já se observou aqui, os únicos dados todavia disponíveis na Sedec nos dias de hoje são os desastres 'naturais' (ou de origem natural) notificados e reconhecidos por essa Secretaria envolvendo solicitação de recursos federais. Sendo assim, eventos que não envolvam tal processo e que não possuam especificação de desalojados e desabrigados, bem como afetados imediatos, acabam não sendo registrados, ainda que envolvam potenciais riscos para essas situações, com pessoas tendo de deixar habitações em áreas contaminadas ou sob risco de contrair doenças no médio e longo prazos. Apesar dessas limitações, constatou-se que no estado do Paraná, há um sistema de informações que tem primado por promover a visibilidade dos dados sobre os eventos ocorridos, incluindo os APP.

Para o setor Meio Ambiente, há o P2R2, entendido como a síntese de uma política de abrangência nacional voltada à prevenção, preparação e resposta rápida a situações emergenciais envolvendo produtos químicos perigosos. Ele foi instituído pelo Decreto Presidencial no 5.098/2004, a partir da articulação entre os ministros de Estado da Saúde, Meio Ambiente e Integração Nacional frente às dificuldades enfrentadas quando de um grande acidente químico, tendo como objetivo aproximar e estruturar respostas integrais e harmônicas, promovendo a articulação e a integração dos níveis e setores de governo, do setor privado, das representações da sociedade civil e demais atores, para a proteção da saúde humana e a qualidade ambiental. A despeito do mérito de sistematizar os dados nacionais e oferecer maior visibilidade sobre o tema, o P2R2 apresenta alguns limites e divergências em seus dados, quando comparados aos de São Paulo, um dos poucos estados da federação que não só registra esses eventos como também oferece acesso público aos respectivos dados. A Cetesb é um Centro Colaborador da OMS para emergências químicas.

Quanto aos dados do setor Saúde, também se observa sérias limitações, apesar de que, indiscutivelmente, seja o que mais possui normas e regulamentos sobre sistemas de informações.

Em relação aos dados de morbidade e mortalidade, são várias as limitações e dificuldades de harmonização entre os sistemas de informações. Os dados do Sinitox traduzem-se em ligações e atendimentos realizados pelos Centros de Informações e Assistência Toxicológica (Ciats), os quais se encontram localizados e estruturados de forma diferenciada, em universidades, unidades de saúde ou serviços de vigilância. Os dados disponíveis no Sinan representam as intoxicações exógenas atendidas em unidades de saúde, assim como os dados do SIH/SUS, os quais dizem respeito às internações atribuídas a exposições a produtos químicos. Por fim, os dados do SIM tratam dos óbitos atribuídos a estas mesmas exposições.

Constatou-se, apesar da multiplicidade de sistemas de informações que registram efeitos - envolvendo morbidade e mortalidade por intoxicações atribuídas à exposição a produtos químicos industriais (Sinitox), intoxicações exógenas (Sinan), internações e óbitos por exposição ao fogo e às chamas, envenenamentos, e intoxicação por exposição a substâncias nocivas (SIH/SUS e SIM) - não ser possível estabelecer relações diretas entre esses efeitos e os eventos envolvendo APP. Portanto, acaba sendo dificultado o relacionamento entre eventos relacionados a APP e seus efeitos à saúde humana.

Por exemplo, quando comparamos a razão de efeitos de morbidade por APP registrados no P2R2, de 6,6 casos no Sinitox, 0,9 no Sinan e 0,05 no SIH, encontramos uma diferença de 7 vezes entre os dados do Sinitox e do Sinan, de 132 vezes entre os dados do Sinitox e do SIH/SUS, e de 18 vezes entre os dados do Sinan e do SIH/SUS. Sobre a razão dos efeitos de mortalidade por APP, de 0,02 para os dados no Sinitox e de 1,3 no SIM, encontramos uma diferença de 65 vezes entre ambos.

São exemplos demonstrativos do quanto os registros de efeitos (morbidade e mortalidade) ainda estão longe de serem associados aos eventos que alteram a situação ambiental e geram exposições por substâncias químicas com potenciais danos à saúde no curto, médio e longo prazo.

As divergências ou mesmo sobreposições de dados sobre APP e seus efeitos não são exclusividades do Brasil e já tinham sido apontadas para a realidade dos Estados Unidos da América em investigações realizadas na década de 80 do século passado.23,24 Para o Brasil, temos estudos realizados na primeira década do século XXI,7,8 reafirmando os mesmos problemas de divergências nos registros de dados por diferentes instituições, tanto para os eventos como para seus impactos sobre a saúde. Nossos resultados demonstraram situações extremas em que, independentemente da responsabilidade institucional por sistemas de informações, como no caso da Sedec, há uma completa ausência de registros, ainda que órgãos estaduais do sistema se encarreguem deles e enviem-nos para o P2R2 do MMA.

Nardocci e Leal7 também tratam de divergências observadas entre notificação de acidentes e consequentes danos ao ambiente (e efeitos à saúde humana). Seus autores demonstram que, ao menos no âmbito do Estado de São Paulo, a realização desse tipo de estudo é dificultada pela baixa confiança que merecem as informações existentes, tanto pela não representatividade da realidade como pela não uniformidade nos conceitos fundamentais entre as principais instituições que participam do atendimento emergencial, nesses eventos. São limites a dificultar a realização de uma análise dos dados de forma integrada e um efetivo diagnóstico da real situação da ocorrência desse tipo de evento.

Por fim, em relação às respostas traduzidas em ações de VSA, observou-se que, apesar de a Vigiapp se fazer presente em 14 estados e no Distrito Federal, ainda restavam em 2009 12 unidades da federação onde era necessário implementar esse serviço, com destaque para aqueles dentre entre os sete estados que concentram maior número de APP, como ES e PR.

Em relação às respostas, foi possível constatar a existência de diversos comitês, comissões e grupos sobre o tema no país, que, se por um lado, convergem para aproximar os temas de urgências, emergências e desastres, por outro, tampouco demonstram relação direta com a existência de Vigiapp ou com a quantidade de eventos geradores de exposições. A situação do Espírito Santo é a mais crítica: apesar de encontrar-se entre os estados com grande número de eventos, não apresenta qualquer estrutura institucional de resposta a eles.

É notória a divergência entre os dados registrados pelos diferentes sistemas de informações, tanto no que diz respeito a eventos geradores de exposições quanto a efeitos. Os autores deste estudo compartilham a preocupação de outros autores sobre a limitação que isso significa para a formulação de políticas públicas adequadas e abrangentes, voltadas aos APP, seja nos níveis estadual ou nacional.6-8,27

Tendo Barcellos e Quitério como referência,25 pode-se considerar a exposição como o objeto central da Vigilância em Saúde Ambiental - VSA -, no sentido de se deslocar o tradicional foco dos agravos para a vigilância dos fatores coletivos de risco. Porém, do modo como estão estruturados os sistemas de informações nacionais, o que se observa são sistemas de informações que tornam a exposição o "elo perdido", não sendo ainda contemplada de forma efetiva.

O processo de tomada de decisão quando da elaboração de políticas públicas para a Saúde, especificamente em VSA, ou mesmo para outros setores, como Defesa Civil e Meio Ambiente, deveria estar apoiado em informações confiáveis para a definição de diretrizes de atuação. Logo, a ausência de dados ou mesmo existência de divergência entre eles constitui um sério fator limitante à conformação de políticas públicas setoriais e intersetoriais eficientes e adequadas. Principalmente quando consideramos que, em muitos casos, os efeitos dos APP não aparecem de modo imediato, podem levar dias, semanas, meses ou anos para se manifestar.

Os resultados deste estudo apontam o quanto urge estruturar um sistema integrado e harmonizado de informações intersetoriais, e mesmo setoriais, de forma a subsidiar as três esferas do SUS no enfrentamento dos agravos e doenças condicionadas pela complexa relação saúde-ambiente, que adquire diferentes conformações nos distintos territórios.

Como passo inicial da estruturação desse sistema integrado e harmonizado, sugere-se a identificação de "campos-chave" nos sistemas de registros atualmente existentes, que possibilitem interligar as informações sobre eventos, exposição e efeitos, permitindo, também, o acompanhamento das ações imediatas relacionadas a triagem e atendimentos às vitimas e a contenção do(s) produto(s) e consequente remedição ambiental do local impactado, bem como daquelas atividades de longo prazo, a exemplo do monitoramento da saúde de expostos no âmbito do SUS.

A Portaria no 104 do Ministério da Saúde,26 definida com base no Regulamento Sanitário Internacional 2005, define terminologias, a relação de doenças, agravos e eventos em Saúde Pública de notificação compulsória e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições dos profissionais e serviços de saúde, constituindo um indicador de avanços e possibilidades. A Portaria no 104/2006 também aponta, via ação de registro no Sinan e de investigação dos casos prescrita aos CIEVS, a possibilidade de fechamento do ciclo eventos/exposições/efeitos. Cabe, entretanto, a integração intersetorial envolvendo os órgãos ambientais e de defesa civil, para uma maior amplitude de captação dos eventos e efetivação de mecanismos preventivos.

A aprovação da Lei no 12.608, de 10 de abril de 2012, instituindo uma nova Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, autorizou a criação do sistema de informações e monitoramento de desastres, incluindo os de origem química, e constitui uma possibilidade bastante recente de se avançar nesse processo, tornando possível a colocação em prática do registro harmonizado de eventos por parte dos setores Saúde, Meio Ambiente, Defesa Civil, além de polícias rodoviárias.

 

Contribuição dos autores

Beltrami AC e Freitas CM conceberam, executaram, redigiram e revisaram o artigo. Machado JMH participou da concepção e revisão do artigo.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gerência de Contratos e Arrecadação,
Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Rural,
SAIN, s/n, Parque Rural, Brasília-DF,
Brasil. CEP: 70620-000
E-mail: aramis.beltrami@gmail.com

Recebido em 10/02/2012
Aprovado em 03/08/2012

 

*Este manuscrito tem como base os resultados do Mestrado Profissional em Saúde Pública e Meio Ambiente da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, concluído em 2009.