Introdução
Pessoas com deficiência, mesmo tendo o direito à saúde com prioridade garantido por lei, sofrem com as iniquidades em saúde.¹ Piores condições de saúde geral¹ e de saúde bucal,² e dificuldade em encontrar profissionais disponíveis para atendimento,³ aliadas a piores condições de vida,4 fazem com que a saúde bucal das pessoas com deficiência deva ser considerada como prioridade entre as ações em saúde. A questão financeira aparece como uma das principais barreiras de acesso encontradas pelas pessoas com deficiência,5 o que aponta a necessidade de adequação dos serviços públicos de saúde no Brasil, no sentido de facilitar o acesso dessa população.
Pessoa com deficiência é aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e que, ao interagir com tantas barreiras, pode ter dificultada sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdades de condições com a população geral. O Brasil segue as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) na avaliação médica e social da deficiência, levando em conta os impedimentos às funções e aqueles presentes nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação do desempenho das atividades e a restrição de participação.6
A Rede de Cuidados para a Pessoa com Deficiência no Brasil foi instituída em 2012, a partir da criação do intitulado Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) na rede pública de saúde, com o propósito de contribuir para a melhoria nos níveis de saúde desses cidadãos.7 Por meio de incentivo financeiro específico, destinado ao atendimento integral da pessoa com deficiência8 e capacitação dos dentistas e auxiliares da rede de saúde bucal,9 buscou-se ampliar o cuidado e reduzir as dificuldades de acesso das pessoas com deficiência aos serviços odontológicos.
Os serviços de saúde devem ser organizados em rede, definida por níveis crescentes de atenção e complexidade.10 Os CEOs, enquanto unidades de assistência à Saúde Pública, integram o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), qualificados como Clínica Especializada ou Ambulatório de Especialidade. O atendimento a pacientes com necessidades especiais, incluindo as pessoas com deficiência, está entre as especialidades mínimas para o credenciamento de um CEO.11 Cabe salientar que o CEO não constitui um centro de especialistas e sim de especialidades, por isso a não obrigatoriedade de seus profissionais apresentarem o título de especialista para trabalhar em um desses centros.
Diante da existência de poucos estudos no Brasil sobre a atenção especializada,12,13 ademais da ausência de pesquisas interessadas em como a rede de cuidados em saúde bucal para pessoas com deficiência está delineada, percebe-se a necessidade de mais estudos sobre o tema. O objetivo deste artigo foi descrever os serviços especializados de atenção à saúde bucal para pessoas com deficiência atendidas na especialidade Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais (PNE).
Métodos
Estudo descritivo, com dados do 1º Ciclo do Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade dos Centros de Especialidades Odontológicas (PMAQ-CEO), cujo objetivo foi estimular o acesso e a melhoria da qualidade nos CEOs.14 A pesquisa foi conduzida em todo o Brasil, nas cinco macrorregiões, incluindo tanto os serviços localizados nas capitais quanto os do interior. A coleta de dados aconteceu no primeiro semestre de 2014, mediante proposta de questionário, padronizado e testado previamente, utilizando computadores portáteis de tipo tablet.
As informações referentes ao CEO foram coletadas em duas entrevistas, com dois profissionais de cada serviço, sendo um deles o gestor responsável pelo CEO ou o profissional com maior conhecimento sobre o processo de trabalho do serviço, e o outro um cirurgião-dentista, de qualquer especialidade, que estivesse presente no momento da visita; não poderia ser o mesmo indivíduo o respondente nas duas entrevistas.
Todas as variáveis utilizadas foram coletadas na avaliação externa do PMAQ-CEO. As informações de interesse do módulo I (Observação do CEO) relacionavam-se à estrutura do serviço, e as do módulo II (Entrevista com gerente e com cirurgião-dentista do CEO), ao processo de trabalho, organização do serviço e do cuidado com os usuários.
No sentido de prevenir viés de informação e aferição, o questionário para coleta de dados foi o mesmo utilizado por todos os entrevistadores, que também contaram com a presença de um supervisor de campo. Todos passaram por treinamento de dois dias (16 horas), organizado e conduzido pelo grupo gestor responsável pela coordenação da avaliação externa, para conhecerem e se apropriarem de todas as questões contidas no instrumento, bem como se inteirarem do itinerário a ser percorrido pelos entrevistadores.15 O formulário eletrônico também foi programado para monitoramento crítico das respostas, evitando digitação inadequada.
Os CEOs habilitados pelo Ministério da Saúde em 2013 (momento da adesão ao PMAQ-CEO) receberam a visita do avaliador externo, constituindo um censo de todos os serviços no Brasil. Foram excluídos CEOs que estavam fechados, em reforma, desabilitados pelo Ministério da Saúde, ou que se recusaram a participar da etapa de avaliação externa.
As variáveis utilizadas no estudo foram:
a) macrorregião (Norte; Nordeste; Centro-Oeste; Sudeste; Sul);
b) classificação do CEO (I; II e III);
c) quantidade de cirurgiões-dentistas (CD) atuando na especialidade PNE (CDs-PNE por CEO: 0; 1; 2; 3 ou mais);
d) oferta de atendimento clínico para a especialidade PNE (em horas por semana: 0; <20; 20 a 39; 40 ou mais);
e) corredores adaptados (sim; não);
f) portas adaptadas (sim; não);
g) cadeira de rodas (sim; não);
h) rampa com corrimão (sim; não);
i) acessibilidade física (sem facilitadores; alguns facilitadores; todos os facilitadores);
j) cotas de encaminhamento de PNEs (sim; não);
k) CEO recebe referência da Unidade Básica de Saúde (UBS) (sim; não);
l) existência de protocolo de encaminhamento UBS-CEO (sim; não);
m) referência hospitalar para atendimento sob anestesia geral (sim; não);
n) organização de vagas para atenção hospitalar (sistema de cotas; sem número limitado; outros; não há);
o) demanda reprimida para atendimento hospitalar (sim; não; não sabe informar; não realiza atendimento hospitalar);
p) média mensal de atendimento hospitalar (1 a 4; 5 a 8; mais de 8; não realiza atendimento hospitalar);
q) tempo de espera para atendimento a PNEs (até uma semana; de 8 a 15 dias; mais de 15 dias; não sabe/não respondeu);
r) garantia de tratamento completo a PNEs (sim; não);
s) perfil dos usuários atendidos
- distúrbios de comportamento (sim; não);
- deficiência sensorial ou física sem distúrbio de comportamento (sim; não);
- movimentos involuntários (sim; não);
- diabéticos, cardiopatas e idosos (sim; não);
- autistas (sim; não);
- HIV-positivos (sim; não); e
- gestantes e bebês sem limitação (sim; não).
No que tange à classificação do CEO, foi considerado o critério adotado pelo Ministério da Saúde,11 segundo o qual (i) o tipo I conta com 3 ou mais CD e 1 auxiliar de saúde bucal (ASB) por consultório odontológico, (ii) o tipo II, com 4 ou mais CD e 1 ASB por consultório odontológico, e (iii) o tipo III, com 7 ou mais CD e 1 ASB por consultório odontológico.
Os dados foram tabulados e analisados com uso do software estatístico SPSS versão 18.0. As variáveis quantitativas foram descritas na forma de média e respectivos desvios-padrão ou mediana e percentis, enquanto as variáveis categóricas foram descritas na forma de frequência absoluta e relativa.
A avaliação externa do PMAQ-CEO seguiu as exigências da Declaração de Helsinque e foi aprovada pelo Conselho de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (CEP/CCS/UFPE): Registro nº 740.974 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 23458213.0.0000.5208, em 6 de agosto de 2014. No momento da entrevista, todos os indivíduos que aceitaram participar da pesquisa assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
Todos os 984 CEOs habilitados em 2013 receberam a visita do avaliador externo. Foram excluídos da pesquisa 52 (5,3%) CEOs, de acordo com os critérios apresentados aqui, resultando em 932 centros pesquisados.
Os CEOs não estavam distribuídos uniformemente pelo Brasil. Observou-se uma concentração desses serviços nas regiões Nordeste (38,3%) e Sudeste (36,2%), as regiões Norte e Centro-Oeste apresentavam cerca de 6% cada uma, e a região Sul, 12,4% dos CEOs do país (Tabela 1). Não obstante estar prevista como atendimento obrigatório a ser prestado pelo CEO, 89,8% desses serviços dispunham de profissionais cirurgiões-dentistas habilitados na especialidade PNE e apenas 33,8% dos estabelecimentos reservavam 40 ou mais horas semanais para atendimento clínico a esses pacientes (Tabela1). Entre os serviços que não ofereciam o atendimento especializado (10,2%), 51,6% estavam localizados no Nordeste, 27,4% no Sudeste, 10,5% no Norte, 8,4% no Sul e 2,1% no Centro-Oeste brasileiro.
A acessibilidade aos serviços pode ser alcançada através de instalações e equipamentos facilitadores de acesso físico, como rampas ou corredores adaptados, que garantam sua utilização por pessoas com deficiência, em igualdade de condição. No entanto, apenas 30,4% dos estabelecimentos apresentavam acessibilidade física adequada (disponibilidade de cadeira de rodas, corredores e portas adaptados para cadeira de rodas e rampas com corrimão); menos da metade dos serviços (46,9%) dispunha de rampa com corrimão, um recurso necessário para idosos e pessoas com mobilidade reduzida (Tabela 1).
Características | N | % |
---|---|---|
Características estruturais | ||
CEOsa por macrorregião | ||
Norte | 60 | 6,4 |
Nordeste | 357 | 38,3 |
Centro-Oeste | 62 | 6,7 |
Sudeste | 337 | 36,2 |
Sul | 116 | 12,4 |
Classificação do CEOa | ||
Tipo I | 349 | 37,4 |
Tipo II | 474 | 50,9 |
Tipo III | 199 | 11,7 |
Quantidade de CDs-PNEb por CEOa | ||
0 | 95 | 10,2 |
1 | 553 | 59,3 |
2 | 203 | 21,8 |
3 ou mais | 81 | 8,7 |
Oferta de atendimento clínico para a especialidade PNEc (em horas/semana) | ||
0h | 95 | 10,2 |
<20h | 117 | 12,6 |
20-39h | 405 | 43,4 |
≥40h | 315 | 33,8 |
Acessibilidade | ||
Corredores adaptados | 717 | 76,9 |
Portas adaptadas | 728 | 78,1 |
Cadeira de rodas | 548 | 58,8 |
Rampa com corrimão | 473 | 46,9 |
Acessibilidade física | ||
Sem facilitadores | 86 | 9,2 |
Algum facilitador | 563 | 60,4 |
Todos facilitadores | 283 | 30,4 |
a) CEO: centro de especialidades odontológicas.
b) CDs-PNE: cirurgiões-dentistas especializados no atendimento a paciente com necessidades especiais.
c) PNE: paciente com necessidades especiais.
A qualidade do cuidado também está relacionada com o processo de trabalho e a organização da demanda. A maioria dos serviços (73,4%) recebia o usuário da UBS com documento de referência contendo a descrição do caso, as condições clínicas e tratamentos prévios conduzidos na UBS, e 57,5% contavam com protocolos de encaminhamento UBS-CEO definidos. Quanto à referência para Atenção Terciária, 59,7% dos CEOs contavam com referência hospitalar para atendimento sob anestesia geral, não havendo demanda reprimida para serviços de alta complexidade. Os pacientes atendidos pela especialidade Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais tinham garantia de tratamento completo em 76,6% dos serviços (Tabela 2).
Características | Frequência | % |
---|---|---|
Referência AB | ||
Cotas de encaminhamento (PNEa) | 166 | 17,8 |
CEOb recebe referência da UBSc (PNEa) | 683 | 73,4 |
Protocolo de encaminhamento UBSc-CEOb (PNEa) | 535 | 57,5 |
Referência atenção hospitalar | ||
Referência hospitalar - atendimento sob anestesia geral | 555 | 59,7 |
Organização de vagas para atenção hospitalar | ||
Sistema de cotas | 121 | 13,0 |
Sem número limitado | 366 | 39,4 |
Outros | 68 | 7,3 |
Não há | 375 | 40,3 |
Demanda reprimida para atendimento hospitalar | ||
Sim | 110 | 11,8 |
Não | 410 | 44,1 |
Não sabe informar | 35 | 3,8 |
Não realiza atendimento hospitalar | 375 | 40,3 |
Média mensal de atendimento hospitalar | ||
1 a 4 | 504 | 54,2 |
5 a 8 | 35 | 3,8 |
Mais de 8 | 16 | 1,7 |
Não realiza atendimento hospitalar | 375 | 40,3 |
Atendimento CEO | ||
Tempo de espera para atendimento a PNEsa | ||
Até uma semana | 527 | 56,7 |
De 8 a 15 dias | 155 | 16,7 |
Mais de 15 dias | 164 | 17,6 |
Não sabe/não respondeu | 84 | 9,0 |
Garantia de tratamento completo a PNEsa | 712 | 76,6 |
a) PNE: paciente com necessidades especiais.
b) CEO: centro de especialidades odontológicas.
c) UBS: unidade básica de saúde.
Os CEOs atendiam usuários com diversas necessidades a requerer atendimento especial, como distúrbios de comportamento (92,8%), deficiência sensorial ou física (90,0%), movimentos involuntários (89,0%), diabéticos, cardiopatas e idosos (87,1%), autistas (84,1%), pessoas soropositivas para HIV (78,8%) e gestantes e bebês sem limitação (69,9%) (Tabela 3).
Discussão
Os resultados apontam que a rede de cuidados para pessoas com deficiência se encontra em formação, sendo observadas lacunas e falta acessibilidade em quase dois terços dos serviços implantados. Apesar de ser uma especialidade obrigatória, nem todos os CEOs contavam com esses profissionais e pouco mais da metade dos serviços dispunham de protocolos de encaminhamento da Atenção Primária para PNEs, de forma a organizar a rede de cuidados. Ainda assim, a maioria dos CEOs garantia tratamento completo a seus usuários, incluindo referência para atendimento hospitalar. O crescimento exponencial de serviços especializados em saúde bucal, em menos de 15 anos, tem reduzido a demanda reprimida de modelos de saúde mutiladores e excludentes.16,17 Contudo, há um longo caminho a percorrer.
Em 2012, o Ministério da Saúde instituiu valor adicional aos incentivos financeiros de custeio mensal para os CEOs garantirem o cuidado a pessoas com deficiência, bem como a referência e contrarreferência para as equipes de Saúde Bucal na Atenção Básica.18 Em 2014, passados dois anos, apenas 250 (24,3%) CEOs haviam aderido e recebiam o incentivo financeiro da Rede de Atenção à Saúde para Pessoas com Deficiência.19 Entre os compromissos mínimos para receber o incentivo, estão:
disponibilização mínima de 40 horas semanais para atendimento exclusivo a pessoas com deficiência;
oferta de apoio matricial para as equipes de Saúde Bucal da Atenção Básica;
manutenção da produção mensal mínima e alimentação do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), por meio do Boletim de Produção Ambulatorial Individualizado (BPA-I), para a totalidade de procedimentos realizados em pessoas com deficiência;
garantia de acessibilidade e mobilidade nas instalações do CEO para pessoas com deficiência; e
disponibilidade de dentistas e auxiliares de saúde bucal capacitados para conduzir o atendimento odontológico de pessoas com deficiência.18
O incentivo financeiro foi criado em função da pequena cobertura populacional e da insuficiente oferta de serviços com estrutura e funcionamento adequados para o atendimento à pessoa com deficiência. O Estado percebeu a necessidade de expandir o acesso e superar barreiras aos serviços de saúde para pessoas com deficiência, e busca meios de reduzir as iniquidades em saúde para essa parcela da população.18 É necessário refletir por que mais gestores não reivindicaram o recebimento da verba para ampliar o atendimento, pois todos os CEOs credenciados pelo Ministério da Saúde têm o direito de requerer o incentivo adicional. Além do desconhecimento do recurso, é possível que os gestores não encontrem profissionais capacitados para o atendimento em seus municípios ou ainda não consigam adequar a estrutura física dos serviços de forma a garantir a acessibilidade universal. Mais estudos são necessários para melhor compreender essa falta e desenhar estratégias capazes de facilitar a adesão dos gestores dos CEOs à Rede de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência.
Os serviços públicos de saúde devem estar preparados para receber e acolher, com acesso universal e equitativo, todos os usuários, especialmente os grupos com maior vulnerabilidade social. Pessoas com deficiência, por apresentarem menores níveis socioeconômicos e piores condições de saúde,¹ deveriam constituir um público-alvo preferencial desses serviços, com adequação física dos estabelecimentos e capacitação dos profissionais de saúde para seu atendimento. A situação identificada nos resultados apresentados está presente tanto na Atenção Básica20,21 quanto nos serviços de atenção especializada. Grande parte dos serviços (73,2%) está localizada em prédio próprio,14 o que permite aos gestores realizarem as mudanças para garantir o acesso universal. Importante ressaltar que o CEO é o serviço de referência para os casos de deficiência mais complexos e, portanto, a remoção de barreiras físicas e de comunicação é necessária.
A maioria das pessoas com deficiência podem ser atendidas por cirurgiões-dentistas generalistas, na Atenção Básica, devendo ser encaminhadas para atendimento especializado somente os casos mais complexos.22 Essa premissa também foi adotada pelo Ministério da Saúde, na orientação de encaminhamento à Atenção Secundária dos casos que não permitiram atendimento clínico ambulatorial convencional. Entretanto, não há protocolo ou manual disponibilizado pelo Ministério da Saúde para a organização da demanda da especialidade PNE e sim, tão somente, uma sugestão de fluxograma para referência, entre Atenção Básica e Especializada, das pessoas com necessidades especiais.12 O Manual de Especialidades em Saúde Bucal, lançado em 2008, não incluiu a especialidade, pois se pretendia elaborar um documento específico sobre o tema, todavia não publicado. Existem poucas pesquisas sobre a rede de referência e contrarreferência em saúde bucal, e elas não abordam a especialidade PNE.20,23 Esta falta de protocolos bem delineados e de pesquisas envolvendo o cuidado em saúde bucal para pessoas com necessidade especial também foi encontrada neste trabalho: somente 57,5% dos serviços pesquisados contam com protocolos de encaminhamento da Atenção Básica (UBS) para o CEO.
Outrossim, muitos profissionais não se sentem aptos para esse atendimento3,24 e por isso referenciam os casos aos serviços especializados. Esta conduta faz com que o CEO atenda a casos que poderiam ser solucionados na Atenção Básica, aumentando a fila de espera para atendimento dos usuários que de fato necessitam de atenção especializada. Desta forma, e necessário que todos os níveis de atenção estejam preparados para acolher e atender as pessoas com deficiência, garantindo acesso universal e integralidade da atenção.
Para o adequado funcionamento da Rede de Atenção à Saúde para Pessoas com Deficiência, o nível de atenção terciário (hospitalar) deve estar disponível para os poucos casos que não podem ser atendidos em ambiente ambulatorial. Em 2010, o Ministério da Saúde criou o procedimento de tratamento odontológico para pacientes com necessidades especiais realizado sob sedação e/ou anestesia geral, em ambiente hospitalar.25 Para os casos mais complexos, a exemplo dos homens adultos com deficiência intelectual ou transtorno mental, que não permitem atendimento ambulatorial, o atendimento hospitalar possibilita o cuidado em saúde.26 No Brasil, em 2012, 57,8% das internações geradas para tratamento odontológico em pacientes com necessidades especiais foram de procedimentos clínicos e somente 13,29% de exodontia de dentes permanentes, demonstrando um modelo de saúde mais preventivo e restaurador.27
O tempo de espera para atendimento foi pequeno: mais da metade dos serviços indicaram que os usuários eram atendidos, em média, uma semana depois de serem encaminhados. Este resultado representa um importante indicador de acesso e adequação do serviço à demanda. A garantia de atendimento completo para PNEs foi relatada por 76,6% dos serviços, possível resultado de esforços empreendidos pela manutenção ou restabelecimento da saúde bucal das pessoas com deficiência atendidas no serviço. Como no CEO os profissionais que atendem PNEs realizam procedimentos de Atenção Básica, esses usuários, muitas vezes, não são reencaminhados para as unidades básicas de saúde e a equipe especializada se responsabiliza pelo cuidado do usuário.
No sentindo de reafirmar o que já foi dito na Introdução deste artigo, a odontologia considera como PNE qualquer indivíduo que apresente uma ou mais limitações, temporárias ou permanentes, de ordem mental, física, sensorial, emocional, de crescimento ou médica, que o impeça de receber um tratamento odontológico convencional.28 Esta definição, bastante ampla, pode dificultar a organização da demanda de atendimentos. A maioria dos serviços atendem usuários com diversas ‘necessidades especiais’, e todas essas condições clínicas estão elencadas como indicações para o atendimento pela especialidade PNE, segundo o Ministério da Saúde.29 No entanto, cabe analisar se de fato elas precisam ser atendidas no CEO ou se poderiam ser adequadamente acompanhadas na Atenção Básica. Nesse sentido, a demanda do CEO para PNEs deve ser organizada com base na prioridade de atendimento das pessoas com deficiência,30 levando em consideração protocolos baseados em classificação de risco e vulnerabilidade.
O atendimento a gestantes e bebês sem limitação, por exemplo, realizado por 69,9% dos serviços, acaba por utilizar horários da agenda que poderiam ser aproveitados por pacientes com deficiência que não permitem o atendimento na Atenção Básica e necessitam do atendimento especializado. Há que se questionar como se encontra o atendimento na Atenção Básica; afinal, grupos que tradicionalmente deveriam ser atendidos pela Estratégia Saúde da Família (ESF), como gestantes e bebês, estão sendo referenciados para o CEO. Isto pode sugerir uma falta de preparo dos profissionais da ESF para lidar com esse problema, ou a falta de estruturação desta rede de atenção.
Este estudo apresenta, como limitações: (i) a impossibilidade de inferência causal, em função do delineamento transversal; (ii) a utilização de dados secundários na coleta do PMAQ-CEO; e (iii) a não identificação dos 54 CEOs não participantes da avaliação externa do PMAQ. Como ponto forte, ele significa um estudo pioneiro ao retratar, em nível nacional, o perfil dos CEOs com o enfoque direcionado às pessoas com deficiência, apresentando as interfaces da Atenção Secundária com os demais níveis de atenção da rede de cuidado em saúde bucal.
Após uma década do início da implantação dos centros de especialidades odontológicas no Brasil, percebe-se uma melhora significativa no acesso e na atenção especializada em saúde bucal. Os serviços precisam ser melhor distribuídos regionalmente, além de avançar na eliminação de barreiras físicas e atitudinais para garantir a acessibilidade universal. Mesmo com políticas de incentivo financeiro, apenas um terço dos CEOs ofertam 40 horas semanais de atendimento clínico para PNE. Percebe-se a necessidade de protocolos para referência e contrarreferência com foco na pessoa com deficiência, baseados em classificação de risco, priorizando o atendimento no CEO dos casos de maior complexidade, que não podem ser realizados nas unidades básicas de saúde, bem como a necessidade de garantir serviços hospitalares de referência para aqueles casos de impossibilidade de atendimento ambulatorial.