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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.33 no.esp1 Brasília 2024 Epub 19-Jan-2024
http://dx.doi.org/10.1590/s2237-96222024v33e2024034.especial.en
NOTA EDITORIAL
20 anos de Visibilidade Trans, do Luto à luta!
1Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), Salvador, Bahia, Brazil
Vinte anos depois, as travestis estão aqui para continuar marcando as importantes mudanças que vêm sendo moldadas, desde que um grupo organizado na Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), adentrou, pela primeira vez, o Congresso Nacional, para o lançamento da Campanha “Travesti e Respeito”, juntamente com representantes do então Programa Nacional de DST/Aids da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, hoje, Departamento de HIV/aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde (DATHI/SVSA/MS).
Nesse sentido, a ANTRA idealizou a criação do Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil, rememorando uma data histórica que se iniciava ali, com o objetivo de que essa data fosse celebrada nos anos seguintes.
Instituída em 2004, a Visibilidade Trans nacional surge cinco anos antes do Dia Internacional da Visibilidade Trans,1 comemorado desde 31 de março de 2009, o que demonstra a nossa precedência em relação ao movimento de travestis politicamente mobilizadas pelo mundo afora.
“Travesti e respeito: já está na hora de os dois serem vistos juntos. Em casa. Na boate. Na escola. No trabalho. Na vida”. A Campanha Travesti e respeito foi lançada no Congresso Nacional, em 29 de janeiro de 2004, e é centrada no reforço a atitudes de respeito e de inclusão social desse segmento da população, que se torna muito vulnerável ao vírus da aids pelo preconceito e violência. A campanha foi realizada por lideranças do movimento organizado de travestis e transexuais ligadas à ANTRA, em parceria com o Programa Nacional de DST/Aids, e tem quatro alvos a atingir: escolas, serviços de saúde, comunidade e clientes das travestis profissionais do sexo. O slogan é reproduzido em cartazes e folders com fotos das 27 travestis que participaram da elaboração da campanha.2
Os anos passaram e a visibilidade trans cada vez mais tem mobilizado esforços para dar passos adiante, promovendo mudanças estruturais no sentido de se garantir o acesso a direitos e à cidadania da população de travestis e transexuais. E neste processo de mudança de cenário político e da possibilidade do resgate de suas vozes, as travestis continuam atuando para afirmar que, se antes partiam de uma situação de completa ausência de direitos e de entraves a uma existência digna, hoje permanecem de pé, vislumbrando os sonhos que naquele momento se faziam tão distantes de serem constituídos como resultados dessas lutas.
Muitas travestis sobreviveram às operações policiais que as perseguiam na ditadura,3 e à epidemia de HIV/aids que dizimou uma grande parcela de companheiras de luta e ainda persiste na realidade trans brasileira.4 Essa epidemia, contraditoriamente, também possibilitou a formação de muitas travestis dentro desse tema, primeiro como agentes de saúde, e depois coordenando projetos e até desenvolvendo pesquisas relacionadas a essa condição. Ademais, foi importante para a conscientização política de muitas delas, posto que muitas se assumem como filhas da aids. Sobreviventes das epidemias de ódio contra as identidades de gênero,5 elas têm transformado o Brasil, e ajudado a reconstruir a nação e sua jovem democracia, promovendo o debate sobre a urgência do respeito à diversidade corporal, sexual e de gênero, de forma qualificada e transformadora, para todo o conjunto da sociedade.
Esse debate, como tantos outros, diz respeito também à visibilidade que as pessoas trans e travestis conquistaram, especialmente nesses últimos anos, de modo que hoje elas não querem e nem aceitam mais viver invisibilizadas, limitadas a guetos, ou se limitarem a sair somente à noite, como em tempos passados. Infelizmente, essa conquista de espaços altruísta que as travestis reivindicam (mesmo no cenário adverso em que vivem) ainda se mescla à violência que as vitima ao reivindicarem sua liberdade de serem quem são.
É quando as travestis passam a conviver em mais amplos espaços sociais e a ter acesso aos direitos antes negados, que incomodam de fato. Rapidamente, elas começaram a compreender essa questão, e estão a cada dia mais conscientes das suas condições sociais - alcançando alguma cidadania, ainda que precária - e dos direitos que lhes são assegurados pela luta dos movimentos sociais populares. Além disso, experienciam a possibilidade de construção e convivência com outras formas de relacionamentos afetivos/sexuais, assim como o acesso a espaços laborais antes interditos.
Essa autonomia que vem sendo alcançada pela garantia de direitos conquistados criou a ideia de que existem novas perspectivas de futuro, e que se pode pensar para além da prostituição - se esse for o desejo pessoal de cada uma. Foi a luta das “travestis parideiras” que gestou e pariu outras frentes de trabalho para a população trans, observando-se um pequeno avanço na autonomia dessas pessoas. Porém, no cenário de reforma trabalhista e da previdência, propiciado pelo recrudescimento da política neoliberal impetrada pelos dois governos anteriores, isso se dissipou. Verificaram-se diversos impactos deletérios para a comunidade trans, e muitas travestis retornaram ao trabalho sexual.
É notório que o Brasil tem uma dimensão continental, e as políticas públicas não são equilibradas nem dosadas na mesma proporção para todas as pessoas. Todavia, dispor de um aparato legal que, neste momento, passa a se empenhar para corrigir as injustiças e omissões traz esperanças para aquelas que seguem invisibilizadas, em sua convivência social e até no desenvolvimento de suas habilidades profissionais. Ressalte-se que permanece um enorme déficit na questão do trabalho, a qual precisa ser corrigida. Obviamente, iniciativas de organizações sociais nesse campo são bem-vindas e importantes, mas é preciso lançar mão de mecanismos e políticas de geração de emprego e renda, com controle social, que se debrucem de fato sobre essa temática. Saliente-se que já que existe uma população de pessoas trans jovens que vivenciam um novo momento, tendo acesso à educação e à formação, ainda que de modo insuficiente, sendo necessário avançar, pois a violência que sofrem no sistema de ensino ainda é preocupante. Na mesma sintonia, será necessário preparar o mercado de trabalho, as instituições e a sociedade para esse novo ciclo de profissionais.
Se, por um lado, o movimento trans alcançou diversos progressos ao longo dessa caminhada - o que coloca o Brasil como um dos países mais avançados nas conquistas desses direitos -,6 por outro ainda existem desafios para transformá-los em políticas públicas e se garantir o acesso a todas as pessoas trans e travestis, rompendo-se com o paradoxo da violência e se promovendo o reconhecimento da cidadania dessas pessoas.
Para tal, precisamos, por exemplo, nos empenhar para interromper o debate ideológico transfóbico, que hoje elegeu a transfobia como uma agenda política prioritária da extrema-direita7 e outros grupos antitrans que têm se mobilizado em uma agenda antigênero, criando alegorias caricatas e fantasmagóricas a fim de alavancar o pânico antitrans.
Nesse cenário, é imperioso afirmar que a violação de direitos e a violência, que seguem naturalizadas contra a população trans, não deverão mais passar incólumes. Os assassinatos, ainda muito presentes nesse segmento, não podem desanimar a contínua busca ativa de uma solução para a sua erradicação. A demanda incessante para uma inclusão social mais urgente e integral se torna uma das bandeiras mais importantes na atualidade e, junto à continuação das atividades institucionais - estabelecendo-se parcerias importantes para as lutas -, será sempre tarefa do dia a dia, reivindicando-se espaços para a inclusão.
Fomos forjadas na luta e não sairemos dela até que nossos direitos sejam garantidos. Queremos direitos inteiros e não pela metade. Precisamos de legislações que garantam a prevenção da violência, de medidas de investigação - com responsabilização dos criminosos - e reparação coletiva, pois não iremos hesitar em combater a omissão e a impunidade. A ação é plural, e só a coletividade faz sentido. É preciso sempre nos mantermos afastadas de discursos violentos e transfóbicos, e devem ser repudiadas em alto e bom som as declarações de fundamentalistas e essencialistas de gênero, grupos ultraconservadores antidireitos, racistas, machistas, misóginos, grupos transexcludentes e toda e qualquer tentativa de perseguição, silenciamento ou violência.
Nesse sentido, esta coletânea de artigos, além de marcar 20 anos da Visibilidade Trans, faz uma convocação para todas as pessoas trans, travestis e aliadas, indivíduos e instituições, para que se engajem decididamente na luta pela defesa dos direitos humanos dessa parcela da população. Esta luta não é apenas de uma ou de outra pessoa ou movimento, e desejamos ter muito mais conquistas nessa jornada, ao longo dos próximos anos.
Acreditamos no restabelecimento da democracia e na inclusão social, e convidamos quem se dispuser a caminhar conosco nesse momento em que são as pessoas trans que estão na linha de frente desta luta!
REFERENCES
1. Wikipédia, a enciclopédia livre. Dia Internacional da Visibilidade Transgênero [Internet]. São Petersburgo (FL): Wikimedia Foundation, Inc. 2023 [atualizado 2023 Dez 19; citado 2024 jan 17]. [ Links ]
2. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Campanha Travestis - 2002 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2002 [citado 2024 jan 17]. Disponível: Disponível: https://antigo.aids.gov.br/pt-br/campanha/campanha-travestis-2002 . [ Links ]
3. Cavalcanti C, Barbosa RB, Bicalho PPG. Os tentáculos da tarântula: abjeção e necropolítica em operações policiais a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicol Ciênc Prof. 2018;38(Spec 2):175-91. doi: 10.1590/1982-3703000212043. [ Links ]
4. Bastos FIPM, Coutinho C, Malta M. Estudo de Abrangência Nacional de Comportamentos, Atitudes, Práticas e Prevalência de HIV, Sífilis e Hepatites B e C entre Travestis - Relatório Final Pesquisa DIVaS (Diversidade e Valorização da Saúde). Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2018. 2333 p. [ Links ]
5. Benevides BG. Brasil: 15 anos do topo do genocídio trans [Internet]. [s.l.]: Catarinas; 2023 [atualizado 2023 Nov 13; citado 2024 jan 17]. Disponível em: https://catarinas.info/brasil-15-anos-do-topo-do-genocidio-trans/. [ Links ]
6. Gonçalves B. Conheça 7 direitos de pessoas LGBTQIA+ no Brasil [Internet]. São Paulo: Fundação 1º de Maio; 2022 [atualizado 2023 Jun 28; citado 2024 jan 17]. Disponível em: Disponível em: https://www.fundacao1demaio.org.br/7-direito-de-lgbtqia-no-brasil/ . [ Links ]
7. Democracy Reporting International. FGV. Debate sobre pessoas trans é protagonizado por grupos com perfil ideológico de extrema direita no Facebook entre 2019 e 2023 [Internet]. Rio de Janeiro: FGV; 2023 [atualizado 2023 Maio 24; citado 2024 jan 17]. Disponível em: Disponível em: https://midiademocracia.fgv.br/node/102 . [ Links ]