INTRODUÇÃO
A neurotoxoplasmose (NTX) está entre as doenças oportunistas mais prevalentes em pessoas vivendo com o vírus da imunodeficiência humana (PVHIV)1,2. Seu agente causador é o Toxoplasma gondii, um protozoário parasita bastante difundido em todo o mundo que pode afetar tanto animais quanto humanos, tendo os felinos como o seu hospedeiro definitivo3,4. Humanos podem ser infectados após contato com o solo contaminado, frutas e verduras (contaminadas) não higienizadas, pelo consumo de carnes cruas ou malcozidas (infectadas)3, além da água, que também pode ser uma fonte de contaminação.
A soroprevalência do parasita é variada; entretanto, estima-se que 30% da população mundial esteja infectada pelo Toxoplasma gondii5. No Brasil, a taxa é de 61,2%, sendo mais elevada com o aumento da idade6. No estado do Pará, a prevalência pode chegar a taxas superiores a 70%7. Quando associada ao diagnóstico da infecção pelo HIV, estima-se que 44,2% dessa população também possua toxoplasmose8.
Em contrapartida, desde o início da epidemia pelo HIV até o final de 2021, foram infectadas 84,2 milhões de pessoas mundialmente9. Apenas no ano de 2021, foram notificados 40.880 novos casos no Brasil, sendo 13,4% destes, na Região Norte10. Apesar da difusão do acesso à terapia antirretroviral (TARV)9 e da sua eficácia para supressão virológica, as PVHIV ainda estão suscetíveis às doenças oportunistas11.
Pacientes que apresentam a contagem de linfócitos T CD4+ (LTCD4+) < 100 células/mm³ e carga viral detectável têm grande chance de apresentarem NTX1,12. As principais manifestações clínicas são cefaleia, febre e convulsões12,13,14, podendo apresentar ainda afasia, paralisia dos nervos cranianos e comprometimento cognitivo1.
O diagnóstico é realizado por meio de análise da história clínica com confirmação histopatológica e por exame de neuroimagem12. Entretanto, com frequência esse diagnóstico é tardio, e o paciente tem maior probabilidade de dano cerebral grave e outras infecções oportunistas associadas, quando presente a uma carga viral detectável e contagem < 100 céls./mm³ de LTCD4+1. Dessa forma, o objetivo do presente estudo é analisar os perfis sociodemográfico e clínico das PVHIV que desenvolveram NTX no interior do estado do Pará.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa descritiva, transversal e quantitativa, com base em prontuários, realizada no Centro de Testagem e Aconselhamento e Serviço de Assistência Especializada (CTA/SAE) do município de Santarém, estado do Pará, Brasil.
A população do estudo envolveu a análise de 1.919 prontuários de PVHIV em acompanhamento no CTA/SAE de janeiro de 1998 a dezembro de 2017. Foram incluídos prontuários de pacientes de ambos os sexos, com idade maior ou igual a 18 anos no momento da pesquisa, com sorologia positiva para a infecção pelo HIV e com diagnóstico clínico ou radiológico para NTX. Foram excluídos os prontuários com ausência da data de nascimento e sexo, ou com informações ilegíveis (nenhuma exclusão ocorreu). Assim, a amostra foi composta por 91 prontuários de PVHIV e com o diagnóstico para NTX. Ressalta-se que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado do Pará, sob o parecer n° 2.544.662, em 14 de março de 2018.
A coleta de dados, realizada de abril de 2018 a outubro de 2019, envolveu a busca de informações sociodemográficas (sexo, idade, cor de pele, escolaridade, estado civil, local de residência e ocupação), clínicas (motivo da procura, tipo de exposição, data do diagnóstico para o HIV e NTX, infecções e manifestações clínicas) e laboratoriais (carga viral e LTCD4+) nos prontuários dos pacientes no momento do diagnóstico para a infecção pelo HIV.
Os dados foram organizados e tabulados no programa Microsoft Excel. Para a estatística descritiva, foram utilizados os recursos da mediana, mínimo, máximo, intervalo interquartil (IIQ), frequência absoluta e relativa. O teste D'Agostino-Pearson foi aplicado para verificar a normalidade dos dados, utilizando-se para as comparações o teste Mann-Whitney. Para a parte inferencial, foi aplicado o teste exato de Fisher para verificar a associação das variáveis clínicas com o perfil imunológico. Para as estatísticas inferencial e descritiva, utilizou-se o programa BioEstat v5.3, adotando-se o nível de significância de p < 0,05.
RESULTADOS
A frequência de PVHIV que apresentaram o diagnóstico para a NTX, no período de 1998 a 2017, foi de 4,7% (n = 91), sendo estes reconhecidos no período do diagnóstico para a infecção pelo HIV (63,7%; n = 58). A maioria dos casos era de indivíduos da cor/raça parda (85,7%; n = 78), do sexo masculino (72,5%; n = 66), com escolaridade de quatro a sete anos de estudo (42,9%; n = 39), solteiros (48,4%; n = 44) e com alguma ocupação (61,5%; n = 56). A análise da procedência demonstrou que esses pacientes eram provenientes de 14 municípios do Pará, com Santarém como a cidade mais referenciada (63,7%; n = 58). O principal motivo da procura pelo CAT/SAE foi o encaminhamento por outro serviço de saúde (42,9; n = 39). A relação sexual foi a principal forma de exposição (97,8%; n = 89) (Tabela 1).
Variáveis | Todos | Masculino | Feminino | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Sexo | ||||||
Masculino | 66 | 72,5 | - | - | - | - |
Feminino | 25 | 27,5 | - | - | - | - |
Cor de pele/Raça | ||||||
Branca | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Parda | 78 | 85,7 | 54 | 81,8 | 24 | 96,0 |
Preta | 4 | 4,4 | 4 | 6,1 | - | - |
Não informado | 8 | 8,8 | 7 | 10,6 | 1 | 4,0 |
Escolaridade (anos de estudo) | ||||||
0 | 4 | 4,4 | 3 | 4,5 | 1 | 4,0 |
1-3 | 6 | 6,6 | 3 | 4,5 | 3 | 12,0 |
4-7 | 39 | 42,9 | 28 | 42,4 | 11 | 44,0 |
8-11 | 23 | 25,3 | 17 | 25,8 | 6 | 24,0 |
≥ 12 | 7 | 7,7 | 7 | 10,6 | - | - |
Não informado | 12 | 13,2 | 8 | 12,1 | 4 | 16,0 |
Estado civil | ||||||
Casado/Amigado | 24 | 26,4 | 14 | 21,2 | 10 | 40,0 |
Separado | 5 | 5,5 | 3 | 4,5 | 2 | 8,0 |
Solteiro | 44 | 48,4 | 34 | 51,5 | 10 | 40,0 |
Viúvo | 2 | 2,2 | 2 | 3,0 | - | - |
Não informado | 16 | 17,6 | 13 | 19,7 | 3 | 12,0 |
Ocupação | ||||||
Sim | 56 | 61,5 | 48 | 72,7 | 8 | 32,0 |
Não | 25 | 27,5 | 11 | 16,7 | 14 | 56,0 |
Aposentado | 4 | 4,4 | 3 | 4,5 | 1 | 4,0 |
Não informado | 6 | 6,6 | 4 | 6,1 | 2 | 8,0 |
Procedência | ||||||
Santarém | 58 | 63,7 | 42 | 63,6 | 16 | 64,0 |
Oriximiná | 6 | 6,6 | 5 | 7,6 | 1 | 4,0 |
Itaituba | 5 | 5,5 | 5 | 7,6 | - | - |
Óbidos | 5 | 5,5 | 4 | 6,1 | 1 | 4,0 |
Alenquer | 3 | 3,3 | 2 | 3,0 | 1 | 4,0 |
Monte Alegre | 2 | 2,2 | - | - | 2 | 8,0 |
Placas | 2 | 2,2 | 1 | 1,5 | 1 | 4,0 |
Prainha | 2 | 2,2 | 1 | 1,5 | 1 | 4,0 |
Almeirim | 1 | 1,1 | - | - | 1 | 4,0 |
Aveiro | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Juruti | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Mojuí dos Campos | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Trairão | 1 | 1,1 | - | - | 1 | 4,0 |
Uruará | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Não Informado | 2 | 2,2 | 2 | 3,0 | - | - |
Motivo da procura | ||||||
Conhecimento status sorológico | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Encaminhamento pelo serviço de saúde | 39 | 42,9 | 29 | 43,9 | 10 | 40,0 |
Exame pré-natal | 1 | 1,1 | - | - | 1 | 4,0 |
Exposição à situação de risco | 11 | 12,1 | 9 | 13,6 | 2 | 8,0 |
Parceiro vivendo com HIV | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
Prevenção | 1 | 1,1 | - | - | 1 | 4,0 |
Sintomas relacionados à aids | 24 | 26,4 | 16 | 24,2 | 8 | 32,0 |
Suspeita de IST | 2 | 2,2 | 1 | 1,5 | 1 | 4,0 |
Não informado | 11 | 12,1 | 9 | 13,6 | 2 | 8,0 |
Tipo de exposição | ||||||
Relação sexual | 89 | 97,8 | 64 | 97,0 | 25 | 100,0 |
Não informado | 2 | 2,2 | 2 | 3,0 | - | - |
Diagnóstico para NTX | ||||||
Antes do diagnóstico para HIV | 2 | 2,2 | 2 | 3,0 | - | - |
No período do diagnóstico para HIV | 58 | 63,7 | 39 | 59,1 | 19 | 76,0 |
Depois do diagnóstico para HIV | 30 | 33,0 | 24 | 36,4 | 6 | 24,0 |
Não informado | 1 | 1,1 | 1 | 1,5 | - | - |
HIV: Vírus da imunodeficiência humana; IST: Infecção sexualmente transmissível; NTX: Neurotoxoplasmose; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Os valores para as variáveis laboratoriais e das idades dos pacientes referentes aos diagnósticos para HIV e NTX estão apresentados na tabela 2. Observou-se que o diagnóstico para o HIV ocorreu em uma idade menor que a idade para o diagnóstico para NTX (32 vs. 33 anos; p < 0,001), visto a presença de 33,0% de PVHIV que desenvolveram a NTX após o diagnóstico para a infecção pelo HIV. Para a contagem de LTCD4+, as mulheres apresentaram menores valores em comparação aos homens (49vs.73 céls./mm³; p = 0,028).
Variáveis | Todos | Masculino | Feminino |
---|---|---|---|
Tempo entre o diagnóstico de HIV para NTX (meses) | |||
Mediana | 16 | 15 | 33.5 |
IIQ (25%-75%) | 4-58 | 4-57 | 5,7-57,5 |
Mínimo/máximo | 2/154 | 2/154 | 3/59 |
Idade no diagnóstico para HIV (anos) | |||
Mediana | 32* | 31 | 32 |
IIQ (25%-75%) | 27-39 | 27,2-38,7 | 26-39 |
Mínimo/máximo | 17/64 | 17/64 | 18/52 |
Idade no diagnóstico para NTX (anos) | |||
Mediana | 33 | 34 | 32 |
IIQ (25%-75%) | 28-40 | 29-40 | 27-41 |
Mínimo/máximo | 19/64 | 19/64 | 21/52 |
Contagem de linfócitos T CD4+ (céls./mm³) | |||
Mediana | 64 | 73† | 49 |
IIQ (25%-75%) | 31.5-142.2 | 39-163 | 22-60 |
Mínimo/máximo | 8/605 | 8/605 | 8/317 |
Carga viral (cópias) | |||
Mediana | 49.347 | 42.465 | 79.803 |
IIQ (25%-75%) | 3.480-145.207,5 | 2.555-152.610 | 44.602-122.365 |
Mínimo/máximo | -/5.130.000 | -/1.755.954 | 217/5.130.000 |
HIV: Vírus da imunodeficiência humana; NTX: Neurotoxoplasmose; IIQ: Intervalo interquartil; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento. * Diferença estatística da idade para diagnóstico de NTX; † Diferença estatística do sexo feminino; p > 0,05.
A tabela 3 apresenta a distribuição das manifestações clínicas, infecções oportunistas, contagem de LTCD4+ e carga viral dos pacientes no momento do diagnóstico para NTX. Em relação às infecções oportunistas, 45,1% (n = 41) dos pacientes (48,5% dos homens, n = 32; e 36,0% das mulheres, n = 9) apresentaram, além da NTX, alguma outra infecção. As manifestações clínicas foram observadas em 63 PVHIV, sendo mais prevalente a hemiparesia/hemiplegia.
Variáveis | Todos | Masculino | Feminino | |||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Manifestações clínicas | ||||||
Alteração visual | 3 | 2,0 | 3 | 2,9 | - | - |
Alterações de reflexos | 11 | 7,5 | 7 | 6,9 | 4 | 8,9 |
Cefaleia | 22 | 15,0 | 15 | 14,7 | 7 | 15,6 |
Convulsões | 13 | 8,8 | 11 | 10,8 | 2 | 4,4 |
Desorientação | 13 | 8,8 | 8 | 7,8 | 5 | 11,1 |
Diminuição da consciência | 13 | 8,8 | 8 | 7,8 | 5 | 11,1 |
Exantema/Erupção/Rash | 3 | 2,0 | 3 | 2,9 | - | - |
Febre | 21 | 14,3 | 15 | 14,7 | 6 | 13,3 |
Hemiparesia/Hemiplegia | 38 | 25,9 | 26 | 25,5 | 12 | 26,7 |
Tonturas | 10 | 6,8 | 6 | 5,9 | 4 | 8,9 |
Infecções oportunistas | ||||||
Candidíase | 27 | 55,1 | 20 | 52,6 | 7 | 63,6 |
Herpes simples | 2 | 4,1 | 1 | 2,6 | 1 | 9,1 |
Herpes zoster | 4 | 8,2 | 3 | 7,9 | 1 | 9,1 |
Mielite | 1 | 2,0 | 1 | 2,6 | - | - |
Neurocriptococose | 1 | 2,0 | 1 | 2,6 | - | - |
Pneumocistose | 5 | 10,2 | 4 | 10,5 | 1 | 9,1 |
Tuberculose | 9 | 18,4 | 8 | 21,1 | 1 | 9,1 |
Número de infecções oportunistas | ||||||
Somente NTX | 50 | 54,9 | 34 | 51,5 | 16 | 64,0 |
NTX + 1 infecção | 33 | 36,3 | 26 | 39,4 | 7 | 28,0 |
NTX + 2 infecções | 8 | 8,8 | 6 | 9,1 | 2 | 8,0 |
Linfócitos T CD4+ (céls./mm3) | ||||||
< 100 | 47 | 51,6 | 31 | 47,0 | 16 | 64,0 |
100-199 | 14 | 15,4 | 13 | 19,7 | 1 | 4,0 |
200-349 | 8 | 8,8 | 6 | 9,1 | 2 | 8,0 |
≥ 350 | 3 | 3,3 | 3 | 4,5 | - | - |
Não informado | 19 | 20,9 | 13 | 19,7 | 6 | 24,0 |
Carga viral | ||||||
Detectável | 63 | 69,2 | 46 | 69,7 | 17 | 68,0 |
Indetectável | 3 | 3,3 | 3 | 4,5 | - | - |
Não informado | 25 | 27,5 | 17 | 25,8 | 8 | 32,0 |
NTX: Neurotoxoplasmose; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
Na tabela 4, nota-se que não ocorreu associação significativa do sexo com a presença de manifestações clínicas, de outra infecção oportunista, contagem de LTCD4+, carga viral, com o diagnóstico para NTX ter sido ou não depois do diagnóstico para HIV, com as idades para os diagnósticos de NTX e HIV, com o tempo decorrido para desenvolver NTX após o diagnóstico de HIV, com possuir ou não companheiro e com a presença de hemiparesia/hemiplegia ou outra manifestação clínica.
Variáveis | Masculino | Feminino | p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | ||
Manifestação clínica | |||||
Sim | 44 | 66,7 | 19 | 76,0 | 0,453 |
Não | 22 | 33,3 | 6 | 24,0 | |
Outra infecção oportunista | |||||
Sim | 32 | 48,5 | 9 | 36,0 | 0,348 |
Não | 34 | 51,5 | 16 | 64,0 | |
Contagem de linfócitos T CD4+ | |||||
< 200 céls./mm³ | 44 | 83,0 | 17 | 89,5 | 0,715 |
≥ 200 céls./mm³ | 9 | 17,0 | 2 | 10,5 | |
Carga viral | |||||
Detectável | 46 | 93,9 | 17 | 100,0 | 0,563 |
Indetectável | 3 | 6,1 | - | - | |
Diagnóstico de NTX depois do de HIV | |||||
Sim | 24 | 36,9 | 6 | 27,3 | 0,450 |
Não | 41 | 63,1 | 16 | 72,7 | |
Idade no diagnóstico para HIV | |||||
< 32 anos | 29 | 43,9 | 11 | 44,0 | 1,0 |
≥ 32 anos | 37 | 56,1 | 14 | 56,0 | |
Idade no diagnóstico para NTX | |||||
< 33 anos | 30 | 46,2 | 14 | 56,0 | 0,482 |
≥ 33 anos | 35 | 53,8 | 11 | 44,0 | |
Tempo entre o diagnóstico para HIV e o de NTX | |||||
< 16 meses | 12 | 50,0 | 3 | 50,0 | 1,0 |
≥ 16 meses | 12 | 50,0 | 3 | 50,0 | |
Presença de companheiro | |||||
Sim | 14 | 26,4 | 10 | 45,5 | 0,172 |
Não | 39 | 73,6 | 12 | 54,5 | |
Tipo de manifestação clínica | |||||
Hemiparesia/Hemiplegia | 26 | 59,1 | 12 | 63,2 | 0,787 |
Outras | 18 | 40,9 | 7 | 36,8 |
HIV: Vírus da imunodeficiência humana; NTX: Neurotoxoplasmose; Sinal convencional utilizado: - Dado numérico igual a zero, não resultante de arredondamento.
DISCUSSÃO
A proposta do estudo foi analisar os perfis sociodemográfico e clínico de PVHIV e que desenvolveram NTX no interior do Pará. Diante do proposto, foi identificado que 63,7% dos pacientes analisados residiam no município paraense de Santarém, e os demais, em cidades vizinhas. Santarém possui unidades de saúde que são referência na região oeste do estado e conta com o CTA/SAE para os cuidados da PVHIV15, justificando a predominância da amostra e a procura pelo atendimento no local.
Dados do Ministério da Saúde mostram que indivíduos com cor de pele parda são frequentemente maioria na população nacional diagnosticada com HIV10, e estudos realizados em diferentes estados brasileiros também encontraram resultados semelhantes2,16,17. Quando associado o diagnóstico de NTX às PVHIV, a cor de pele parda foi maioria tanto neste estudo quanto em outro também realizado no estado do Pará18.
O estado civil solteiro, bem como a relação sexual como a principal forma de exposição ao HIV, foram neste e em outros estudos os mais frequentes2,17,19. Tal resultado evidencia que o não uso do preservativo na relação sexual é uma prática comum nessa população e pode ser justificada pela resistência por parte dos parceiros e ao reduzido grau de instrução desses indivíduos20.
Nesse sentido, a escolaridade da maioria da amostra avaliada foi até sete anos de estudo, o que condiz com resultados encontrados em estudos realizados nos estados do Amazonas19, Minas Gerais16 e Espírito Santo17. Pascom et al.21 constataram que possuir baixo grau de escolaridade e cor de pele parda são fatores associados ao menor acesso ao diagnóstico de infecção pelo HIV, ao início tardio do tratamento e a não supressão viral, culminado com pior prognóstico da doença.
Mesmo que grande parte da amostra fosse composta por pessoas em idade economicamente ativa, apenas 61,5% destes possuíam ocupação. Esses dados ratificam outras pesquisas em que o baixo nível de ocupação, a baixa remuneração e a frequente preocupação financeira estão associadas a piores níveis de qualidade de vida nas PVHIV16,22. Vale destacar ainda que ter o diagnóstico para NTX associado ao de HIV é agente agravante para a preocupação financeira18.
Quando analisado separadamente, as mulheres apresentaram uma frequência maior para a baixa escolaridade e para a não ocupação. Características semelhantes também foram observadas em outras pesquisas, em que os homens foram os que apresentaram maior escolaridade e renda23,24. Portanto, esses fatores contribuem para que mulheres apresentem pior qualidade de vida quando comparadas aos homens24.
As mulheres ainda foram maioria entre os pacientes que se declararam casados. Todas possuíam carga viral detectável e contagem de LTCD4+ menor que os homens. Em outros estudos, notou-se que possuir baixa escolaridade e parceria fixa estavam associadas a maiores chances de diagnóstico tardio para o HIV24,25, o que pode justificar a parte imunológica prejudicada. Além disso, o estado civil casado é justificado devido ao não uso do preservativo pelo casal, por declararem vergonha de sugerir o uso ao parceiro25.
O principal motivo da procura pelo serviço especializado de saúde foi pelo encaminhamento de um serviço de saúde e, posteriormente, por sintomas relacionados a aids, demonstrando uma procura tardia pelo serviço de saúde especializado por parte desses pacientes. Pascom et al.21 observaram que usuários pardos, pretos e indígenas com menor escolaridade demoram mais tempo para procurar o serviço de saúde, reduzindo assim a chance de supressão viral e aumentando o risco de doenças oportunistas. Somado a isso, Ribeiro et al.25 observaram ainda a relação entre a idade mais avançada e possuir o diagnóstico para o HIV, ou seja, o acréscimo de um ano na idade contribuiu para aumentar em 3% as chances de um diagnóstico mais tardio nesses indivíduos.
O atraso na busca pelo diagnóstico pode impactar negativamente no perfil imunológico25, pois nesta pesquisa se verificou que pouco mais da metade da amostra apresentou contagem de LTCD4+ < 100 céls./mm³ e quase 3/4 tinham carga viral detectável. Essa relação já é clara na literatura, pois um déficit no sistema imunológico favorece o surgimento de infecções oportunistas1,12, como a NTX. Contudo, ressalta-se a presença de uma baixa frequência de PVHIV com NTX com contagem de LTCD4+ ≥ 200 céls./mm³, o que também foi notado no estudo de Azovtseva et al.1. Além disso, observou-se que o diagnóstico mais tardio para NTX ocorreu em 154 meses (≈ 13 anos) após o diagnóstico para a infecção pelo HIV em um paciente de 43 anos de idade, que apresentou naquele momento uma contagem de linfócitos T CD4+ de 54 céls./mm³, favorecendo o desenvolvimento da mesma1,12.
Nesse sentido, Azovtseva et al.1 verificaram que indivíduos com menor tempo de uso da TARV possuem maiores probabilidades de apresentar dano cerebral grave quando comparados àqueles com um tratamento mais longo. Assim, o uso regular da TARV e o tratamento profilático da NTX podem desempenhar papel protetor nesses indivíduos e reduzir o risco de dano cerebral grave1,26. Além disso, ressalta-se o acompanhamento da sorologia para a toxoplasmose como um fator preventivo, visto que, na maioria dos casos, ela pode se apresentar assintomática27, gerando um subdiagnóstico.
Em relação às infecções oportunistas, 45,1% dos pacientes apresentaram, além da NTX, outra infecção, sendo a candidíase e a tuberculose as mais frequentes. Estudos realizados com PVHIV e com NTX demonstraram que, mesmo que haja alta taxa de acesso à TARV, também é frequente a descontinuidade ou baixa adesão ao tratamento, o que pode justificar a presença de infecções oportunistas nesse grupo14,18.
Neste estudo, os sintomas da NTX mais relatados foram hemiparesia/hemiplegia, cefaleia e febre. Sendo uma doença de sintomatologia diversa e que pode variar de acordo com a área do cérebro acometida e extensão da lesão, essas manifestações também foram descritas em outros estudos1,13,14. Entretanto, a presença de febre, tontura, distúrbios da consciência e déficits de memória já foram associados à mortalidade13.
Também não houve associação significativa do sexo com a presença de manifestações clínicas, outras infecções oportunistas ou da idade para o diagnóstico de NTX. Todavia, já foi observado que as mulheres têm 2,12 vezes mais chances de apresentarem o diagnóstico para NTX em relação aos homens. Notou-se ainda, tanto nesta pesquisa quanto em outras, a forte relação da baixa contagem de LTCD4+ e alta de carga viral no risco de desenvolver NTX1,26.
Os dados do presente estudo são relevantes para demonstrar a importância da atenção prestada em âmbito locorregional, bem como reforçar a importância da ampliação dos centros de testagem. Conhecer o perfil das PVHIV acometidas por NTX é fundamental para a construção de políticas públicas mais direcionadas como, por exemplo, ações de educação em saúde para o uso de preservativo e cuidados de higiene para a prevenção da toxoplasmose, campanhas de teste rápido em locais geograficamente estratégicos, não esquecendo das regiões mais remotas, ribeirinhas, zona rural e dos povos tradicionais. Além disso, é importante realizar o gerenciamento de risco e seguir as recomendações para o uso de outros métodos de prevenção para a infecção pelo HIV como, por exemplo, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), para minimizar o risco da infecção pelo HIV28. Ressalta-se ainda a importância do acompanhamento clínico-laboratorial dos pacientes, com vista aos sintomas da NTX.
Este estudo apresenta como limitação um número relativamente baixo de participantes, contudo representativo da região. Além disso, o uso de dados provenientes de prontuários, secundários, depende da notificação das informações clínicas e de sua qualidade, o que representa uma limitação natural.
CONCLUSÃO
Conforme o que foi proposto pelo estudo, conclui-se que houve maior prevalência de PVHIV da cor de pele parda, do sexo masculino, com baixa escolaridade, com ocupação e solteiros. Além disso, o tempo para desenvolver NTX, a partir do diagnóstico para HIV, apresentou uma mediana de 16 meses, bem como a idade no diagnóstico para NTX foi maior que a do diagnóstico para a infecção pelo HIV. A maioria das PVHIV apresentaram contagem LTCD4+ < 100 céls./mm³ e carga viral detectável.
A hemiparesia/hemiplegia foi a principal manifestação clínica da NTX observada, e a candidíase a principal doença oportunista associada. Por fim, não foi demonstrada relação do sexo com a presença das manifestações clínicas, outras infecções oportunistas ou da idade para o diagnóstico da NTX.
A entrada no CTA/SAE de Santarém, para as PVHIV, aconteceu principalmente com o encaminhamento de um serviço de saúde, bem como a maioria dos diagnósticos para NTX foram concomitantes aos diagnósticos para a infecção pelo HIV. Dessa forma, salienta-se que a conduta médica e da equipe de saúde, mediante as manifestações clínicas mais relevantes apresentadas, seja direcionada para a testagem sorológica do HIV, visto que os dados demonstraram uma procura tardia pelo serviço de saúde especializado por parte desses pacientes.