Introdução
A sífilis ainda é um grave problema de Saúde Pública, em nível global, a despeito da disponibilidade de métodos diagnósticos de baixo custo e do efetivo tratamento desde a década de 1950. A doença apresenta um cenário pior que o da transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e é um fator determinante na elevação dos indicadores de morbimortalidade materna e perinatal.1
Em 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que, anualmente, ocorram 2 milhões de casos de sífilis em gestantes. Cerca de 25% dos casos não tratados, ou tratados inadequadamente, resultariam em aborto espontâneo ou natimortos.2
A vigilância da infecção de sífilis em gestantes objetiva conhecer o estado sorológico e iniciar a terapêutica materna precocemente, visando ao planejamento e avaliação das medidas de prevenção e controle, particularmente da transmissão vertical do Treponema pallidum.3
O efetivo controle da sífilis tem como premissa fundamental a triagem sorológica e o tratamento adequado de gestantes e parceiros sexuais, visto que a qualidade da assistência pré-natal e ao parto é um importante determinante na redução da transmissão vertical. A penicilina é o fármaco de primeira escolha no tratamento da sífilis e o único indicado para gestantes: apresenta 98% de eficácia na prevenção da sífilis congênita, agindo em todos os estágios da doença. Não há relato da resistência do Treponema pallidum à penicilina.3,4 Não obstante, a alta incidência de sífilis em gestante e de sífilis congênita mantém-se como um desafio para os serviços de saúde.
Entre os anos de 2007 e 2013, foram notificados 685 casos de sífilis em gestante e 535 casos de sífilis congênita em residentes do estado do Tocantins.5 Segundo acordo firmado entre o Ministério da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a meta para 2015 era reduzir essa incidência para 0,5 caso por 1000 nascidos vivos.1,3
A atuação da Atenção Básica à saúde é essencial no combate à sífilis congênita, desde que é a principal porta de entrada dos serviços. As equipes de Saúde da Família são o elo mais próximo entre profissional e paciente e podem colaborar para a mudança no quadro epidemiológico da doença. Os profissionais que atuam diretamente com as gestantes necessitam de preparo técnico e um olhar interdisciplinar, dada a complexidade diagnóstica e assistencial do agravo.4
No Brasil, muito se discute a respeito do tema. Contudo, há escassez de estudos abordando as características epidemiológicas da ocorrência da sífilis gestacional e congênita em diversos locais.6 Assim, justifica-se a realização de estudos que contribuam para o conhecimento e entendimento da epidemiologia do agravo, permitindo um (i) melhor planejamento das medidas de educação e prevenção nos grupos mais vulneráveis e a (ii) avaliação das ações para a redução da transmissão vertical da sífilis.
Este trabalho teve como objetivo descrever o perfil epidemiológico dos casos notificados de sífilis em gestante e sífilis congênita no período de 2007 a 2014, no município de Palmas, estado do Tocantins, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), alimentado pelas fichas de notificação compulsória, que consistem em um formulário padronizado com informações sociodemográficas e clínicas preenchidas por profissionais de saúde.
O local do estudo foi Palmas, a capital do Tocantins, localizada na região central do estado, sobre uma área de 2.218,943 km² e contando com uma população de 272.726 habitantes em 2015.7
Foram incluídos todos os casos de sífilis gestacional e congênita em residentes de Palmas, registrados no Sinan nos anos de 2007 a 2014, que atenderam ao critério de definição de caso confirmado segundo o Ministério da Saúde.8 Foram excluídos os casos duplicados, identificados a partir da análise do Sinan. Foram estudadas as variáveis de acordo com as informações da ficha de notificação de sífilis em gestante e congênita, a saber:
a) Sociodemográficas maternas
- idade (em anos: 10 a 14; 15 a 19; 20 a 34; 35 a 49)
- raça/cor da pele (branca; preta; amarela; parda; indígena)
- escolaridade (analfabeto; 1ª a 4ª série incompleta do Ensino Fundamental; 2-4ª série completa do Ensino Fundamental; 3-5ª à 8ª série incompleta do Ensino Fundamental; Ensino Fundamental completo; Ensino Médio incompleto; Ensino Médio completo; Ensino Superior incompleto; Ensino Superior completo; ignorado)
b) Realização de pré-natal (sim; não; ignorada/em branco)
c) Obstétricas e de tratamento
- momento do diagnóstico materno (1º, 2º, 3º trimestre ou idade gestacional ignorada)
- classificação clínica da doença (primária; secundária; terciária; latente; ignorada/em branco)
- teste treponêmico (reativo; não reativo; não realizado; ignorado/em branco)
- teste não treponêmico (reativo; não reativo; não realizado)
- esquema de tratamento prescrito à gestante (penicilina G benzantina 2.400.000 UI; penicilina G benzantina 4.800.000 UI; penicilina G benzantina 7.200.000 UI; outro esquema; não realizado; ignorado/em branco)
- tratamento do parceiro (sim; não; ignorado/em branco)
d) Clínicas e laboratoriais do recém nascido
- titulação de VDRL (venereal disease research laboratory) em sangue periférico (reagente; não reagente; não realizado; ignorado/em branco)
- titulação de VDRL em líquor (reagente; não reagente; não realizado; ignorado/em branco)
- alteração do exame dos ossos longos (sim; não; não realizado; ignorado/em branco)
- evolução do caso (vivo; óbito por sífilis congênita; óbito por outras causas; aborto; natimorto)
Para o cálculo do coeficiente de prevalência de sífilis gestacional, utilizou-se o número de casos notificados por ano, dividido pelo número de nascidos vivos do mesmo ano e multiplicado por 1000. Para o cálculo da incidência da sífilis congênita, foi utilizado o número de casos novos por ano, dividido pelo número de nascidos vivos do mesmo ano e multiplicado por 1000.9 O número de nascidos vivos foi obtido do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc).
Os programas estatísticos - de distribuição livre - utilizados para a realização das análises foram o BioEstat 5.0 e o Epi Info 3.5.2; os dados foram tabulados pelo Tabwin 32.
O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro Universitário Luterano de Palmas sob o Parecer no 985.502, em 13 de março de 2015, e foi realizado em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
No período de 2007 a 2014, foram identificados em Palmas 171 casos de sífilis em gestantes e 204 casos de sífilis congênita. O ano de 2014 apresentou maior número de casos notificados de sífilis gestacional (n=39; 23,0%), com coeficiente de prevalência de 7,5/1000 nascidos vivos (Figura 1), significando um aumento de 38,8% em relação ao ano anterior e de 78,5% em relação à média dos anos anteriores (4,2/1000 nascidos vivos).
A maioria das 116 gestantes com sífilis (67,8%) encontravam-se na faixa etária de 20-34 anos (média de 25 anos; amplitude de 13 a 43 anos) (Tabela 1). Mais de dois terços dessas gestantes (71,3%) eram de cor da pele parda e 76,0% possuíam escolaridade de Ensino Fundamental incompleto a Ensino Médio completo. Em 51 (29,8%) casos, não houve tratamento do parceiro (Tabela 1).
a) Sinan: Sistema de Informação de Agravos de Notificação
b) FTA-Abs: teste de absorção de anticorpos treponêmico fluorescente
c) VDRL: venereal disease research laboratory
d) UI: Unidades Internacionais
Foram considerados como sífilis primária e/ou secundária 47,3% dos casos. Em 93,0% dos casos, pode-se identificar a titulação do VDRL, que variou entre 1:1 e 1:128, com mediana de 1:4 e moda de 1:2. Em 11 (7,0%) casos, o VDRL foi informado com uma titulação inexistente.
Das 167 gestantes que tiveram o VDRL reagente, 36,8% apresentaram teste treponêmico reagente (teste de absorção de anticorpos treponêmico fluorescente -[FTA-Abs]); e 2,9% tiveram resultado não reagente, sendo estas consideradas como casos descartados para sífilis.
De 2007 a 2014, a taxa de incidência anual de sífilis congênita elevou-se de 2,9 para 8,1 casos por 1000 nascidos vivos. Entre as mães dos casos que preencheram os critérios de definição para sífilis congênita, predominaram mulheres pardas (90,2%), na faixa etária de 20 a 34 anos (73,5%), com escolaridade de Ensino Médio incompleto ou completo (48,0%) (Tabela 2).
Do total de casos de sífilis congênita, 81,4% das mães realizaram o pré-natal na gestação e 48,0% foram diagnosticadas no pré-natal (Tabela 2). Das mães que realizaram o pré-natal, 83,0% não tiveram seus parceiros tratados.
A maioria das mães de casos de sífilis congênita notificados não receberam tratamento (54,4%), e parte importante recebeu tratamento inadequado (40,7%). A realização do tratamento adequado da gestante, ao longo da série histórica, manteve-se baixa (1,0%) (Tabela 2).
Entre os nascidos vivos com sífilis congênita, 51,0% apresentaram VDRL em sangue periférico reagente e somente 1,0% apresentaram alteração no raio-x de ossos longos; porém, este segundo exame não foi realizado em 68 (33,3%) dos casos (Tabela 3).
a) Sinan: Sistema de Informação de Agravos de Notificação
b) VDRL: venereal disease research laboratory
Ao se analisar a evolução dos casos de sífilis congênita, observou-se: 78,9% dos casos foram classificados como vivos; 2,5% tiveram óbito por sífilis; 3,4% foram a óbito por outras causas; 9,3% como aborto; e 5,9% natimortos (Tabela 3).
Discussão
Observou-se aumento na prevalência de gestantes com sífilis e crescente incidência de sífilis congênita em Palmas. Esse aumento também tem sido relatado em outras cidades do Brasil9 e do mundo.10 As mulheres com sífilis são, principalmente, jovens, pardas, com baixa escolaridade e que realizaram o pré-natal, perfil semelhante ao apresentado por outros estudos.11-15
Cabe ressaltar que a baixa escolaridade é considerada um marcador de maior risco para exposição às doenças sexualmente transmissíveis, devido a um limitado entendimento da importância das medidas de prevenção.16 Nesta pesquisa, verificou-se que a maioria das mães de crianças notificadas possuíam menor escolaridade. Este achado assemelha-se ao de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2013, em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais,17 e a resultados de outros estudos que confirmam a maior ocorrência de casos de sífilis em gestantes com baixa escolaridade.12,13,18
Observou-se uma elevada frequência do diagnóstico de sífilis no 2º e 3º trimestres da gestação,19 possivelmente relacionada ao (i) momento tardio quando as gestantes geralmente procuram o pré-natal e à (ii) baixa sensibilidade e qualidade da assistência à gestante. Esses resultados reafirmam a importância da detecção oportuna das gestantes com sífilis, assim como da oferta de oportunidades de tratamento correto para as gestantes e seus parceiros: a assistência pré-natal adequada é fundamental para a saúde materno-infantil e consequentemente, para a redução da sífilis congênita. Resultados semelhantes foram encontrados por alguns estudos realizados em municípios dos estados do Rio de Janeiro (1994 a 1999) e do Ceará (2000 a 2005), como também no Distrito Federal (2005 a 2009).18,19,20 Destaca-se que a melhora no diagnóstico oportuno das gestantes em Palmas pode estar relacionada à implantação dos testes rápidos nas unidades básicas de saúde (UBS) a partir de 2013.21
Segundo o Ministério da Saúde, há uma dificuldade no diagnóstico clínico de sífilis em gestantes, visto que o cancro duro não causa sintomas e geralmente, está localizado em locais de limitada visualização: parede vaginal, cérvix ou períneo.22 O presente estudo demonstrou que muitas gestantes foram classificadas equivocadamente, quanto à fase da doença, haja vista o alto percentual de mulheres na fase primária e terciária, diferentemente do que se espera do rastreamento, em que a fase latente é mais incidente.22 Ressalta-se que erros de interpretação e classificação da fase clínica da sífilis podem levar a tratamentos inadequados, e que devem ser classificados como sífilis de duração ignorada os casos em que não é possível estabelecer a evolução da doença e naqueles com ausência de sinais clínicos, sendo preconizado o tratamento desses casos com três doses de penicilina benzatina.3,22
Segundo dados do Centro de Controle de Doenças de São Paulo, 40% dos casos de sífilis congênita levam a morte fetal (abortamento espontâneo, natimorto) ou morte neonatal precoce.23 Neste estudo, em quase um quinto dos casos de aborto, as mães foram diagnosticadas com sífilis somente no parto e curetagem. Já para quase todos os recém-nascidos vivos (sintomáticos ou não), as mães foram diagnosticadas no pré-natal, demonstrando que a realização do pré-natal possibilita um desfecho mais favorável dos casos.
Em Palmas, observou-se elevado percentual de exames não realizados nos recém-nascidos com sífilis congênita (VDRL em líquor e raio X de ossos longos). A radiografia dos ossos longos pode oferecer auxílio diagnóstico, e apresentar, como alterações mais frequentes, periostite, osteomielite e osteocondrite.22,24 Outros estudos realizados em Belo Horizonte-MG, Caxias do Sul-RS e Natal-RN, entre os anos de 2001 e 2013,17,25,26 também verificaram o predomínio da ausência de informação do diagnóstico radiológico e do VDRL em líquor, o que pode ser prejudicial para o acompanhamento efetivo dos casos.
Este trabalho apresentou algumas limitações, inerentes às pesquisas com dados secundários - condicionados à cobertura e qualidade dos registros -, dada a possibilidade de sub-registros, subnotificações e baixa qualidade das informações registradas.
Os resultados apresentados levam à constatação da fragilidade dos serviços de saúde quanto ao controle da sífilis congênita. Foram encontradas diversas falhas importantes, com poder de influência no diagnóstico e acompanhamento, seja das gestantes durante o pré-natal, seja da criança, destacando-se o não tratamento adequado das mães e seus parceiros.
A atuação da Atenção Básica é essencial no combate à transmissão materno-fetal da sífilis, considerando-se que ela é a porta de entrada dos serviços de saúde, enquanto as equipes de Saúde da Família são o elo mais próximo entre profissional e paciente, tendo muito a colaborar para a mudança no quadro epidemiológico da sífilis congênita. Trabalhadores da Saúde que atuam diretamente com as gestantes carecem de envolvimento com a causa e preparo técnico, ademais de um olhar interdisciplinar, tendo em vista a complexidade diagnóstica e assistencial do agravo. É preciso que esses profissionais exerçam seu papel de forma consciente, de maneira a minimizar um risco totalmente evitável mediante um diagnóstico oportuno, tratamento adequado e educação em saúde das gestantes e seus parceiros.