Contribuições do estudo
Principais resultados
Entre 2010 e 2019, ocorreu redução significativa na taxa de incidência de tuberculose em ambos os sexos. Maior proporção dos casos ocorreu entre o sexo masculino, na Grande Florianópolis, em indivíduos de 20 a 49 anos e com ensino fundamental incompleto.
INTRODUÇÃO
A tuberculose é uma das principais questões de saúde a ser enfrentada em âmbito global.1,2 A doença atinge, em maior proporção, o sexo masculino, adultos, e habitantes de países de baixa renda, indicando uma ligação entre a ocorrência da doença e fatores socioeconômicos.3 Apesar de existirem medidas para prevenção e controle da tuberculose, elas não alcançam toda a população de maneira igualitária, principalmente por uma questão de financiamento e envolvimento político insuficientes.4
Em 2020, ocorreram 9,9 milhões de casos novos no mundo, equivalentes a 127 casos por 100 mil habitantes.5 No mesmo ano, foram diagnosticados 66.819 casos de tuberculose em território brasileiro, correspondendo a uma taxa de incidência de 31,6 casos/100 mil hab.6 A incidência de tuberculose no Brasil pode ser considerada baixa, quando comparada à de países africanos e do Sudeste Asiático (> 100 casos/100 mil hab.).5 No entanto, 57 países, localizados principalmente no Mediterrâneo Oriental, Europa e América do Norte, apresentaram baixa incidência de tuberculose (< 10 casos/100 mil hab.) em 2020.5
Santa Catarina estava entre os oito estados do país com menores taxas de incidência (16,9/100 mil hab.), e era um dos quatro com menores taxas de mortalidade (1,1/100 mil hab.) em 2020.6 Um estudo realizado no estado, entre 2002 e 2009, observou redução significativa da incidência de tuberculose, de 0,9% ao ano.7 Entretanto não foram realizados estudos de série temporal após aquele período, com vistas ao acompanhamento de novos casos e do perfil dos acometidos. Conhecer o cenário epidemiológico é necessário para a formulação de políticas públicas efetivas, direcionadas ao controle e monitoramento da infecção.
Diante desse contexto, o objetivo do estudo foi descrever o perfil dos casos de tuberculose e analisar a tendência temporal da taxa de incidência da doença em Santa Catarina, Brasil, segundo sexo, no período de 2010 a 2019.
MÉTODOS
Estudo descritivo e de série temporal da incidência de tuberculose, realizado com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) em 10 de junho de 2021.
Analisaram-se os casos notificados no estado de Santa Catarina, no período de 2010 a 2019, incluindo-se, apenas, casos novos e confirmados de tuberculose em adultos (≥ 20 anos). O Ministério da Saúde orienta que sejam considerados casos novos as pessoas com tuberculose registradas no Sinan nas seguintes opções: caso novo; não sabe; e pós-óbito.6,8
Foram analisadas as variáveis ‘sexo’ (masculino; feminino), ano de notificação (no período de 2010 a 2019), faixa etária (em anos: 20 a 29; 30 a 39; 40 a 49; 50 a 59; 60 a 69; 70 a 79; 80 ou mais), forma clínica da tuberculose (pulmonar; extrapulmonar; pulmonar e extrapulmonar), macrorregião de saúde de Santa Catarina (Planalto Norte e Nordeste; Grande Oeste; Meio Oeste e Serra Catarinense; Foz do Rio Itajaí; Alto Vale do Itajaí; Grande Florianópolis; Sul) e escolaridade (analfabeto; ensino fundamental incompleto; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; educação superior completa; educação superior incompleta).
As taxas brutas de incidência foram calculadas dividindo-se o número de casos novos na população do estudo pelo número de habitantes estimado pelo IBGE para o mesmo período, multiplicado por 100 mil habitantes. No sentido de evitar o efeito da diferença etária da população ao longo dos anos e permitir a comparação, foi realizada a padronização das taxas de tuberculose por idade, adotando-se o método direto. Utilizou-se a população-padrão do Brasil, estimada pelo censo demográfico de 2010.9
Na análise de tendência, foi empregado o modelo de regressão de Prais-Winsten.10 Este modelo atua na correção do chamado efeito de autocorrelação de primeira ordem, frequentemente encontrado em medidas de dados populacionais.10 Neste estudo, particularmente, avaliou-se a presença de autocorrelação mediante o teste de hipóteses Durbin-Watson e gráficos de autocorrelação e autocorrelação parcial da série temporal (não exibidos). A variável dependente foi o logaritmo das taxas de incidência padronizadas, e a variável independente, os anos da série temporal. Com isso, aplicou-se a fórmula proposta por Antunes e Cardoso10 para verificação da variação percentual anual (VPA). A VPA, também conhecida como annual percent change (APC), e os intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram obtidos por meio das seguintes fórmulas:
Onde: o valor de b e o erro-padrão (EP) são extraídos da regressão; e o valor de t é fornecido pela tabela da distribuição de probabilidade do t de Student, com 95% de nível de confiança. Logo, em se tratando de teste de hipótese em H0, assume-se tendência de estabilidade, e, caso não se rejeite H0 (p-valor ≥ 0,05), isto indica tendência de estabilidade e, para rejeição de H0 (p-valor < 0,05), tendência de crescimento ou declínio, conforme a variação positiva ou negativa. Inicialmente, a tabulação dos dados foi realizada utilizando-se o programa Microsoft Office Excel 2019®; posteriormente, os dados foram exportados e analisados com a utilização do software estatístico Stata 14.
Tratando-se de dados de domínio público e sem a identificação dos participantes, o projeto do estudo não necessitou ser submetido à avaliação de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
RESULTADOS
Foram notificados 16.446 casos novos de tuberculose no estado de Santa Catarina. Comparativamente, a maior proporção de casos ocorreu entre o sexo masculino (68,5%), indivíduos de 20 a 49 anos de idade (70,3%) e na macrorregião de saúde da Grande Florianópolis (25,1%). A forma clínica da maior parte dos casos foi confirmada como pulmonar (78,8%) e os indivíduos com ensino fundamental incompleto responderam pela maior participação por faixa etária (40,0%) (Tabela 1).
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 11.273 | 68,5 |
Feminino | 5.173 | 31,5 |
Faixa etária (em anos) | ||
20-29 | 4.095 | 24,9 |
30-39 | 4.063 | 24,7 |
40-49 | 3.417 | 20,7 |
50-59 | 2.673 | 16,2 |
60-69 | 1.418 | 8,6 |
70-79 | 572 | 3,4 |
≥ 80 | 208 | 1,5 |
Escolaridadea | ||
Analfabeto | 387 | 2,8 |
Ensino fundamental incompleto | 5.498 | 40,0 |
Ensino fundamental completo | 3.199 | 23,2 |
Ensino médio incompleto | 1.080 | 7,8 |
Ensino médio completo | 2.401 | 17,4 |
Educação superior incompleta | 432 | 3,1 |
Educação superior completa | 756 | 5,7 |
Forma clínica da tuberculosea | ||
Pulmonar | 12.967 | 78,8 |
Extrapulmonar | 2.698 | 16,4 |
Pulmonar e extrapulmonar | 779 | 4,8 |
Macrorregião de saúde de Santa Catarinaa | ||
Sul | 2.431 | 14,8 |
Planalto Norte e Nordeste | 3.200 | 19,5 |
Meio Oeste e Serra Catarinense | 1.011 | 6,1 |
Grande Oeste | 648 | 3,9 |
Grande Florianópolis | 4.119 | 25,1 |
Foz do Rio Itajaí | 3.124 | 19,0 |
Alto Vale do Itajaí | 1.868 | 11,6 |
a) Variáveis com dados faltantes no sistema.
Em todos os anos do período analisado, o sexo masculino apresentarou maiores taxas de incidência pela doença: em 2011, eles referiram a maior taxa padronizada da série temporal, com 51,7 casos a cada 100 mil habitantes. Entre o sexo feminino, a maior taxa foi observada no ano de 2010 (24,1/100 mil hab.), enquanto a menor foi registrada no último ano do período, 2019 (19,6/100 mil hab.) (Figura 1).
Observou-se declínio estatisticamente significante da taxa de incidência de tuberculose no sexo feminino (VPA: -1,92%; IC95% -2,63;-1,20), masculino (VPA: 1,86%; IC95% -2,68;-1,03) e para ambos os sexos (VPA: -1,77%; IC95% -2,37;-1,17). O sexo feminino apresentou o maior valor de VPA da série temporal: -1,92% (Tabela 2).
Sexo | VPAa % | IC95% b Limite inferior | IC95% b Limite superior | p-valor | Interpretação |
---|---|---|---|---|---|
Ambos | -1,77 | -2,37 | -1,17 | <0,001 | Declínio |
Masculino | -1,86 | -2,68 | -1,03 | 0,001 | Declínio |
Feminino | -1,92 | -2,63 | -1,20 | <0,001 | Declínio |
a) VPA: Variação percentual anual (annual percent change); b) IC95%: Intervalo de confiança de 95%.
DISCUSSÃO
A maioria dos casos de tuberculose ocorreu na população masculina, em indivíduos de 20 a 49 anos de idade, na Grande Florianópolis e em zonas urbanas. Pessoas com ensino fundamental incompleto tiveram maior proporção da doença e a maioria dos casos eram de acometimento pulmonar. O sexo masculino apresentarou maiores taxas e observou-se tendência de declínio das taxas de incidência no período, para ambos os sexos.
A incidência da tuberculose difere entre as grandes regiões brasileiras, podendo dificultar o controle da doença no país.11 No mesmo período, Unidades da Federação com tamanho populacional semelhante ao de Santa Catarina, como o, Maranhão e Goiás, registraram cerca de 19 mil e 9 mil casos, respectivamente, destacando-se Goiás, com número bastante inferior ao observado neste estudo.12 Essas diferenças podem estar relacionadas a questões socioculturais, econômicas, organização dos serviços de saúde e execução das ações dos programas de controle da tuberculose.11
Entre as formas clínicas, houve predomínio de tuberculose pulmonar, corroborando resultados de outros pesquisadores.13-15 Dois estudos transversais realizados em hospitais universitários brasileiros observaram predomínio da forma clínica pulmonar, com prevalências de 62,1% e 75,6%.13,15 Um estudo ecológico realizado em Natal, capital do Rio Grande do Norte, também observou maior prevalência da forma clínica pulmonar da doença, embora sem confirmação bacteriológica ou histológica.14 O resultado encontrado na presente pesquisa era esperado, dado o fato de o pulmão possuir condições adequadas para o crescimento bacteriano e ser a porta de entrada do Mycobacterium tuberculosis. Com isso, possivelmente, teria ocorrido disseminação por contiguidade, por via linfática ou hematogênica, principalmente em indivíduos com situação de imunossupressão.16,17
A maioria dos casos foi observada entre pessoas do sexo masculino e na faixa etária de 20 a 49 anos, perfil também identificado em outros estudos.13,14 Diferentes fatores podem explicar o maior diagnóstico da doença entre o sexo masculino, incluindo razões biológicas, socioculturais, comportamentais e ocupacionais.18,19 Em algumas culturas, autores apontam que homens podem viajar com maior frequência, realizar mais contatos sociais e passar mais tempo em ambientes propícios à transmissão, além de exercerem profissões de risco para a doença.18 Somados a isso, outros fatores de risco para a infecção por tuberculose, como fumar e beber, tendem a ser mais prevalentes em homens.18
Também foi observada maior taxa de incidência de casos em indivíduos com nível de escolaridade fundamental incompleto, corroborando a relação entre baixa escolaridade e tuberculose.20 A tuberculose é considerada um grave problema social, sendo a baixa escolaridade e a pobreza importantes fatores de risco para a doença: indivíduos nessas condições estão mais predispostos ao baixo autocuidado e encontram maior dificuldade no acesso a serviços de saúde.20,4
Moreira et al. e Pedro e Oliveira demonstraram que o adoecimento por tuberculose está diretamente relacionado à precariedade da infraestrutura urbana e de serviços básicos de saúde, alta densidade populacional, alimentação inadequada e abuso de substâncias ilícitas.21,22 Além disso, a ausência de informação, que pode estar atrelada a baixa escolaridade, aumenta a vulnerabilidade de grupos populacionais à doença.21
No que concerne ao número de casos novos por macrorregiões de saúde de Santa Catarina, observou-se maior concentração na Grande Florianópolis, uma das macrorregiões com maior densidade demográfica do estado,23 seguida pelas que incluem municípios litorâneos ou próximos do litoral, corroborando achados prévios indicativos de maior risco do aparecimento de tuberculose nessas macrorregiões.24 A heterogeneidade da distribuição dos casos de tuberculose pode ser explicada por diferentes fatores, entre eles a diferença na qualidade dos serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) em cada macrorregião.25 Outra possível explicação estaria relacionada ao fato de, geralmente, regiões com maior densidade populacional apresentarem favelas e maior dinâmica populacional, o que favorece a transmissão da doença. Outros autores confirmaram os achados do presente estudo, ao observarem autocorrelação espacial da tuberculose com concentração nos conglomerados urbanos das maiores cidades de Santa Catarina.26
Nesta pesquisa, observou-se declínio da taxa de incidência de tuberculose no estado de Santa Catarina em ambos os sexos. Um estudo que analisou a tendência de incidência de tuberculose em adultos de todos os estados brasileiros, entre 2001 e 2017, identificou padrão de diminuição semelhante em Santa Catarina, porém com queda mais acentuada, de 5,6% ao ano.27 Outro estudo desenvolvido no estado, com base em dados de notificações realizadas entre 2002 e 2009, também observou queda de novos casos, atribuindo esse achado à melhora no acesso e na qualidade dos serviços de saúde oferecidos.7 Essa redução também pode ser justificada pela melhoria progressiva na atenção à saúde, como o aumento da cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) no país e a realização do tratamento diretamente observado - conhecido pela sigla TDO - de até 90%.28
Nos últimos anos, as estratégias de controle da tuberculose em Santa Catarina têm se fortalecido, com a consequente redução da transmissão e a ocorrência de novos casos.29 Entre essas estratégias, destaca-se a manutenção das taxas de cobertura elevadas da vacina do bacilo de Calmette-Guérin (BCG) no primeiro ano de vida, o diagnóstico precoce e a implementação do tratamento supervisionado dos indivíduos com tuberculose. Além disso, Santa Catarina se manteve como um dos estados menos desiguais do país no período, segundo a síntese de indicadores sociais da população brasileira.9 Todavia, permanece a necessidade de consolidar ações eficazes para o enfrentamento da doença em populações prioritárias, definidas pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), tais como: população em situação de rua, populações privadas de liberdade, indígenas e pessoas vivendo com HIV/aids.29 Para combater a tuberculose, é necessário investir na articulação intersetorial, especialmente em políticas públicas de enfrentamento da determinação social da doença.
Destaca-se que o uso de dados secundários pode ser considerado uma limitação, no sentido da possível ocorrência de falhas no preenchimento das fichas e/ou subnotificação da doença. Contudo, uma investigação cujo propósito foi descrever a completude dos registros de casos de tuberculose em Santa Catarina, no período de 2007 a 2016, concluiu que os dados eram adequados para a orientação das ações de prevenção e controle da doença.30
Conclui-se que, na década analisada, houve redução significativa nas taxas de incidência de tuberculose em Santa Catarina, em ambos os sexos. O perfil dos casos foi predominantemente masculino, em indivíduos na idade economicamente ativa e com baixa escolaridade. A forma clínica mais comum foi a pulmonar, e os casos localizaram-se, em maior proporção, na Grande Florianópolis.