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Revista Pan-Amazônica de Saúde

versão impressa ISSN 2176-6215versão On-line ISSN 2176-6223

Rev Pan-Amaz Saude v.1 n.3 Ananindeua set. 2010

http://dx.doi.org/10.5123/S2176-62232010000300002 

ARTIGO HISTÓRICO | HISTORICAL ARTICLE | ARTÍCULO HISTÓRICO

 

A medicina no Estado do Pará, Brasil: dos primórdios à Faculdade de Medicina

 

Medicine in Pará State, Brazil: from the beginning to the establishment of the School of Medicine

 

La medicina en Estado de Pará, Brasil: de los primordios a la Facultad de Medicina

 

 

Aristoteles Guilliod de Miranda

Hospital Universitário João de Barros Barreto, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil

Endereço para correspondência
Correspondence
Dirección para correspondencia

 

 


RESUMO

A prática de medicina, a organização dos serviços de saúde e o início do ensino médico no Estado do Pará são apresentados em uma perspectiva cronológica desde os primeiros relatos, após a chegada de Francisco Caldeira Castelo Branco, em 1616, até a fundação da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, em 1919. Alguns fatos históricos são destacados e contextualizados, assim como mencionados determinados personagens que tiveram participação efetiva nos acontecimentos relatados. Também são comentados aspectos relacionados ao ensino médico, tanto no âmbito nacional quanto no Estado do Pará, e sua importância para a Região Amazônica e parte do nordeste brasileiro.

Palavras-chave: História da Medicina; Serviços de Saúde; Escolas Médicas.


ABSTRACT

The practice of medicine, the organization of health services and the start of medical education in Pará State, Brazil, are presented from a chronological perspective, from the first accounts after the arrival of Francisco Caldeira Castelo Branco in 1616 to the establishment of the Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará (Pará School of Medicine and Surgery), in 1919. Some historic facts are highlighted and contextualized, and certain individuals who effectively participated in the events described are mentioned. Aspects related to the teaching of medicine are also described, both at the national level and in Pará State, and its importance to the Amazon Region and part of northeastern Brazil is discussed.

Keywords: History of Medicine; Health Services; Schools, Medical.


RESUMEN

La práctica de la medicina, la organización de los servicios de salud y el inicio de la ensenanza médica en el Estado de Pará, Brasil, se presentan desde una perspectiva cronológica desde los primeros relatos, luego de la llegada de Francisco Caldeira Castelo Branco, en 1616, hasta la fundación de la Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará (Facultad de Medicina y Cirugía de Pará), en 1919. Algunos hechos históricos son destacados y contextualizados, y también se mencionan determinados personajes que tuvieron participación efectiva en los sucesos relatados. También se comentan aspectos relacionados a la ensenanza médica, tanto en el ámbito nacional como en el Estado de Pará, y su importancia para la Región Amazónica y parte del nordeste brasileno.

Palabras clave: Historia de la Medicina; Servicios de Salud; Escuelas Médicas.


 

 

A chegada de Francisco Caldeira Castelo Branco à foz do rio Amazonas, em 1616, e a construção do Forte do Presépio, na desembocadura do rio Pará, iniciando o que viria a ser a Cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, marcam o início do período de colonização portuguesa na região, com o intuito de acabar com a disputa do território pelos outros países europeus, pois ingleses, holandeses e franceses por ali já mantinham algumas bases comerciais1.

Após pouco mais de 30 anos da fundação de Belém foi instalado o pequeno hospital da Santa Casa de Misericórdia, instituição que já prestava serviços à população desde 16192. Somente em 1655 aportariam em Belém, de passagem, os primeiros médicos que chegaram à região. Eram Daniel Paneli, Antonio de Mattos e Domingos de Souza, que faziam parte da comissão para a demarcação de limites dos domínios de Portugal e Espanha2. Cento e dezessete anos após a chegada de Castelo Branco é que o primeiro médico se instalaria em Belém: o dr. Antonio Caldeira Sardo Villa Lobo, com um salário de 100 mil réis por ano, e cuja chegada coincide com violenta epidemia de varíola. Em 1751, chegaria o dr. Manoel Ignacio de Andrade; em 1753, o dr. João de Almeida, médico do 1o Regimento de Infantaria da 1a linha2.

Em 1782, tendo assumido a diocese de Belém, o bispo D. Frei Caetano Brandão fundava outro hospital de caridade, denominado Hospital do Senhor Bom Jesus dos Pobres, construído no Largo da Sé, ao lado do Forte do Castelo2.

Em 1783, para uma população de 11 mil habitantes, havia dois médicos em Belém: o dr. José Gomes dos Santos, graduado em Medicina e Cirurgia por Montpelier-França, agregado da Faculdade de Coimbra e delegado do Protomedicato nas Províncias do Pará e Maranhão; e o dr. Agostinho João Printz, médico alemão do Hospital Militar, exercendo o cargo de físico-mor no Protomedicato. Com tantas atribuições, esses médicos retornariam à metrópole poucos meses depois. Nesse tempo, existiam na Cidade seis boticários2.

A situação da assistência médica à população da colônia continuou precária. Até 1768 só havia uma farmácia de segunda classe. Em 1788, o Senado da Câmara (equivalente, hoje, à Câmara Municipal) oficiou ao governador sobre a necessidade da construção de um lazareto em uma das ilhas da baía de Santo Antônio, para a quarentena dos navios de transporte de escravos africanos para cá trazidos, na tentativa de estabelecer uma barreira contra a varíola, que grassava entre aqueles3. Em 1789, o vice-rei Luiz Vasconcelos reclamava à metrópole alegando que, naquela ocasião, somente quatro médicos exerciam suas atividades no Brasil2 *. Em 1793, houve uma nova e grande epidemia de varíola em Belém. Para combatê-la, só existiam um médico e um cirurgião2 .

Em 1799, esteve em Belém, vindo de Lisboa, o cirurgião Francisco Xavier de Oliveira. Seu objetivo era fazer observações e experiências com sondas e outros instrumentais de uso médico, como velas, confeccionados com goma elástica oriunda da seringueira. Ao retornar a Lisboa, no mesmo ano, anunciaria a venda do instrumental, que levara em grande quantidade2.

Até a chegada da família real portuguesa a Salvador, em 1808, fugindo das tropas napoleônicas, não existia, oficialmente, ensino médico no Brasil. A atividade médica obedecia a determinadas prescrições legais compatíveis com as necessidades e as circunstâncias de então. Inicialmente, havia a figura do físico-mor e do cirurgião-mor do reino, encarregados de fiscalizar o exercício da profissão em Portugal e suas colônias, além de expedir as licenças para o exercício, após aprovação oficial dos autos de habilitação dos que desejassem obter suas cartas. Com a criação da Junta do Protomedicato, esse encargo passou à nova instituição, que referendava a avaliação feita pelos deputados ou pelo Senado da Câmara.

Nesse tempo, as pessoas que comprovassem haver frequentado por quatro anos qualquer hospital, onde aprendiam seu ofício na prática com um cirurgião já habilitado, podiam habilitar-se ao exercício da cirurgia, bastando realizar sumário exame perante os deputados2. Em geral, os candidatos apresentavam atestados dando conta da sua competência e da necessidade de sua presença no lugar onde moravam. Já os físicos eram aqueles que haviam estudado e se formado nas universidades europeias. Mesmo tendo sido enviados à metrópole devendo depois retornarem ao Brasil, em geral preferiam por lá ficar ao invés de enfrentar a realidade colonial no Brasil. Quando muito, ao retornarem à colônia, concentravam-se nas cidades e vilas maiores, deixando o interior totalmente desprovido destes profissionais§.

A necessidade de profissionais para cuidar da saúde da corte então transferida (estimada em torno de 10 mil pessoas) e a consequente dificuldade de contato com a metrópole por conta das ações das tropas francesas, que impediam que de lá viessem os cirurgiões aprovados pela Junta do Protomedicato e os físicos diplomados em Coimbra, fez com que D. João VI, por proposta do dr. José Correa Picanço||, assinasse, em 18 de fevereiro de 1808, um decreto criando na Bahia a Escola de Cirurgia. Ao transferir-se para o Rio de Janeiro, seis meses depois, D. João VI assinaria decreto semelhante naquela Cidade4. A partir daí, professores foram nomeados para ensinar anatomia teórica e prática. Pelo decreto, as escolas serviam à instrução dos cirurgiões, que ignoravam a anatomia, a fisiologia e a medicina prática, bem como para os alunos que se destinavam à cirurgia no Exército e na Marinha. O curso tinha duração de quatro anos, sendo exigido, na matrícula do primeiro ano, que o aluno soubesse ler e escrever corretamente4. Ao final do curso, o aluno requeria uma certidão à Escola, a qual declarava se ele estava capacitado para prestar o exame e encarregar-se da saúde pública. De posse do certificado, o aluno era submetido ao exame e, caso fosse aprovado, seus documentos eram encaminhados a Lisboa, onde o diploma era expedido mediante o pagamento dos emolumentos. Tais diplomas permitiam: "sangrar, sarjar, aplicar bichas e ventosas, curar feridas, tratar de luxações, fraturas e contusões; era-lhes vedado administrar medicamentos e tratar das moléstias internas a não ser aonde não houvesse médicos; e como tais só eram tidos os diplomados ou licenciados pela Universidade de Coimbra"5.

Funcionando de maneira precária, as escolas somente passariam a ter personalidade jurídica através do decreto de 3 de outubro de 1832, que transforma as Academias Médico-Cirúrgicas em Faculdades de Medicina, com significativas mudanças em sua organização, a começar pela admissão, para a qual passou a ser exigida a idade mínima de 16 anos, conhecimento de línguas (latim e inglês ou francês), de filosofia racional e moral, de aritmética e de geometria, e a apresentação de um atestado de bons costumes emitido pelo Juiz de Paz da freguesia. A taxa de matrícula era de 20$000 réis, quantia elevada para a época.

No Pará, as coisas evoluíram lentamente no âmbito da saúde e da assistência. As frequentes epidemias que grassavam no Estado, a distância da sede da corte, ao lado de uma economia que ainda não conhecia o fausto que seria propiciado pela borracha, expunham tanto o estado incipiente do conhecimento científico quanto a precariedade de profissionais e serviços.

Em 1818, o dr. Antonio Correia de Lacerda foi contratado como médico assistente da esposa do governador e capitão general, coronel Antonio José de Souza Manuel de Menezes, sétimo conde de Villa Flor. No ano seguinte, Belém sofreria as consequências de mais uma epidemia de varíola, sendo na ocasião aplicada, pela segunda vez, por ordem do governador, a vacina descoberta por Jenner e cuja aplicação ficou aos cuidados do dr. Antonio Correia de Lacerda, que ocupava a função de físico-mor. Além disso, foi indicada a construção de um hospital para variolosos, afastado da cidade, e foram organizadas, pela primeira vez, turmas para a desinfecção e o expurgo das ruas da cidade, com o uso de ácido oximuriático, com o qual se produziam fumigações em todas as esquinas. Mesmo com estas medidas, a mortalidade foi bastante elevada. Para uma população de pouco mais de 12 mil habitantes, morreram 2.200 pessoas2.

Em 5 de abril de 1826, o dr. Marcellino José Cardoso foi nomeado para exercer o cargo de médico do partido do senado da Câmara Municipal de Belém, em substituição ao dr. Antonio Finochio, que falecera. Considera-se o dr. Marcellino* o primeiro médico paraense a exercer sua profissão em Belém2. Durante a Cabanagem, em 1835, foi instalada na fazenda Sant'Anna, no Marajó, uma enfermaria encarregada de tratar os doentes da Fortaleza da Legalidade, sendo indicado para dirigi-la o cirurgião Francisco Pinto de Moraes. A enfermaria seria extinta pouco depois, com a posse do marechal Soares de Andrea2.

No final da década de 1830, três paraenses que haviam se formado em medicina retornaram a Belém. Eram eles os drs. Francisco da Silva Castro, Joaquim Frutuoso Pereira Guimarães e José da Gama Malcher. Todos teriam posição de destaque na sociedade paraense2 .

Em dezembro de 1850, um novo surto de febre amarela fez o presidente da província tomar algumas medidas de combate, como o uso do fumo de pólvora como desinfetante, o que se revelaria inócuo. Outra medida foi impedir os enterramentos nas igrejas, mandando abrir um novo cemitério, maior e mais afastado da área urbana, que foi o cemitério de Nossa Senhora da Soledade. O anterior, situado em área da atual Praça da República, seria desativado2.

Para combater a epidemia de cólera que grassou em Belém em 1855, o presidente da Comissão de Higiene, dr. Silva Castro, determinou a quarentena, defronte à ilha de Tatuoca, para os navios considerados suspeitos, sob a supervisão de um navio de guerra, além de acelerar a conclusão do lazareto começado naquela ilha2.

Um fato inusitado aconteceria em 1856. Um curandeiro em Santarém, Antonio Francisco Pereira da Costa, gozava tanto prestígio oferecendo a cura da lepra que o governo imperial arbitrou-lhe uma pensão mensal de 100 mil réis, além de sustentar um lazareto que ele mantinha próximo de sua casa. Uma comissão de médicos, composta pelos drs. Camilo José do Valle Guimarães, Américo Marques Santa Rosa e Francisco da Silva Castro, foi averiguar os fatos. Em vista do relatório da comissão, que concluiu pela ineficácia do remédio, à base de uma planta conhecida por paracary, o governo suspendeu a dotação orçamentária para o curandeiro2.

A partir de 1864, o serviço clínico do hospital da Santa Casa, que era feito apenas por um médico - o que era considerado insuficiente -, passou a ser executado pelos drs. José da Gama Malcher, pela clínica, e Camillo do Valle Guimarães, pela cirurgia, tendo como adjunto o dr. Antonio Andrews Capper2.

Em 1862, a Ordem Terceira de São Francisco informou ter mandado aprontar uma das salas da sua sede para funcionar como enfermaria, assim iniciando o hospital da Ordem Terceira. Em julho de 1864, a diretoria da irmandade ordenou a construção de uma casa de três andares para servir de hospital, cuja inauguração aconteceria, solenemente, em 1 de janeiro de 1867. O hospital contava com seis enfermarias2. Em 4 de agosto do mesmo ano, seria realizada ali a primeira cirurgia de catarata, tendo como cirurgião o dr. Antonio Andrews Capper, auxiliado pelos drs. Gama Malcher, Americo Santa Rosa, Augusto Thiago Pinto e Ferreira Cantão2.

Durante a década de 1870, o hospital da Santa Casa recebeu muitos melhoramentos, novos instrumentais cirúrgicos, doados pelo dr. Luiz Ferreira Lemos, que conseguiu ainda uma máquina para choques elétricos, a primeira de Belém. Também se observa um esboço de organização dos serviços de saúde no período, com a nomeação do médico Frederico Hermeto Pereira de Lima para o serviço de lepra em Tucunduba e de Firmino José Dória, médico dos alienados2.

No dia 27 de maio de 1877, foi inaugurado o Hospital D. Luiz I, da Sociedade Portuguesa Beneficente2 .

Em 1887, a Santa Casa criou mais duas enfermarias: uma especialmente para obstetrícia, denominada "Sala da Maternidade", e a outra para o tratamento de crianças. Em 1889, aquele hospital contava com serviços especializados de clínica cirúrgica, com José Paes de Carvalho e Antonio Joaquim da Silva Rosado; clínica médica, com Antonio Ó de Almeida e Clemente Felix Penna Soares; clínica obstétrica, com Basilio Magno de Araujo; clínica de olhos, com Geminiano de Lyra Castro; clínica dermatológica e sifiligráfica, com Miguel de Almeida Pernambuco; e clínica de crianças, com João José Godinho2.

Com a proclamação da República surge um esboço de serviço público de saúde. Assim, em 1891, é criada uma nova organização dos serviços de higiene composta por um inspetor, um ajudante, dois médicos vacinadores, médico demografista e um químico. Em 1894, o Estado seria dividido em 16 regiões sanitárias, com a nomeação de um médico residente para cada uma delas. O serviço seria ampliado no governo Lauro Sodré, em 1886, surgindo as seções técnicas, divididas da seguinte maneira: primeira seção, compreendendo o Laboratório de Análises, composto por um diretor médico, um químico e um bacteriologista; segunda seção, compreendendo o Instituto Vacinogênico Animal e composto por um diretor médico, um ajudante médico, um veterinário e vacinadores; terceira seção, compreendendo a Demografia Sanitária e Meteorológica, com um diretor médico; quarta seção, compreendendo a Profilaxia e Desinfecção, composta por um diretor médico e quatro delegados médicos2.

Em 1898, o governador Paes de Carvalho promoveu a remodelação dos serviços de saúde do Estado, agregando aos serviços já existentes os serviços de bromatologia, o laboratório de farmácia, a polícia higiênica e sanitária dos animais e os lazaretos. Em 14 de fevereiro de 1900, seria inaugurado o Hospital São Sebastião - para os variolosos - dirigido pelo dr. Olegário Costa7, e, em 29 de abril do mesmo ano, o Hospital Domingos Freire, destinado ao isolamento e tratamento da febre amarela, dirigido pelo dr. Pontes de Carvalho. O novo hospital da Santa Casa seria inaugurado, provisoriamente, em 1 de agosto do mesmo ano, com o nome de Hospital de Caridade, sendo removidos do antigo Hospital Senhor Bom Jesus dos Pobres 177 doentes de ambos os sexos2.

Ainda no governo Paes de Carvalho acontece um fato digno de registro: em 22 de maio de 1899 o governo editou a Lei no 629 que criava cursos superiores no Estado, inclusive medicina8. Referida lei jamais saiu do papel, atrasando o desenvolvimento científico do Estado em mais de 20 anos*.

Ao longo de todo o século XIX, houve o predomínio do assim chamado "ensino livre" no Brasil. Mesmo com as faculdades oficiais, os estudantes também podiam frequentar cursos particulares ou livres9. A legislação do ensino de 1832 facultava a qualquer pessoa a organização de cursos, sem interferência das faculdades10. Um decreto de 1879 confirmava ser livre o ensino superior no Império11. Com toda esta facilidade, por quase 100 anos existiram no Brasil apenas as duas faculdades de medicina criadas por D. João VI, uma vez que a terceira escola a ser criada, a de Porto Alegre, somente o foi em 1898.

Em 1895, um artigo denominado "O micróbio como nivelador social", de autoria do médico norte-americano Cyrus Edson, chamaria a atenção da comunidade científica. Segundo ele, a tão desejada igualdade entre os homens, proposta pelos socialistas, seria alcançada não por grupos políticos ou por revoluções, mas, simplesmente, por "organismos vivos, infinitamente pequenos, invisíveis a olho nu": os micróbios, causadores de doenças infectocontagiosas12. Por conta desta realidade, com suas implicações sociais e, notadamente, econômicas num mundo que iniciava os processos de industrialização, urbanização e crescimento populacional, era fundamental a aplicação de medidas saneadoras, a fim de que os projetos colonialistas pudessem ser levados a cabo.

Decerto este foi um dos fatores que trouxe a Belém, nos meados de 1900, os drs. Herbert E. Durham e Walter Myers em uma comissão da Liverpool School of Tropical Diseases and Medical Parasitology, a Yelow Fever Expedition, com a finalidade de realizar estudos sobre a febre amarela no Pará. Recebida com toda pompa e circunstância pelas autoridades do Estado, a comissão ficou hospedada em um chalé nas dependências do Instituto Lauro Sodré13 e instalou seu centro de atividades técnicas no Hospital Domingos Freire, sendo-lhes franqueado, também, os Laboratórios de Análises Clínicas e de Bacteriologia da Inspetoria do Serviço Sanitário2. A expedição teria um fim trágico, com a morte de Myers por febre amarela em janeiro de 1901, na época atribuída à contaminação numa necrópsia, e não, como hoje se sabe, por mosquitos vetores. Durhan, que também fora contaminado, se restabeleceu e prosseguiu com o trabalho, "mas a nenhum resultado positivo e concludente abordaram os trabalhos dos dois estimaveis profissionais sobre a genese e infecção da febre amarela"13.

As reformas nos serviços de saúde executadas por Paes de Carvalho tiveram continuidade no governo seguinte, de Augusto Montenegro. Neste governo, houve a unificação de todos os serviços médicos no Estado. Foi estabelecido o serviço clínico para todos os institutos de Belém, incluindo a penitenciária e o regimento militar, bem como criado um serviço para exames médico-legais e outro para verificação de óbitos. O número de inspetores sanitários foi aumentado para 17. No Palácio do Governo foram instaladas diversas seções de higiene; um grande laboratório químico e bacteriológico; foi adquirido material apropriado para expurgo das casas e tornou-se obrigatória a remoção dos doentes acometidos de doenças infectocontagiosas2 *.

Essas melhorias seriam decisivas para o combate à epidemia de peste bubônica surgida em outubro de 1903. Prevista a epidemia, já no governo Paes de Carvalho haviam sido importadas vacinas em grande quantidade. Além disso, Montenegro estabeleceu uma estação sanitária na ilha de Tatuoca, em frente a Belém, com desinfectórios para o expurgo das embarcações, hospedaria, armazém para as mercadorias suscetíveis de transmitirem a doença e uma farmácia. Também criou a Comissão do Saneamento de Belém e equipou plenamente o Serviço Sanitário Marítimo, tornando o Pará o Estado mais bem aparelhado do norte do País para o combate à peste bubônica. Ao primeiro caso notificado e confirmado procedeu-se à vacinação da população, à desinfecção das casas onde havia doentes e sua remoção para o Hospital São Sebastião, além de combate mortal aos ratos. A epidemia foi considerada debelada em abril de 19042.

Se o início do século XX marcou uma crescente participação do Estado, em especial no âmbito da saúde pública, com a criação, a organização, o aparelhamento e ampliação dos serviços, o meio científico buscava, também, constituir-se e solidificar-se como "classe" e "organismo social"14. Assim, no final do século XIX surge entre a classe médica e farmacêutica a ideia de criação de uma agremiação científica congregando ambas as classes, iniciativa esta do governador e médico Paes de Carvalho. Deste modo, em 8 de novembro de 1897 seria criada a Sociedade Médico-Farmaceutica do Pará, "com o fim de tratar dos interesses scientificos e sociaes"2. Esta Sociedade, que lançaria três anos depois o Pará-Médico, a primeira publicação médica do Estado, sofreria uma cisão em 1900, culminando com a criação da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará. Ainda em 1900, o dr. José Godinho foi nomeado delegado do Governo do Pará no Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, realizado no Rio de Janeiro.

No início dos anos 1900, procederam-se a reformas e ampliações no hospital da Santa Casa: em 1905 foram criados o Museu Anatomopatológico e o Laboratório de Bacteriologia Clínica. Além disso, foram acrescidos ao corpo clínico daquele hospital mais 11 médicos; em 1907 foi inaugurada mais uma enfermaria para 40 leitos. No mesmo ano é decidida a construção de uma nova sala de cirurgia, "moldada nos preceitos da asepsia moderna, assim como a importação e installação dos apparelhos de asepsia e acquisição de novos instrumentos de cirurgia para completar o arsenal cirúrgico do hospital"2.

As condições sanitárias no Brasil nas primeiras décadas do século XX eram bastante precárias. A Primeira República veria surgir um movimento de reforma da saúde pública, de vital importância para a construção de uma ideologia de nacionalidade e para a formação do Estado brasileiro12. Tal momento histórico traria grandes repercussões socioeconômicas, particularmente para a Região Amazônica, que ainda ocupava um lugar de destaque na economia brasileira por conta da borracha, e que continuava atraindo investimentos estrangeiros, como, por exemplo, a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré e o porto de Belém. E para que os investimentos continuassem e, também, o comércio exterior não fosse abalado, era necessário o saneamento das grandes cidades e seus portos, ligados diretamente à Europa e aos Estados Unidos, bem como das áreas produtoras de matérias primas, como o vale amazônico. Neste sentido, em parceria com a Companhia Madeira-Mamoré Railways e a Port of Pará, em 1910, o governo paraense contrata os serviços do dr. Oswaldo Cruz, visando à erradicação da febre amarela, que se tornara endêmica no Estado desde 1850, assim como estabelecer medidas gerais de saneamento para a região, que tinha a malária como um dos seus maiores flagelos13. A febre amarela seria considerada extinta no ano seguinte.

Os anos de 1910 marcaram internacionalmente o final da belle époque, simbolizando, também, dissolução da organização econômica do século XIX. Esta fase coincide com o declínio da atividade extrativista da borracha, pela perda do monopólio da sua produção, suplantada em volume e, consequentemente, em preço, pelo produto da Malásia, obtido a partir de plantações organizadas cientificamente, causando a débâcle amazônica15.

Se durante o ciclo da borracha no Pará os reflexos se fizeram sentir em termos culturais e educacionais, tais ações resultaram apenas na expansão da rede escolar, notabilizando-se, também, pelo aspecto arquitetônico das escolas, na chamada "monumentalização" dos edifícios públicos destinados a este fim, como os institutos Gentil Bitttencourt e Lauro Sodré16. Todo este progresso econômico não resultou na criação de cursos superiores, sendo os únicos do período a Faculdade Livre de Direito (1902) e a Escola de Farmácia (1903), ambos funcionando precariamente. Tal atitude pode ser interpretada como reflexo das ações da elite paraense, surgida com a borracha, que mais facilmente mandava seus filhos estudar na Europa, mantendo a dependência intelectual e "emocional" da metrópole. Ou significava uma prosperidade "efêmera e superficial", com a manutenção de uma economia ainda vivendo e praticando usos do período colonial15. Deste modo, seria desnecessário estimular a formação de "doutores" no próprio Estado.

É nesse contexto histórico, desfavorável economicamente, que surge a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará. Fundada em 12 de julho de 1914, foi instalada oficialmente em 15 de agosto do mesmo ano, quando tomou posse sua primeira diretoria. Esta data ficaria registrada para os festejos dos anos de criação. Constituída pela elite médica do Estado, sob a presidência do dr. Camilo Salgado, a Sociedade se propunha a zelar pela ética médica, defender os interesses da classe, discutir questões médicas e científicas, organizar congressos e conferências, difundir ensinamentos de higiene para a população, manter comissões científicas para os diversos ramos das ciências médicas, criar uma revista e fundar uma biblioteca e arquivo, entre outras coisas17. A revista manteria o nome da editada pela Sociedade Médico-Farmacêutica do Pará: Pará-Médico.

A Sociedade Médico-Cirúrgica, cumprindo seus estatutos, apresentou, em 1915, propostas relativas ao saneamento do Pará, tais como: criação de postos médicos nos municípios; distribuição de material de propaganda nos municípios visando o esclarecimento da população quanto às medidas de profilaxia contra as diversas endemias; formação de ligas contra a malária, públicas ou privadas; adoção de providências para a utilização do quinino em todo o Estado como profilaxia da malária17.

Em outra oportunidade, contando com a presença do dr. Lauro Sodré, governador do Estado, e do corpo médico de Belém, discutiu-se, em sessão extraordinária, em agosto de 1917, a questão da lepra. Na reunião foram apresentadas as seguintes sugestões: organização estatística de todos os leprosários do Estado; construção de hospital-colônia em uma ilha ou no continente; isolamento familiar, com vigilância médica, de doentes que preenchessem as leis de higiene; impedir, tanto quanto possível, a entrada de novos casos no Estado, tanto do estrangeiro quanto dos demais pontos do país; proteção à família do paciente sem condições de sustentar-se. Na mesma reunião foi proposta, como medida profilática geral, a telagem dos hospitais17.

Se a criação da Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará coincide com o início de uma fase econômica desfavorável para o Estado, não se pode deixar de levar em consideração que o período de fausto econômico anterior e a consequente organização de uma elite intelectual médica, no caso representada pela Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará, contribuíram para a "gestação" de um curso de medicina para o Estado.

Outro fator foram as condições sanitárias da região, assolada constantemente por grandes epidemias, como a cólera e a febre amarela, sem contar com a endemicidade da varíola, malária e tuberculose, entre outras doenças, com reflexo na economia e no desenvolvimento das cidades.

Devido às péssimas condições de saneamento do Estado no início do século XX, medidas necessitariam ser adotadas para modificar esse panorama. O trabalho de Oswaldo Cruz, dentro da perspectiva das novas diretrizes da Era do Saneamento, resultaria na melhoria das condições sanitárias. Como reforço à empreitada saneadora, era necessária a formação de pessoal capacitado - entenda-se médicos - para aplicar na área da saúde os ares desenvolvimentistas já presentes nos outros setores da sociedade, pois o número de profissionais em atividade em Belém era muito pequeno*. Ao lado disso, a borracha atraíra muita gente para o Norte: não apenas os nordestinos fugitivos das secas que arrasavam aquela região, mas uma nova elite intelectual, que se formara nas faculdades estrangeiras ou nas do Rio ou da Bahia e que aqui chegava para tentar a vida, contando com a colaboração dos membros da elite econômica local, cujos filhos haviam retornado a Belém depois de formados.

Destaque também para o início da tentativa de consolidação da medicina como classe e organismo social, com os médicos se fazendo presentes por meio da imprensa e outras publicações, participando de associações científicas e literárias, debatendo problemas, divulgando os feitos nacionais e as conquistas científicas, compondo a "imagem da autoridade médica, do herói da cura e do benemérito cidadão"14. A medicina científica buscando seu lugar na sociedade, com os médicos amparados no prestígio da profissão ocupando cargos na vida pública, firmando-se como locus de conhecimento e de poder.

Ainda assim, chama atenção a criação de um curso de medicina no Pará, em 1919, em plena depressão econômica, após o de odontologia (1914) e de agronomia e veterinária (1918). A justificativa seria a de que "uma força de retardamento atuara neste sentido, impedindo assim que esse incremento se processasse no período sócio-economicamente propício"16. Ou seria porque a crise da borracha fizera "secar a fonte" dos recursos da burguesia paraense, que, deste modo, teve necessidade de criar condições para a reorganização da elite intelectual paraense, agora utilizando os meios locais?

Ao lado deste cenário regional, o século XX revelaria um "lento e profundo processo de transformação do conhecimento médico e de seu mercado de trabalho", com o desenvolvimento científico e tecnológico da medicina levando-a à especialização franca, refletindo-se nos currículos dos cursos, e também pela introdução de equipamentos permitindo uma melhora na precisão diagnóstica9. Isto tudo alteraria o modo de fazer medicina, iniciando a fase da "medicina tecnológica", cujo apogeu seria a partir dos anos 50 daquele século.

Em meio a isso tudo surge a Faculdade de Medicina do Pará, 20 anos depois da lei editada por Paes de Carvalho e organizada por "um grupo de medicos clínicos, nesta capital, desejosos de espalhar as sciencias que professam e de ensinar sua arte"18. Fundada em 9 de janeiro de 1919, iniciaria suas atividades em 1 de maio do mesmo ano, conforme atestaria Lauro Sodré três anos depois, em carta para Camillo Salgado, "num cenário nebuloso, cheio de indefinições"19.

A Faculdade de Medicina do Pará, posteriormente Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, a oitava a ser criada no Brasil, até a década de 1960 desempenharia um papel preponderante para a medicina em toda a Região Amazônica e parte do nordeste brasileiro, sendo considerada peça fundamental na criação da Universidade Federal do Pará. Uma história a ser contada.

 

REFERÊNCIAS

1 Guerreiro K. Estratégias da colonização portuguesa na Amazônia. Examãpaku [Internet]. 2008 [citado 2008 mar 21]. Disponível em: http://www.ufrr.br/revista/index.php/examapaku/article/view/67.

2 Carvalho P. Evolução da Medicina no Pará. Pará-Medico. 1922 set;3(10):205-28.

3 Vianna A. As epidemias no Pará. 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará; 1975. 220 p.

4 Oliveira NA. Ensino médico no Brasil, desafios e prioridades no contexto do SUS: um estudo a partir de seis estados brasileiros. [tese]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto Oswaldo Cruz, Ensino em Biociências e Saúde [Internet]. 2010 [citado 2010 mar 26]. Disponível em: http://www.abem-educmed.org.br/pdf_tese/tese_neilton.pdf.

5 Escola de Cirurgia da Bahia. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832­1930) [Internet]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz; 2010. [citado 2010 mar 26]. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/P/verbetes/escirba.htm.

6 Meira COB. Médicos de outrora no Pará. Belém: Grafisa; 1986. 480 p.

7 Pará-Medico, Anno I, no 1, nov 1900.

8 Brasil. Lei no 629, de 22 de maio de 1899. Criar uma escola médica no Pará. Diário Oficial da União, Belém, 24 mar. 1899.

9 Pereira Neto AF. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. p.109-232.

10 Brasil. Lei de 3 de outubro de 1832. As Academias Medico-cirurgicas do Rio de Janeiro, e da Bahia serão denominadas Escolas, ou Faculdades de Medicina [Internet]. [citado 2010 mar 28]. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id = 82870.

11 Brasil. Decreto n. 7247 - de 19 de abril de 1879. Reforma o ensino primário e secundário no município da Côrte e o superior em todo o Imperio [Internet]. [citado 2010 mar 28] . Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=73867.

12 Hochman G. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hicitec/Anpocs; 1998. 262 p.

13 Brito RS, Cardoso E. A febre amarela no Pará. Belém: Sudam; 1973. 242 p.

14 Figueiredo AM. Esculápios bélicos: a Sociedade Médico-Cirúrgica do Pará e as efemérides cívicas da nação brasileira, 1914-1922. In: Documentos Culturais. Belém: Conselho Estadual de Cultura; 2006, p. 46-7.

15 Weinstein B. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. Lólio Lourenço de Oliveira, tradução. São Paulo: Hucitec/Edusp; 1993. 371 p.

16 Moreira E. Para a História da Universidade Federal do Pará (Panorama do Primeiro decênio). Belém: CEJUP; 1977. 170 p.

17 Pará-Medico, vol III, anno VIII, no 10, set 1922.

18 Castro AES. Governador. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado do Pará [Internet]. 1924 set [citado em 2007 jan 9]. Belém: 1924. 68 p. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1045/000068.html.

19 Faculdade de Medicina do Pará. Trechos de relatórios apresentados à Congregação. Belém: Typ. da Livraria Gillet; 1923.

 

 

Correspondência / Correspondence / Correspondencia:
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Recebido em / Received / Recibido en: 10/4/2010
Aceito em / Accepted / Aceito en: 30/4/2010

 

 

* Segundo José Gonçalves Fonseca e Ribeiro Sampaio, um único cirurgião português atuava num raio de mais de trezentas léguas, visitando em períodos predeterminados os distritos de Mato Grosso, Maranhão e Pará, confirmando a quase inexistência de médicos no Brasil2.

Quando houve o recrudescimento da epidemia, em 1796, já existiam mais alguns médicos e cirurgiões, sendo citado entre eles o dr. Bento Vieira Gomes2.

Além das autorizações para médico, cirurgião e boticário, havia licenças para parteira, sangrador e curandeiro. O curandeiro era legalmente definido como "aquele terapeuta com conhecimentos de plantas medicinais nativas e que as empregava para tratar de moléstias típicas de determinadas regiões". (Pimenta TS. Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade dos Oitocentos. História, Ciências, Saúde, Manguinhos [Internet]. 2004 mar [citado 2010 mar 23] 2004;11 Suppl 1:67-92. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v11s1/03.pdf).

§ Além dos físicos e curandeiros, havia os cirurgiões barbeiros, barbeiros, sangradores, algebristas, parteiras e boticários. Aos cirurgiões barbeiros era permitida oficialmente a cirurgia; ao barbeiro, a aplicação de ventosas, sarjaduras e sanguessugas, corte de cabelo ou barba e extração de dentes; ao sangrador e algebrista, o tratamento de fraturas, luxações e torceduras; à parteira ou aparadeira, o atendimento aos partos normais; e aos boticários, a preparação e comércio de medicamentos. Os diplomas eram muitas vezes vendidos aos pretendentes a esses cargos citados, que não cursavam o período de estágio necessário5.

|| José Corrêa Picanço, nascido em Pernambuco, era cirurgião da Real Câmara e lente jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Como membro da corte portuguesa, Picanço retornou ao Brasil em 18085.

As faculdades passariam a ser reguladas seguindo o modelo dos estatutos e regulamentos da Faculdade de Medicina de Paris, enquanto não fossem elaborados seus próprios regulamentos. O curso médico-cirúrgico passava a ser de seis anos, havendo também um curso de farmácia (três anos) e um de partos, ao final dos quais, seriam concedidos, respectivamente, os títulos de doutor em medicina, de farmacêutico e de parteira. Era da atribuição das faculdades de medicina a verificação dos títulos de médicos, cirurgiões, boticários e parteiras obtidos em escolas estrangeiras5.

* De acordo com Meira6, Marcellino diplomou-se em 1825 e foi o primeiro paraense a regressar a Belém, embora outros tenham-se formado antes dele, como os drs. José Fernandes de Góis, em 1763, Matheus Valente do Couto, em 1791, e Firmo José da Costa Braga.

Silva Castro, formado na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1837, retornou a Belém no ano seguinte. Prestou grande serviço durante a epidemia de febre amarela e cólera de 1850 a 1855. Desempenhou importantes cargos e comissões científicas: foi presidente da Comissão de Higiene e inspetor geral da instrução pública, além de provedor da Santa Casa. Frutuoso Guimarães retornou em 1839, após formar-se na Bélgica. Exerceu vários cargos políticos e foi membro importante da maçonaria, além de provedor da Santa Casa. José da Gama Malcher formou-se em medicina na Bahia em 1839. Teve carreira política e atuação nos hospitais da Santa Casa e Beneficente Portuguesa.

O hospital receberia melhoramentos contínuos, com acréscimos de alas, serviços como de obstetrícia, e equipamentos como raios X, sendo considerado, em 1918, um dos melhores do Brasil.

* Lei no 629 de 22 de maio de 1899: "Art. 1o. Ficam creadas n'esta capital as seguintes escholas superiores: direito, medicina e engenharia, com as divisões relativas aos differentes cursos, de accordo com o programma das escholas congeneres da União. Art. 2o. O Governador promoverá a installação de todas ou de algumas das faculdades, no começo do anno vindouro, decretando-lhes os respectivos estatutos e fazendo as primeiras nomeações"8.

Lei - de 3 de outubro de 1832: "Art. 33o. O ensino da Medicina fica livre: qualquer pessoa nacional ou estrangeira, poderá estabelecer Cursos particulares sobre os diversos ramos das sciencias medicas e leccionar á sua vontade sem opposição alguma da parte das Faculdades"10.

Decreto no 7.247 de 19 de abril de 1879: "Art. 1o. E' completamente livre o ensino primario e secundario no municipio da Côrte e o superior em todo o Imperio, salvo a inspecção necessaria para garantir as condições de moralidade e hygiene"11.

* Neste período houve um acréscimo significativo no número de médicos em atividade em Belém. Carvalho2 registra a aceitação, pela provedoria da Santa Casa, de 1901 a 1903, de 17 profissionais para atuarem naquele hospital.

Não se tem maiores registros sobre esta agremiação. Carvalho2 menciona que ela chegou a ter o seu periódico, denominado Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Pará.

Esta deve ter sido a primeira participação oficial do Pará em congressos médicos, considerando o início destes em 1888, organizados pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, e a sua irregularidade de realização, pois após o primeiro, o segundo e o terceiro, realizados respectivamente em 1888, 1889 e 1890, o quarto só aconteceria em 1900 (Varela A, Soares LA, Xavier AL, Velloso VP, Madureira FJC, Ferreira LO. Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930) [Internet]. [citado em 2010 abr 2]. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/P/verbetes/socmedcirj.htm.)

* Em seu relatório do primeiro ano de gestão como diretor da Faculdade de Medicina, Camillo Salgado contabilizava pouco mais de 100 médicos em atividade no Estado para atender, só em Belém, 200 mil habitantes19.