Introdução
O sarampo é uma doença viral, aguda, grave, transmissível e de alta contagiosidade; tem distribuição universal, com variação sazonal, e seu comportamento depende da relação entre a imunidade e a susceptibilidade da população, assim como da circulação do vírus. Embora exista uma vacina segura e de baixo custo, o sarampo é uma das principais causas de morbimortalidade entre crianças menores de 5 anos de idade, sobretudo aquelas desnutridas e que vivem em países de baixa renda. A incidência, a evolução clínica e a letalidade do sarampo são influenciadas pelas condições socioeconômicas, estado nutricional e imunitário do doente, situações agravadas pela aglomeração em lugares públicos e em pequenas residências.1
No Brasil, o sarampo é uma doença de notificação compulsória desde 1968. No período de 1968 a 1991, o país enfrentou nove epidemias; em média, uma a cada dois anos.2 A vacina, apesar de licenciada desde 1961, foi utilizada de modo pontual e irregular no país até ser regulamentada no primeiro calendário nacional de vacinação obrigatória, por meio da publicação da Portaria nº 452/1977.3 Na década de 1980, observou-se um declínio gradativo no registro de óbitos decorrentes da infecção, atribuído ao aumento da cobertura vacinal e à melhoria na assistência médica.1
Ações mais abrangentes foram desencadeadas a partir da década de 1990, destacando-se a campanha de vacinação em massa para crianças entre 9 meses e 14 anos de idade e a intensificação das ações de vigilância epidemiológica, linhas de ação do Plano de Controle e Eliminação do Sarampo implantado em 1992. A campanha foi um sucesso: 48 milhões de vacinados e cobertura de 96%. A partir de então, vários esforços foram empreendidos nos países das Américas. No Brasil, foram incluídos distintos grupos-alvos, como, por exemplo, a vacinação de crianças até 11 anos de idade e mulheres em idade fértil.4
O resultado dessas ações foi a queda vertiginosa na incidência do sarampo por transmissão autóctone no país, com descenso de 97 casos/100 mil habitantes, atingindo a incidência zero no ano de 2001. Casos importados, em geral esporádicos, ocorreram ao longo da década de 2000. A partir de meados da mesma década, ocorreram três surtos de considerável importância epidemiológica: (i) em 2006, 57 casos no sertão da Bahia; (ii) em 2010, 57 casos na região metropolitana da Paraíba; e (iii) em 2013/2014, 220 casos em Pernambuco.1 Nos anos de 2013 a 2015, 38 municípios no Ceará registraram 1.052 casos da doença, além de casos isolados detectados em outros municípios brasileiros.
Uma peculiaridade do estado do Ceará foi a duração da epidemia, ininterrupta por 81 semanas epidemiológicas, de dezembro de 2013 a setembro de 2015, não obstante a adoção das estratégias para seu controle, com registro de 4.631 casos suspeitos. As estratégias iniciais adotadas não foram suficientes para deter o avanço da epidemia, pelo que foram adotadas medidas mais intensivas e localizadas. Além da adoção dessas medidas, foi deflagrada uma intensificação vacinal em indivíduos de 5 a 29 anos de idade, mantendo-se a intensificação da vacinação das crianças de 6 meses a menores de 5 anos.5
Uma das estratégias utilizadas na epidemia de sarampo no estado do Ceará foi o Monitoramento Rápido de Vacinação (MRV), importante ferramenta de verificação da situação vacinal de uma determinada população em um curto período de tempo, com demanda de poucos recursos financeiros e ampla aplicabilidade no território nacional. Nesse contexto, destacam-se particularidades locais como a presença de fronteiras físicas e sociais, fatores esses capazes de influenciar o acesso às salas de vacinação e, consequentemente, as razões e proporção de crianças com vacinação em dia.6
O presente relato de experiência objetivou descrever os resultados do Monitoramento Rápido de Vacinação, realizado com o propósito de interromper o surto de sarampo no estado do Ceará em 2015.
Estratégias de vacinação
No estado do Ceará, foram adotadas várias estratégias de vacinação na busca da população suscetível, entre elas:
vacinação de rotina, que consiste na vacinação sistemática, visando ao controle de doenças imunopreveníveis por meio de amplas coberturas vacinais;7
a campanha de seguimento, que compreende as atividades de vacinação realizadas periodicamente e de forma indiscriminada;8
Monitoramento Rápido de Vacinação, ou MRV, para verificação da cobertura vacinal e identificação da população suscetível não vacinada a partir da comprovação da vacinação individual na caderneta de vacinação da criança, em visita domiciliar;9
vacinação de bloqueio, executada quando da ocorrência de um ou mais casos suspeitos da doença;
operação de limpeza ou varredura, quando ainda ocorrem casos da doença, mediante verificação da situação vacinal e vacinação dos não vacinados, casa a casa.10
intensificação da vacinação, que consiste na ação de vacinar as pessoas que não foram vacinadas ou não completaram o esquema vacinal.11
A campanha de vacinação de seguimento, promovida de forma indiscriminada, aplicando-se as vacinas tríplice e tetraviral na população de 6 meses a menos de 5 anos de idade, foi realizada em novembro de 2014, seguida do MRV, o qual foi concluído no primeiro semestre de 2015. A intensificação vacinal utilizou a vacina dupla viral (sarampo e rubéola) para a população de 5 a 29 anos de idade, entre os meses de maio e agosto de 2015.
O sistema de saúde do estado do Ceará possui 22 microrregiões e cinco macrorregiões de Saúde (Fortaleza, Sobral, Cariri, Sertão Central e Litoral Leste/Jaguaribe). O MRV contemplou as 22 microrregiões e os 184 municípios do estado. A regionalização, enquanto uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), orienta o processo de descentralização das ações e serviços de saúde, ademais da negociação e pactuação entre os gestores.12 Em 2015, a Coordenadoria Regional de Saúde (CRES) de Cascavel (22ª) foi incorporada à (CRES) de Fortaleza (1ª), subordinadas a uma única administração.
Monitoramento Rápido de Vacinação
O MRV é uma atividade de supervisão das ações de vacinação recomendada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desde a década de 1980, adotada em vários países das Américas. Ele se caracteriza por buscar a cobertura vacinal em visitas domiciliares para verificação do comprovante de vacinação. É um método bastante útil de constatação da situação vacinal, seus resultados são extremamente importantes como subsídio à tomada de decisões sobre a definição ou redefinição de estratégias adicionais de vacinação, visando melhorar as coberturas vacinais e sua homogeneidade.8
O número de domicílios visitados baseou-se no tamanho da população-alvo e no número de salas de vacinas em cada município. Nos municípios de grande porte populacional (>50 mil habitantes), foram incluídos 2% da população-alvo (6 meses a menos de 5 anos de idade). Para os municípios menores - com até 50 mil habitantes -, a recomendação é seguir os critérios definidos de população-alvo e sala de vacinas, ou seja, o número de MRV deve corresponder ao número de salas de vacina; ressalta-se que a área do MRV deve ser selecionada aleatoriamente (por sorteio).11
Fontes e análise dos dados
Os dados de cobertura vacinal, homogeneidade e motivos de não vacinação foram extraídos do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), disponível no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) (sipni.datasus.gov.br). Foram utilizados os aplicativos Tabwin 32 e Microsoft Office® Excel®, versão 2008.
Para subsidiar a análise dos dados, adotou-se o protocolo do MRV, elaborado com a finalidade de apoiar a equipe no trabalho de campo.
Por se tratar de dados secundários, de domínio público, sem identificação de pessoas e instituições, o presente estudo foi dispensado da apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Em novembro de 2014, foram aplicadas 1.232.368 doses das vacinas dupla, tríplice e tetraviral durante a campanha indiscriminada de vacinação contra sarampo no Ceará. Após esse período, por meio do MRV, foram verificadas 52.216 cadernetas de vacinação de crianças de 6 meses a menos de 5 anos de idade, residentes no estado, e aplicadas 1.679 doses das vacinas tríplice e tetraviral até junho de 2015 (Tabela 1).
Coordenadorias Regionais de Saúde | Doses aplicadas (N) | Cobertura vacinal do MRV (%) | |
---|---|---|---|
Dose 1 | Dose 2 | ||
1ª Fortaleza/22ª Cascavel | 237 | 98,1 | 95,3 |
2ª Caucaia | 24 | 99,5 | 97,8 |
3ª Maracanaú | 155 | 97,8 | 96,1 |
4ª Baturité | 67 | 92,0 | 119,3 |
5ª Canindé | 19 | 99,6 | 149,0 |
6ª Itapipoca | 214 | 90,8 | 84,2 |
7ª Aracati | - | 100,0 | 100,0 |
8ª Quixadá | 83 | 96,0 | 134,5 |
9ª Russas | 48 | 97,3 | 93,9 |
10ª Limoeiro do Norte | - | 100,0 | 98,4 |
11ª Sobral | 7 | 96,8 | 118,1 |
12ª Acaraú | 25 | 99,2 | 98,9 |
13ª Tianguá | 13 | 95,1 | 119,7 |
14ª Tauá | 51 | 94,9 | 138,3 |
15ª Crateús | 100 | 96,7 | 119,8 |
16ª Camocim | 32 | 100,0 | 103,1 |
17ª Icó | 50 | 95,9 | 96,7 |
18ª Iguatu | 47 | 99,3 | 99,6 |
19ª Brejo Santo | 121 | 94,9 | 111,3 |
20ª Crato | 140 | 93,2 | 104,9 |
21ª Juazeiro do Norte | 246 | 95,1 | 99,6 |
Estado do Ceará | 1.679 | 96,7 | 106,6 |
Das 21 CRES do estado, apenas quatro (Baturité, Itapipoca, Brejo Santo e Crato) não atingiram a cobertura vacinal mínima de 95% para a primeira dose, e duas CRES (Itapipoca e Russas) não atingiram a cobertura vacinal mínima para a segunda dose (Tabela 1).
O MRV identificou 836 (1,6%) crianças não vacinadas contra o sarampo e 1.388 doses de vacinas que deixaram de ser aplicadas, por motivos diversos. Para cada criança poderia ser elencado mais de um motivo de não vacinação. Dos 1.388 motivos relatados para não vacinação, destacaram-se a falta de tempo dos pais/responsáveis (n=219; 15,8%), falta de vacina (n=135; 9,7%), falta de agendamento (n=110; 7,9%) e dificuldade para ir ao posto de vacinação (n=36; 2,6%) (Tabela 2).
Motivos | N | % |
---|---|---|
Outros motivos | 820 | 59,1 |
Falta de tempo | 219 | 15,8 |
Falta de vacina | 135 | 9,7 |
Falta de agendamento | 110 | 7,9 |
Dificuldade para ir ao posto de vacinação | 36 | 2,6 |
Várias injeções ao mesmo tempo | 24 | 1,7 |
Perda/ausência de comprovante vacinal | 16 | 1,2 |
Recusa da vacina | 13 | 1,0 |
Posto de vacinação fechado | 7 | 0,5 |
Contraindicação médica | 6 | 0,4 |
Evento adverso em dose anterior | 2 | 0,1 |
Total | 1.388 | 100,0 |
Discussão
O MRV revelou que o Ceará ultrapassou a meta de cobertura vacinal da tríplice e da tetraviral. Contudo, quatro CRES não atingiram cobertura vacinal mínima de 95% para primeira dose (Baturité, Itapipoca, Brejo Santo e Crato) e duas não atingiram a meta para segunda dose (Itapipoca e Russas).
A cobertura vacinal superior a 100% encontrada pelo MRV para a segunda dose da vacina tríplice viral é explicada pelo fato de o Ceará, no ano de 2015, ter registrado um desabastecimento da vacina tetraviral (tríplice viral e varicela), que corresponde à segunda dose da vacina tríplice viral. Ou seja, 2.879 crianças de 15 meses a menos de 5 anos de idade, na falta da vacina tetraviral, receberam a vacina tríplice viral e, posteriormente, para não perderem a oportunidade de receber o componente da varicela, e pela ausência da vacina contra varicela monovalente, receberam outra dose, com a vacina tetraviral.
Na estratégia do MRV, todos os 184 municípios cearenses realizaram a atividade de monitoramento com o objetivo de constatar a interrupção da epidemia. A CRES de Itapipoca, ao apresentar cobertura menor que 95%, foi orientada a realizar, posteriormente, intensificação vacinal com o objetivo de resgatar todos os não vacinados contra sarampo.
O MRV permite conhecer a situação vacinal da população em curto espaço de tempo, a partir da informação do comprovante de vacinação do residente em uma determinada área geográfica durante a visita domiciliar. O MRV tem como propósito fundamental resgatar não vacinados e reduzir o número de prováveis suscetíveis,12 e suas ações têm contribuído para a redução da morbimortalidade por sarampo.
No Brasil, o MRV passou a ser realizado com maior abrangência em 2008. Até 2012, três experiências nacionais de MRV foram realizadas pós-campanhas nacionais de vacinação: em 2008, com o objetivo de eliminar a rubéola e a síndrome da rubéola congênita na população de 12 a 39 anos de idade; em 2011, após campanha de seguimento para manutenção da eliminação do sarampo e da rubéola em crianças de 1 a 6 anos de idade; e em 2012, após campanha de multivacinação da criança, para atualização da situação vacinal em menores de 5 anos.12
No Ceará, em 2015, encontrou-se um grande número de crianças não vacinadas, constituindo um bolsão de susceptíveis. Os motivos da não vacinação foram diversos, alguns deles de responsabilidade dos cuidadores das crianças, como a falta de compromisso com a vacinação - seja por simples recusa, perda da caderneta de vacinação ou mesmo falta de tempo alegada pelos pais/responsáveis. Outros motivos da não vacinação apontaram responsabilidade da gestão, entre eles a (i) dificuldade de acesso dos usuários aos locais de vacinação, (ii) falhas relacionadas à gestão das salas de vacinação - como a falta de agendamento da vacina, este que é um determinante fundamental para a orientação dos pais/responsáveis -, (iii) ausência de garantia do estoque do imunobiológico - já que o mesmo não passou por nenhum momento de desabastecimento no país -, bem como (iv) falta de flexibilidade nos horários de funcionamento das unidades de saúde.
Estes resultados foram semelhantes aos apresentados em estudos prévios. A falta de tempo dos pais/responsáveis e a dificuldade de acesso foram os principais motivos relatados para a não vacinação, segundo o MRV realizado na Região Ampliada de Saúde Oeste do estado de Minas Gerais no ano de 2012.13 Para outro estudo realizado em Minas Gerais, no município de Vespasiano, em 2013, os motivos da não vacinação foram os mesmos encontrados no presente estudo, como falta de tempo, esquecimento e recusa dos pais; outrossim, no município mineiro, algumas crianças estavam doentes durante o período da realização do monitoramento, outras não apresentaram comprovante do estado vacinal e, por fim, houve aquelas que apresentaram eventos adversos em doses anteriores.14
Observou-se um número considerável de outros motivos, não sendo possível descrevê-los desde que a fonte de dados não forneceu essa informação. Sugere-se correção dessa limitação em futuros monitoramentos. Também se recomenda que a análise desses dados seja feita por cada unidade básica de saúde, para que sejam implementadas intervenções locais no sentido de minimizar os fatores apontados como motivos para a não vacinação das crianças no local de ocorrência.
Na Região das Américas, o último caso endêmico de sarampo anunciado data de novembro de 2002, oito anos após a definição da estratégia de eliminação do sarampo nos países do continente, onde os casos subsequentes foram casos importados, ou de pessoas que estivessem relacionadas a esses casos.1 De qualquer forma, o Brasil intensificou as ações contra a doença, focadas na meta de erradicação desse agravo.
Entre 2001 e 2010, foram confirmados 135 casos de sarampo no país, todos importados, comprovados laboratorialmente e com isolamento viral. Em 2010, foram registrados três surtos de sarampo: (i) no Pará, com 3 casos, (ii) no Rio Grande do Sul, com 8 casos, (iii) e na Paraíba, com 57 casos, com identificação dos genótipos D4, B3 e B3, respectivamente. Todos os casos confirmados foram de vírus importados. Em 2010, durante o surto no estado da Paraíba, foram notificados 391 casos suspeitos, dos quais 57 (14,6%) foram confirmados e 334 (85,4%) descartados por critério laboratorial. Esse surto apresentou apenas vírus com um genótipo (B3).
A análise epidemiológica demonstrou que, entre janeiro e julho de 2011, foram confirmados 17 casos de sarampo no país, com identificação do genótipo D4, cujo sequenciamento genético é similar ao circulante no continente europeu. A faixa etária acometida estendeu-se entre 1 e 43 anos de idade, sendo a média de 5 anos; 6 casos (31%) ocorreram em crianças menores de 5 anos, evidenciando um grupo de suscetíveis nessa faixa etária.4 No estado do Ceará, foi identificado o genótipo D8, o mesmo encontrado na América Latina e Caribe no quinquênio 2010-2015, em anos e países diferentes.15
A erradicação do sarampo é um compromisso assumido com a Saúde Pública brasileira e internacional. Para tanto, faz-se necessária, após o encerramento da campanha de vacinação, a realização de MRV para identificar as áreas com menor cobertura vacinal e conhecer os motivos pelos quais as crianças não aderiram à vacinação, ressaltando-se a importância da qualidade dos dados.
As estratégias de campanhas nacionais de vacinação apresentaram excelentes resultados ao longo dos anos, sendo que a primeira campanha de seguimento contra o sarampo foi realizada em 1995.4 Graças ao esforço de mobilização de todos os profissionais da saúde competentes, foi possível o aumento das coberturas vacinais. Espera-se que as campanhas periódicas de vacinação, somadas à vacinação de rotina, continuem a assegurar a imunidade da população, minimizando os riscos de surto. Seu sucesso dependerá do continuado empenho de todos os envolvidos, cujo apoio tem-se mostrado imprescindível para a eliminação do sarampo no Brasil e no conjunto da Região das Américas.