Introdução
Crianças estão entre os grupos mais vulneráveis à violência, em função de seu estágio de desenvolvimento e sua dependência do cuidado e proteção dos adultos.1 O Ministério da Saúde do Brasil define a violência que acomete a infância como ‘quaisquer atos ou omissões dos responsáveis, bem como da sociedade em geral, que causem dano físico, emocional, sexual e moral às vítimas’.2 Nessa faixa etária, a violência representa uma ameaça à vida e à saúde, provoca danos mentais e emocionais incalculáveis, que podem perdurar e impactar diretamente no desempenho da vida adulto.3
No ano de 2018, as causas externas, entre as quais as violências, foram a primeira causa de óbito na população infantil brasileira.4 Segundo o Viva Inquérito de 2017, cerca de 8,0% dos atendimentos realizados nos serviços de urgência e emergência do país devem-se às violências contra indivíduos de 0 a 9 anos de idade. Com relação à violência intrafamiliar, 68,1% dos casos têm nas crianças suas vítimas: 62,7% do sexo masculino e 74,4% do sexo feminino.4
Situações de violência contra a criança, geralmente, caracterizam-se como eventos recorrentes. Essas experiências podem ser de longa duração e deixar marcas invisíveis, imensuráveis.5,6 Tal fato prende a criança em um ciclo constante de violência, com impactos diretos para sua saúde e qualidade de vida, aumentando as chances de levá-la a óbito.7
A violência na infância atinge mais meninos que meninas, e os familiares são os principais agressores.8 Essa agressão é um fenômeno contraditório para o senso comum, realizada principalmente por membros do círculo de confiança das crianças, pessoas que deveriam dar amor, carinho e proteção àqueles sob sua atenção e responsabilidade.8 Segundo a literatura, essa violência parte daqueles com maior contato ou mais próximos da criança, e, entre suas razões e justificativas mais comuns, estão as dificuldades dos pais em se relacionar com os filhos, utilizando-se das agressões como forma de educar, ou sendo negligentes no atendimento às necessidades próprias da infância.3,5
O fato de a violência contra a criança ocorrer, principalmente, no ambiente da família, torna mais difícil seu reconhecimento. Os profissionais de saúde, especialmente aqueles que atuam na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS), têm um papel essencial na identificação de casos, no acolhimento às vítimas e suas famílias e, portanto, precisam estar atentos às dinâmicas familiares possíveis de desencadear atos violentos.3
A notificação dos casos de violência contra a criança nos órgãos competentes é obrigatória desde 1990, quando foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente.9 Para tanto, o Ministério da Saúde elaborou a ficha de notificação de violência, declarada de notificação compulsória desde 2011.10 Trata-se de um instrumento indispensável à prestação do devido cuidado às vítimas dentro da rede de atenção à saúde, com potencial para garantir os direitos e a proteção social da infância.11 Os dados registrados na ficha de notificação, além da qualidade indispensável, devem ser analisados permanentemente. Eles subsidiam a informação para o conhecimento e o adequado planejamento das políticas públicas intersetorias sobre o tema.12,13
O objetivo deste estudo foi identificar a frequência de casos notificados e fatores associados à violência recorrente na infância, no estado do Espírito Santo, Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo transversal, em que foram analisados os casos notificados de violência recorrente contra a criança no Espírito Santo, no período de 2011 a 2018.
O estado localiza-se na região Sudeste do Brasil, sua extensão territorial é de 46.074,444 km2 e constitui-se de 78 municípios e quatro regiões de saúde. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2020, o Espírito Santo apresenta alto índice de desenvolvimento humano (IDH=0,740) e uma renda per capita média de R$ 1.477,00, superior ao salário mínimo nacional. Sua população para 2019 foi estimada em 4.018.650 habitantes, dos quais 509.336 encontravam-se na faixa etária de 0 a 9 anos (14,5%).14
Foram incluídos no estudo todos os registros de notificações de violência contra indivíduos de 0-9 anos, de acordo com os critérios de classificação estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e empregados na ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).15
O desfecho da presente análise foi a violência recorrente (não; sim), informação derivada da pergunta sobre a violência notificada ter ou não ocorrido outras vezes. As variáveis independentes analisadas foram divididas e categorizadas da seguinte forma:
a) Características da vítima
- Faixa etária (anos: 0 a 2; 3 a 5; 6 a 9);
- Raça/cor da pele (branca; preta/parda; amarela/indígena);
- Algum tipo de deficiência e/ou transtorno (não; sim);
- Zona de residência (urbana/periurbana; rural).
b) Características do agressor
- Faixa etária (anos: 0 a 19; 20 a 24; 25 ou mais);
- Sexo (masculino; feminino; ambos);
- Vínculo com a vítima (pais; conhecidos [familiares ou não]; desconhecidos; a própria pessoa);
- Suspeita de uso de álcool (não; sim).
c) Características da agressão
- Número de agressores envolvidos (um; dois ou mais);
- Local da ocorrência (residência; outro);
- Turno de ocorrência (manhã/tarde; noite/madrugada);
- Encaminhamento para outros serviços da rede de saúde, assistência social ou policial (não; sim).
Os dados provieram dos atendimentos prestados pelos serviços de saúde, registrados na ficha de notificação do Sinan e disponibilizados pela Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo. A escolha do período a estudar deve-se ao fato de, a partir de 2011, as violências haverem sido incluídas na lista de agravos de notificação compulsória, com a promulgação da Portaria GM/MS nº 104, de 25 de janeiro de 2011.10
Previamente à análise dos dados, desenvolveu-se um processo de qualificação e correção de possíveis erros e inconsistências nos registros, conforme orientações do Instrutivo de Notificação Interpessoal e Autoprovocada.15 Os casos que apresentavam dados em branco ou ignorados foram excluídos das análises, razão por que o número total de indivíduos variou conforme a característica estudada.
Foi realizada análise descritiva das variáveis por meio das frequências relativas e absolutas e intervalos de confiança de 95% (IC95%). Para a análise inferencial bivariada, adotou-se o teste qui-quadrado de Pearson, e para a multivariada, a regressão de Poisson, ambas estratificadas por sexo. No modelo multivariado, foram calculadas as razões de prevalências comparando-se o grupo exposto à violência de repetição em relação ao grupo de violência única. Na análise multivariada, partiu-se da seleção “para trás”: foram incluídas no modelo todas as variáveis que atingiram o valor de p menor que 0,20 na análise bivariada; exceção fez-se à variável ‘encaminhamento’, por ser um evento posterior à ocorrência do desfecho. A manutenção das variáveis no modelo seguiu o critério de p menor que 0,05; a cada vez que o modelo foi rodado, retirou-se a variável que apresentava o maior valor de p, até que todas as variáveis restantes apresentassem associação com violência recorrente (p≤0,05). Todas as análises serviram-se do software Stata 14.1.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (CEP/CCS/UFES): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 88138618.0.0000.5060; Parecer nº 2.819.597, emitido em 14 de agosto de 2018.
Resultados
No período de 2011 a 2018, foram notificados 3.127 casos de violência contra a criança no Espírito Santo: 817 (26,1%) foram casos de violência únicos, 1.295 (41,4%) referiam dados ignorados e 1.015 (32,5%) representavam violência recorrente.
Para as características da vítima, observou-se maior frequência de crianças do sexo feminino (60,1%), faixa etária de 6 a 9 anos (48,6%), raça/cor da pele preta/parda (69,5%), residência da vítima na zona urbana/periurbana (88,4%) e não apresentação de deficiências e/ou transtornos (93,9%). Sobre os agressores, predominaram indivíduos com mais de 25 anos de idade (67,3%), homens (56,2%), e a suspeita de que 69,9% não haviam feito uso de bebida alcoólica; em sua maioria, tinham vínculo materno/paterno com a vítima (64,4%). Geralmente, a violência envolveu um único agressor (75,0%), ocorreu na residência da vítima (88,4%), nos turnos da manhã e da tarde (67,5%), e teve seu encaminhamento feito a partir do serviço de saúde (93,3%) (Tabela 1).
Na análise bivariada, para ambos os sexos das crianças envolvidas, a violência recorrente mostrou-se associada à faixa etária da vítima e do agressor, ao vínculo e à suspeita de uso de álcool pelo agressor, além do local de ocorrência. No sexo masculino, a recorrência do agravo também esteve relacionada com a raça/cor da pele e a zona de residência da vítima; e no sexo feminino, com a presença de deficiência e/ou transtorno na vítima, e o sexo do agressor (p<0,05) (Tabela 2).
A violência recorrente contra meninos foi maior entre os 6 e os 9 anos (RP=1,38 - IC95% 1,11;1,73), em comparação àqueles com 0 a 2 anos. Essa repetição da violência com meninos também foi mais praticada por indivíduos na idade de 25 anos ou mais (RP=1,85 - IC95% 1,30;2,63), em comparação àqueles na faixa etária de 20 a 24 anos, além de a residência ter sido o local de ocorrência mais frequente (RP=1,61 - IC95% 1,23;2,11) (Tabela 3).
Após ajustes, as meninas de 6 a 9 anos foram as que sofreram mais com a violência recorrente (RP=1,39 - IC95% 1,20;1,60), em comparação àquelas de 0 a 2 anos. A recorrência de violências também foi mais prevalente contra meninas portadoras de alguma deficiência e/ou transtorno (RP=1,43 - IC95% 1,22;1,67), comparadas às que não apresentavam essa condição. Os pais foram os principais agressores (RP=3,70 - IC95% 1,65;8,32) das meninas, com destaque também para indivíduos conhecidos (RP=2,49 - IC95% 1,10;5,64), quando comparados a pessoas desconhecidas por elas. A residência também foi o principal local de ocorrência da violência recorrente contra meninas (RP=1,39 - IC95% 1,10;1,75) (Tabela 4).
Característica | N | %a | IC95% b |
---|---|---|---|
Sexo | |||
Masculino | 405 | 39,9 | 36,9;43,0 |
Feminino | 610 | 60,1 | 57,1;63,1 |
Faixa etária da vítima (anos)a | |||
0-2 | 222 | 22,2 | 19,7;24,8 |
3-5 | 293 | 29,2 | 26,5;32,1 |
6-9 | 487 | 48,6 | 45,5;51,7 |
Raça/cor da pele da vítimaa | |||
Branca | 268 | 29,6 | 26,7;32,6 |
Preta/parda | 630 | 69,5 | 66,5;72,5 |
Amarela/indígena | 8 | 0,9 | 0,4;1,8 |
Vítima possui alguma deficiência e/ou transtornoa | |||
Não | 924 | 93,9 | 92,2;95,2 |
Sim | 60 | 6,1 | 4,8;7,8 |
Zona da residência da vítimaa | |||
Urbana/periurbana | 880 | 88,4 | 86,3;90,3 |
Rural | 115 | 11,6 | 9,7;13,7 |
Faixa etária do agressor (anos)a | |||
0-19 | 135 | 21,5 | 18,5;24,9 |
20-24 | 70 | 11,2 | 8,9;13,9 |
≥25 | 423 | 67,3 | 63,6;70,9 |
Sexo do agressora | |||
Masculino | 553 | 56,2 | 53,1;59,3 |
Feminino | 261 | 26,5 | 23,9;29,4 |
Ambos os sexos | 170 | 17,3 | 15,0;19,8 |
Vínculo do agressor com a vítimaa | |||
Pais | 631 | 64,4 | 61,3;67,3 |
Conhecido | 321 | 32,8 | 29,9;35,8 |
Desconhecido | 13 | 1,3 | 0,8;2,3 |
A própria pessoa | 15 | 1,5 | 0,9;2,5 |
Suspeita de uso de álcool pelo agressora | |||
Não | 428 | 69,9 | 66,2;73,5 |
Sim | 184 | 30,1 | 26,6;33,8 |
Número de agressores envolvidosa | |||
Um | 735 | 75,0 | 72,2;77,6 |
Dois ou mais | 245 | 25,0 | 22,4;27,8 |
Local da violênciaa | |||
Outro | 111 | 11,6 | 9,7;13,7 |
Residência | 850 | 88,4 | 86,3;90,3 |
Turno de ocorrênciaa | |||
Manhã/tarde | 339 | 67,5 | 63,3;71,5 |
Noite/madrugada | 163 | 32,5 | 28,5;36,7 |
Encaminhamento para outros serviçosa | |||
Não | 68 | 6,7 | 5,4;8,5 |
Sim | 941 | 93,3 | 91,5;94,7 |
a) Os totais de frequência absoluta divergem em razão dos dados faltantes (dados em branco ou ignorados, conforme registrados nas fichas de notificação); b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Característica | Masculino | Feminino | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | IC95% a | p-valor | n | % | IC95% a | p-valor | |||
Faixa etária da vítima (anos) | ||||||||||
0-2 | 95 | 41,5 | 35,3;48,0 | 0,001 | 127 | 47,6 | 41,6;53,6 | <0,001 | ||
3-5 | 127 | 58,3 | 51,6;64,7 | 166 | 56,7 | 50,9;62,2 | ||||
6-9 | 177 | 54,6 | 49,2;60,0 | 310 | 64,3 | 59,9;68,5 | ||||
Raça/cor da pele da vítima | ||||||||||
Branca | 95 | 49,2 | 42,2;56,3 | 0,026 | 173 | 60,9 | 55,1;66,4 | 0,406 | ||
Preta/parda | 254 | 53,9 | 49,4;58,4 | 376 | 56,7 | 52,9;60,5 | ||||
Amarela/indígena | 1 | 11,1 | 1,4;53,2 | 7 | 50,0 | 25,2;74,8 | ||||
Vítima possui alguma deficiência e/ou transtorno | ||||||||||
Não | 364 | 50,8 | 47,1;54,4 | 0,115 | 560 | 56,9 | 53,8;60,0 | 0,002 | ||
Sim | 26 | 63,4 | 47,6;76,8 | 34 | 81,0 | 66,1;90,3 | ||||
Zona de residência da vítima | ||||||||||
Urbana/periurbana | 339 | 50,5 | 46,7;54,2 | 0,041 | 541 | 57,7 | 54,5;60,9 | 0,508 | ||
Rural | 58 | 61,7 | 51,5;71,0 | 57 | 61,3 | 51,0;70,7 | ||||
Faixa etária do agressor (anos) | ||||||||||
0-19 | 65 | 49,2 | 40,8;57,8 | <0,001 | 70 | 49,0 | 40,8;57,1 | <0,001 | ||
20-24 | 23 | 33,3 | 23,2;45,3 | 47 | 59,5 | 48,3;69,8 | ||||
≥25 | 162 | 66,4 | 60,2;72,1 | 261 | 70,7 | 65,9;75,2 | ||||
Sexo do agressor | ||||||||||
Masculino | 198 | 50,5 | 45,6;55,5 | 0,217 | 355 | 56,5 | 52,6;60,4 | 0,009 | ||
Feminino | 123 | 54,9 | 48,3;61,3 | 138 | 62,2 | 55,6;68,3 | ||||
Ambos os sexos | 72 | 59,0 | 50,0;67,4 | 98 | 70,0 | 61,9;77,0 | ||||
Vínculo do agressor com a vítima | ||||||||||
Pais | 268 | 60,4 | 55,7;64,8 | <0,001 | 363 | 70,6 | 66,5;74,4 | <0,001 | ||
Conhecido | 107 | 43,0 | 36,9;49,2 | 214 | 50,2 | 45,5;55,0 | ||||
Desconhecido | 8 | 19,5 | 10,0;34,7 | 5 | 14,7 | 6,2;31,2 | ||||
A própria pessoa | 10 | 52,6 | 30,6;73,7 | 5 | 33,3 | 14,1;60,3 | ||||
Suspeita de uso de álcool pelo agressor | ||||||||||
Não | 172 | 46,5 | 41,4;51,6 | <0,001 | 256 | 55,4 | 50,8;59,9 | 0,001 | ||
Sim | 79 | 66,4 | 57,4;74,3 | 105 | 71,0 | 63,1;77,7 | ||||
Número de agressores envolvidos | ||||||||||
Um | 286 | 53,2 | 48,9;57,4 | 0,554 | 449 | 58,9 | 55,4;62,4 | 0,219 | ||
Dois ou mais | 104 | 50,7 | 43,9;57,6 | 141 | 63,5 | 57,0;69,6 | ||||
Local da violência | ||||||||||
Outro | 63 | 33,2 | 26,8;40,2 | <0,001 | 48 | 35,8 | 28,1;44,3 | <0,001 | ||
Residência | 322 | 59,0 | 54,8;63,0 | 528 | 61,8 | 58,4;65,0 | ||||
Turno de ocorrência | ||||||||||
Manhã/tarde | 135 | 46,4 | 40,7;52,2 | 0,476 | 204 | 56,4 | 51,2;61,4 | 0,929 | ||
Noite/madrugada | 55 | 42,6 | 34,3;51,4 | 108 | 56,0 | 48,9;62,8 | ||||
Encaminhamento para outros serviços | ||||||||||
Não | 28 | 38,9 | 28,3;50,7 | 0,020 | 40 | 47,6 | 37,1;58,3 | 0,044 | ||
Sim | 377 | 53,3 | 49,6;56,9 | 564 | 58,9 | 55,8;62,0 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Variável | Análise bruta | Análise ajustada | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RPa | IC95% b | p-valor | RPa | IC95% b | p-valor | ||
Faixa etária da vítima (anos) | |||||||
0-2 | 1,00 | 0,002 | 1,00 | 0,017 | |||
3-5 | 1,40 | 1,16;1,70 | 1,32 | 1,04;1,68 | |||
6-9 | 1,32 | 1,10;1,58 | 1,38 | 1,11;1,73 | |||
Raça/cor da pele da vítima | |||||||
Branca | 4,43 | 0,69;28,31 | 0,144 | 2,31 | 0,49;11,02 | 0,238 | |
Preta/parda | 4,85 | 0,76;30,9 | 2,67 | 0,56;12,64 | |||
Amarela/indígena | 1,00 | 1,00 | |||||
Vítima possui alguma deficiência e/ou transtorno | |||||||
Não | 1,00 | 0,073 | 1,00 | 0,085 | |||
Sim | 1,25 | 0,98;1,59 | 1,24 | 0,97;1,58 | |||
Zona de residência da vítima | |||||||
Urbana/periurbana | 1,00 | 0,025 | 1,00 | 0,925 | |||
Rural | 1,22 | 1,03;1,46 | 1,01 | 0,80;1,28 | |||
Faixa etária do agressor (anos) | |||||||
0-19 | 1,48 | 1,01;2,15 | <0,001 | 1,41 | 0,96;2,08 | <0,001 | |
20-24 | 1,00 | 1,00 | |||||
≥25 | 1,99 | 1,41;2,82 | 1,85 | 1,30;2,63 | |||
Vínculo do agressor com a vítima | |||||||
Pais | 3,09 | 1,65;5,79 | <0,001 | 1,05 | 0,36;3,09 | 0,997 | |
Conhecido | 2,20 | 1,16;4,17 | 1,01 | 0,34;3,06 | |||
Desconhecido | 1,00 | 1,00 | |||||
A própria pessoa | 2,70 | 1,27;5,74 | 1,06 | 0,30;3,73 | |||
Suspeita de uso de álcool pelo agressor | |||||||
Não | 1,00 | <0,001 | 1,00 | 0,066 | |||
Sim | 1,43 | 1,21;1,69 | 1,21 | 0,99;1,47 | |||
Local da violência | |||||||
Outro | 1,00 | <0,001 | 1,00 | 0,001 | |||
Residência | 1,78 | 1,44;2,20 | 1,61 | 1,23;2,11 |
a) RP: razão de prevalências; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Variável | Análise bruta | Análise ajustada | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RPa | IC95% b | p-valor | RPa | IC95% b | p-valor | ||
Faixa etária da vítima (anos) | |||||||
0-2 | 1,00 | <0,001 | 1,00 | <0,001 | |||
3-5 | 1,19 | 1,01;1,40 | 1,22 | 1,04;1,43 | |||
6-9 | 1,35 | 1,17;1,56 | 1,39 | 1,20;1,60 | |||
Vítima possui alguma deficiência e/ou transtorno | |||||||
Não | 1,00 | <0,001 | 1,00 | <0,001 | |||
Sim | 1,42 | 1,22;1,66 | 1,43 | 1,22;1,67 | |||
Faixa etária do agressor (anos) | |||||||
0-19 | 1,00 | <0,001 | 1,00 | 0,327 | |||
20-24 | 1,22 | 0,95;1,56 | 1,04 | 0,79;1,38 | |||
≥25 | 1,45 | 1,21;1,73 | 1,15 | 0,93;1,43 | |||
Sexo do agressor | |||||||
Masculino | 1,00 | 0,004 | 1,00 | 0,151 | |||
Feminino | 1,10 | 0,97;1,24 | 1,11 | 0,98;1,26 | |||
Ambos os sexos | 1,24 | 1,09;1,41 | 1,12 | 0,98;1,28 | |||
Vínculo do agressor com a vítima | |||||||
Pais | 4,80 | 2,13;10,82 | <0,001 | 3,70 | 1,65;8,32 | <0,001 | |
Conhecido | 3,42 | 1,51;7,72 | 2,49 | 1,10;5,64 | |||
Desconhecido | 1,00 | 1,00 | |||||
A própria pessoa | 2,27 | 0,77;6,68 | 1,81 | 0,65;5,07 | |||
Suspeita de uso de álcool pelo agressor | |||||||
Não | 1,00 | <0,001 | 1,00 | 0,714 | |||
Sim | 1,28 | 1,12;1,46 | 1,03 | 0,88;1,20 | |||
Local da violência | |||||||
Outro | 1,00 | <0,001 | 1,00 | 0,005 | |||
Residência | 1,72 | 1,37;2,18 | 1,39 | 1,10;1,75 |
a) RP: razão de prevalências; b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Discussão
A violência recorrente apresentou-se em praticamente um terço dos casos notificados no estado do Espírito Santo, no período analisado, além de ser praticada, principalmente, contra crianças em idade mais avançada (6 a 9 anos), por pessoas de seu convívio e em sua própria moradia.
As análises realizadas trazem contribuições importantes para o entendimento da violência contra a infância e os fatores associados a sua repetição, colocando esse agravo como desfecho, e não um fator associado, conforme identificam a maioria dos estudos sobre o tema.12,16-18
A elevada proporção de recorrência da violência na infância é preocupante, aponta para a vulnerabilidade social a que as crianças e suas famílias estão expostas e para a necessidade de medida de proteção à infância. Muitos dos casos que chegam a notificação são aqueles considerados mais graves ou com marcas físicas, resultado de um acúmulo de outras violências a que a criança vem sendo submetida.18 A repetição da violência contra a criança acaba por expô-la à cronicidade do agravo, com impactos negativos para seu crescimento e desenvolvimento como ser humano.2,19 A frequência de violência recorrente encontrada foi maior do que a relatada em outros estudos, igualmente sobre dados do Sinan, realizados em Manaus, AM (2009 a 2016), Porto Alegre, RS (2010 a 2016) e Ribeirão Preto, SP (2006 a 2008), e em 53 municípios do estado de Minas Gerais (2013 a 2015).12,16-18
A repetição da violência foi mais prevalente em meninas, um achado presente em mais relatos de estudos.16,19,20 A violência de gênero atinge as meninas desde a mais tenra idade, no caminho da opressão do feminino moldada em padrões culturais e econômicos impostos por grupos de poder, apenas pelo fato de serem mulheres.21,22 Uma cultura machista subjuga a mulher e acaba por normalizar e naturalizar os atos de violência contra ela, desde a infância.22
Neste estudo, a violência recorrente foi mais prevalente na faixa etária de 6 a 9 anos, para ambos os sexos. Quanto a essa variável, estudos divergem sobre qual faixa etária seria a mais atingida, o que também depende do tipo de violência sofrida:8 a negligência costuma atingir crianças de menores idades, enquanto as violências física e sexual, crianças maiores.23
A necessidade de cuidados especiais e contínuos, como ocorre nas crianças portadoras de alguma deficiência e/ou transtorno, revelou-se um fator de vulnerabilidade para a ocorrência da violência, tanto neste estudo como em outras pesquisas.24 Uma delas, de enfoque transversal, ao analisar dados de 270 crianças com deficiência atendidas em um hospital do município do Rio de Janeiro entre 2012 e 2013, encontrou frequências de 83,7% para agressão psicológica e de 84,4% para maus-tratos físicos.25 Seus autores destacam que a dificuldade de verbalização das crianças com deficiências diversas e a ambiguidade causada pelo fato de o agressor ser o encarregado de cuidar delas, pode ser um agravante para a identificação dessa violência, predispondo ainda mais essas crianças à repetição dessas agressões.25
Voltando ao presente estudo, a residência foi o local onde ocorreu a maioria das situações de violência recorrente, com frequências expressivamente superiores em ambos os sexos. Essa constatação é tanto mais contraditória quando o lar, imaginado como locus reservado à proteção e segurança na infância, torna-se um espaço de expressão e reprodução de poder do adulto sobre a criança, culminando em situações de violência.18 É no lar que as crianças permanecem mais tempo, principalmente as de menor idade, contribuindo para a predominância das violências de que são vítimas nesse local.17,26 Diferentes autores destacam que as violências contra a infância no espaço privado da residência contribuem para a subnotificação dos casos, favorecendo a proteção aos agressores e o silêncio das vítimas.19,27,28 A residência também é identificada como o principal ambiente da violência contra a criança, seja nas contribuições da literatura, seja no Sinan, cujos dados mostram uma frequência da violência no espaço reservado à família variar de 49,6%, em uma regional de saúde de Minas Gerais, a 77,0% no território do estado da Paraíba.17,27
Este estudo encontrou que os pais são os principais perpetradores da violência recorrente. Este achado, comum a outros trabalhos,12,16,18,23 demonstra a realidade da criança a conviver diariamente com seu(s) agressor(es), justamente a quem cabe o papel fundamental de protegê-la e educá-la. Assim, desvirtua-se uma relação familiar esperada, de disposição e prática de amor e cuidado dos pais com os filhos.17,27,28 Uma das explicações para esse resultado do trabalho em tela estaria no comportamento dos pais quando aplicam castigos, ameaças e agressões físicas como forma de “educar” e “disciplinar” a criança, com base em relações estabelecidas à sombra de uma hierarquia de poder adultocêntrica, em vez de se abrirem ao diálogo como forma de compreender a complexidade e solucionar as situações de conflito envolvidas na dinâmica da educação e preparação da infância para a vida adulta.16,17,19,29
A violência de pais contra filhos pode ser uma consequência da forma como aqueles foram tratados em sua infância, reproduzindo, de geração para geração, antigos padrões de criação.20,29 A violência própria estrutural, presente na sociedade ou no ambiente onde as famílias estão inseridas, e a vulnerabilidade social a que estão expostas, como dificuldades de acesso a renda, moradia e outros direitos sociais, também contribuem para a ocorrência de violências interpessoais, principalmente contra os mais vulneráveis, quase sempre as crianças.5 Tais situações geram uma carga de estresse e preocupação entre os familiares, que acabam por descontá-la na criança. Além disso, o agressor conta com a cumplicidade de membros da família quando se omitem de denunciá-lo e/ou proteger a criança vítima.30 Essa ideia faz parte de uma compreensão errônea, presente na sociedade: não interferir no que acontece na esfera privada dos lares, mesmo que haja violações de direitos e violências diretas contra seus membros.19
Entre as limitações do estudo, encontra-se a subnotificação dos casos de violência, quando se trabalha com dados de sistemas de informações como o Sinan, cujos casos notificados são aqueles atendidos e identificados como violência pelos profissionais dos serviços de saúde. Muitos dos atos de violência contra a criança acontecem sem o conhecimento do setor Saúde e, por conseguinte, não são objeto de notificação. Logo, não constam dos dados analisados neste trabalho. Também cumpre observar, entre as limitações do estudo, as dificuldades inerentes ao uso de dados secundários, sua acurácia e completitude. Nesse sentido, é mister o constante aperfeiçoamento do processo de vigilância e a capacitação permanente dos profissionais de saúde, para a adequada caracterização dos casos e o correto preenchimento da ficha de notificação.
A violência recorrente sofrida pela criança é bastante frequente, entre as notificações de violência observadas, sendo mais prevalente no sexo feminino e na faixa etária dos 6 aos 9 anos. Ela ocorre sobretudo no lar, espaço privilegiado de convívio na infância, tendo os pais como principais agressores. Isso acaba por expor as vítimas a um ciclo perverso de violência, fonte de traumas e sofrimentos para toda a vida. Essas ocorrências devem ser correta e precocemente identificadas, para que as crianças tenham seus direitos garantidos e sejam - e sintam-se - protegidas de quaisquer formas de violência durante seu crescimento e evolução, até o alcance de sua autonomia e desempenho de uma vida adulta mais saudável e feliz.