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Boletim de Pneumologia Sanitária
versão impressa ISSN 0103-460X
Bol. Pneumol. Sanit. v.10 n.1 Rio de Janeiro jun. 2002
As infecções respiratórias agudas na infância como problema de saúde pública
Yehuda Benguigui
Assessor Regional, Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância - AIDPI -OPAS/OMS - Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde, Washington, DC, EUA
RESUMO
As infecções respiratórias agudas (IRA) na infância continuam sendo um importante problema de saúde pública. Em fins da década de 90, as estimativas disponíveis indicavam que mais de 80.000 crianças com menos de cinco anos de idade morriam anualmente, nos países das Américas, em decorrência dessas doenças. Embora essa cifra tivesse sido cerca de 41% mais baixa que aquela estimada em fins dos anos 90, essas doenças continuaram sendo responsáveis por 15% do total de mortes de crianças com menos de cinco anos.
Além disso, a distribuição dessas mortes nos diferentes países que compõem a Região, não foi homogênea: enquanto se estima que nos países da área andina ocorra quase uma terça parte do total de mortes de crianças com menos de cinco anos em decorrência da IRA, na América do Norte somente 1% de todas as mortes ocorre por esta causa. Nos países da área andina, essas doenças representam 19% das mortes de crianças de 0 a 5 anos, enquanto que na América do Norte só são responsáveis por 2,5%. As infecções respiratórias agudas também são uma causa importante de enfermidade infantil, e são reconhecidas como sendo a causa mais frequente pela qual uma criança perde sua saúde. Isto é um problema, não só pelo dano direto para a saúde infantil, mas por necessitar um esforço adicional de parte da família quanto ao cuidado e a atenção da criança, que nem sempre são prestados da forma adequada. A falta de reconhecimento dos sinais precoces de alarma, assim como a utilização de tratamentos desnecessários, e inclusive, prejudiciais para criança, já foram descritos como fatores importantes para a deterioração da qualidade do atendimento à infância e põem em maior risco a saúde das crianças com menos de cinco anos.
Por todas as razões acima, o controle das IRA na infância representou e continua a representar uma prioridade para a saúde pública. A existência de estratégias e intervenções bem-sucedidas para reduzir os danos causados pelas IRA à no grupo de crianças de cinco anos, em termos de mortalidade e de morbidade grave, bem como para melhorar as práticas de assistência e cuidado das crianças que sofrem dessas doenças, abriu, há alguns anos, uma perspectiva mais favorável para o controle desse problema. Por isso, aumentar a população que possa usufruir desses beneficios aparece como sendo a principal prioridade para o adequado controle do problema e reduzir a mortalidade associada com as IRA na infância.
A OPS/OMS juntamente com as Agencias Internacionais e bilaterais apoia a implementação de estratégia AIDPI- Atenção Integrada às Doenças Prevalentes da Infância, que neste momento é considerada a intervenção mais abrangente para conseguir-se a redução da mortalidade em crianças menores de cinco anos pelas doenças mais prevalentes neste grupo de idade, pelo que as organizações internacionais, em conjunto com os Ministérios da Saúde dos países da Região das Américas, lançam a iniciativa "Crianças Saudáveis: a Meta de 2002", que prevê reduzir pelo menos 100.000 mortes adicionais, em crianças menores de cinco anos nos países da Região.
Introdução
As infecções respiratórias agudas (IRA) foram incluídas entre os três principais problemas de saúde pública da infância em finais da década de 60, junto com as doenças diarréicas e a desnutrição(1). Essas três doenças, ou problemas de saúde, foram consideradas responsáveis pela maioria das mortes antes dos cinco anos de idade, e eram a causa mais frequente pela qual uma criança perdia sua saúde durante seus primeiros anos de vida.
Uma análise do problema demonstrou haver um conjunto de causas e fatores que determinavam a magnitude da mortalidade e da morbidade grave devido a essas doenças(2). Alguns estavam associados aos conhecimentos, atitudes e práticas da família e da comunidade que determinavam, entre outras coisas, que a doença da criança fosse reconhecida de imediato ou tardiamente, e a adoção de medidas adequadas ou inadequadas para seu tratamento, incluindo a consulta ou não a um serviço ou a pessoal de saúde. Outros fatores relacionavam-se com as características da assistência dispensada àquelas crianças levadas aos serviços de saúde por causa de alguma dessas doenças, incluindo a realização, ou não, de uma avaliação completa e adequada, e a indicação e prestação do tratamento mais conveniente. Ainda outros fatores se associavam às condições básicas de vida da criança e de sua família, que as tornavam mais suscetíveis ao contágio e ao agravamento.
A melhora das condições sanitárias básicas de grandes grupos populacionais, ocorrida nas últimas décadas, resultando em maior acesso à água potável e à eliminação sanitária dos dejetos, juntamente com um melhor conhecimento por parte da população a respeito dos riscos associados com a falta de higiene pessoal e doméstica reduziu, consideravelmente a incidência de diarréia(3) . A implementação da terapia de reidratação oral (TRO), que evitou a desidratação e a morte associada à diarréia, permitiu uma redução considerável no número de óbitos por esta causa. Como resultado, as IRA que no princípio dos anos 80 ocasionavam menos mortes que as doenças diarréicas, passaram a ocupar o primeiro lugar como causa de mortalidade por doenças infecciosas na população infantil.
As IRA na infância como causa de mortalidade
Estima-se que aproximadamente 70.000 crianças com menos de cinco anos morram anualmente no continente americano em conseqiiência de infecções respiratórias agudas(4). Essas doenças causam,aproximadamente, 15% de todas as mortes que ocorrem anualmente de crianças com menos de cinco anos, porém sua importância como causa de óbito difere de país para país. Enquanto que no Canadá e nos Estados Unidos da América elas são responsáveis por 2% das mortes de crianças de 0 a 5 anos, nos outros países elas são a causa de 21% (Guatemala) ou de 39% (Haiti) das mortes neste grupo etário.
Ao se estimarem as cifras acima, fez-se a compensação do sub-registro de mortes por essas causas associadas tanto àquelas que não foram inscritas no Registro Civil como àquelas que, mesmo tendo sido inscritas, não apresentavam a causa de morte claramente definida razão pela qual não se as podiam atribuir a nenhuma causa específica.
Porém, mesmo analisando as mortes registradas, pode-se observar grandes diferenças entre os países quanto ao peso da mortalidade por doenças respiratórias na infância (Tabela 1). A taxa de mortalidade por pneumonia e gripe, que é a classificação que concentra 85% ou mais das mortes por doença respiratória antes dos cinco anos de idade, variou, em alguns países da América, entre 15 por 100.000 nascimentos (Estados Unidos) e 448,5 por 100.000 nascimentos (Peru), cifra quase que 30 vezes mais alta. Neste último país, a proporção das mortes por pneumonia ou gripe de crianças com menos de cinco anos foi 10 vezes superior a dos Estados Unidos: 20% e 2% das mortes neste grupo etário se deveram, respectivamente, à pneumonia e à gripe.
A diferença da importância que as IRA têm como causa de mortalidade entre as crianças com menos de cinco anos também se observa no interior dos países. Em El Salvador, por exemplo, se bem que as IRA tenham sido a causa de 19% das mortes de crianças com um ano de idade entre 1995 e 1996, em alguns departamentos elas representaram menos de 10% das mortes desse grupo, enquanto que em outros foram responsáveis por entre 30% e 40% da mortalidade(5).
Nos países a tendência observada na mortalidade também foi diferente e, de um modo geral, contribuiu para aprofundar a brecha que os separa, já que se observou uma menor diminuição porcentual das taxas de mortalidade naqueles países onde se registraram as cifras mais elevadas (Figura 1).
Por exemplo, comparando as velocidades de redução da mortalidade por pneumonia e gripe, principais causas de mortalidade por IRA em crianças com menos de cinco anos, de quatro países (Canadá, Cuba, Equador e Peru) nota-se que a velocidade de redução mais rápida registrou-se precisamente no país com a menor taxa de mortalidade por essas causas.
Em 1970, o país que apresentava o menor índice de mortalidade, o Canadá, diminuiu a taxa de mortalidade por pneumonia e gripe a um ritmo anual de 6,0%. Em contraposição, no Equador, a velocidade da queda foi de 3,5%. Como resultado disso, houve um aumento na diferença entre os dois países. Enquanto que em 1970 a taxa de mortalidade por pneumonia e gripe no Equador era aproximadamente sete vezes superior à do Canadá, em 1997 foi mais de 30 vezes superior.
Observa-se uma situação semelhante, e com as mesmas conseqüências, comparando a velocidade da queda da taxa de mortalidade por pneumonia e gripe em crianças com menos de um ano no Canadá e no Peru, já que neste último país, a média da queda anual foi de 2,8%, aproximadamente a metade da observada no Canadá. Portanto, a taxa de mortalidade do Peru, que, em 1970, era 11 vezes maior que a do Canadá foi, em 1997, 85 vezes mais alta que a deste último país.
Porém as diferenças na velocidade da redução da mortalidade podem ser observadas não só ao comparar os países em desenvolvimento com os desenvolvidos, tais como o Canadá. Na Figura 1 também se observa que a velocidade da diminuição em Cuba, que foi em média de 4% ao ano, foi superior às registradas tanto no Peru como no Equador.
Por essa razão, a brecha entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, e mesmo entre estes últimos, tem aumentado nas últimas décadas em relação à mortalidade por doenças respiratórias na infância.
As IRA como causa de morbidade na infância
As IRA também são a principal causa de doenças entre as crianças com menos de cinco anos(6). Em todos os estudos longitudinais realizados entre meados da década de 60 e início da década de 80, observou-se que nessa idade as crianças que vivem em zonas urbanas sofrem, anualmente, entre quatro e oito episódios de infecções respiratórias. As crianças com menos de cinco anos que vivem em zonas rurais mostraram uma incidência um pouco menor, entre dois e quatro episódios anuais de doença respiratória.
Diante do fato de esses estudos terem sido realizados tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento, foi possível comparar se existiam diferenças na incidência encontrada, observando-se que os valores eram semelhantes. No entanto, encontrou-se diferença no que tange a incidência de pneumonia, tendo esta sido mais elevada nos países em desenvolvimento que nos países desenvolvidos.
Levantamentos realizados mais recentemente em comunidades(7) também demonstraram a elevada incidência de doenças respiratórias na infância, observando-se que aproximadamente 20% das crianças com menos de cinco anos tinhamtido um episódio de tosse ou de dificuldade de respirar nas duas semanas anteriores ao levantamento (Tabela 2). Com exceção do resultado obtido no levantamento realizado no Equador, a proporção de crianças com menos de cinco anos que tiveram episódio de IRA nas duas semanas anteriores ao levantamento foi semelhante em quase todos os países, e não mostrou grandes diferenças em sua duração nos países onde se realizaram esses levantamentos pelo menos duas vezes.
Infere-se, igualmente, da análise das consultas aos serviços de saúde, a alta incidência de IRA durante a primeira infância. Em um estudo realizado utilizando 3.000 consultas de crianças com menos cinco anos em quatro postos de saúde que prestam atendimento ambulatorial(8), as IRA foram a classificação diagnóstica que os médicos mais utilizaram, representando 32% das 1.000 consultas de crianças com menos de um ano e 53% das 2.000 consultas daquelas de 1 a 4 anos analisadas (Figura 2).
A análise dos principais diagnósticos mostra que as doenças respiratórias potencialmente mais graves, como a pneumonia, representam uma pequena proporção das consultas por IRA: aproximadmente 3,5% tanto para crianças com menos de um ano como para o grupo de 1 a 4 anos(9). Em contraposição, a maioria das consultas deve-se a problemas das vias respiratórias superiores, tais como o resfriado comum, a congestão das vias aéreas superiores, e a faringite. A bronquite também foi frenquentemente diagnosticada, representando uma quarta parte das consultas de crianças com menos de um ano de idade e a terça parte daquelas de 1 a 4 anos.
A análise das hospitalizações de crianças com menos de cinco anos também mostra que as IRA são responsáveis por uma em cada quatro hospitalizações de crianças com menos de um ano e por uma de cada três hospitalizações das de 1 a 4 anos. Entre as hospitalizações por IRA, uma das principais causas é a pneumonia, com um peso relativamente menor entre aquelas de zero a um ano, grupo em que o número de hospitalizações se vê incrementado pela bronquiolite.
Algumas considerações sobre a qualidade do atendimento às IRA na infância
A grande freqüência com que as crianças de 0 a 5 anos sofrem de doenças respiratórias determina que tanto as famílias como os serviços de saúde devem investir uma boa parte do tempo na assistência aos casos. Parte das medidas de tratamento posta em prática em casa e, especialmente, nos serviços de saúde tem a ver com a administração de uma diversidade de medicamentos diferentes, muitos deles desnecessários para a evolução adequada dos quadros e alguns cujo emprego pode estar associado a diferentes riscos para a saúde da criança. Além disso, para ser adequado, o atendimento dos casos em casa e nos serviços de saúde requer, um claro reconhecimento daqueles casos que não podem ser resolvidos no nível de atendimento onde se encontram, já que este depende do acesso precoce ao tratamento mais apropriado para cada quadro da doenças.
Todos esses aspectos determinam a qualidade da assitência às IRA na infância e podem contribuir para a redução da ocorrência de casos graves e de mortes por essa causa, bem como a para garantir que os casos recebam o atendimento mais eficiente, tanto nos serviços de saúde como em casa e na comunidade.
Os estudos realizados em relação a diferentes aspectos da assitência dos casos de IRA mostram, no entanto, que muitas medidas de tratamento e de atendimento não são as apropriadas e podem, inclusive, pôr em perigo a saúde das crianças com menos de cinco anos.
Alguns aspectos do atendimento às IRA em casa a nível domiciliar
Pesquisas realizadas nos países em desenvolvimento demonstram que somente certa proporção dos casos de tosse ou dificuldade de respirar em crianças com menos de cinco anos foram levados a um serviço de saúde para avaliação, classificação e tratamento (Tabela 2). Ainda que não seja estritamente necessário que todos os casos de IRA sejam atendidos em um serviço de saúde, selecionar quais os que devam ser atendidos por pessoal de saúde requer que os pais, ou as pessoas responsáveis pelo cuidado da crinça em casa, reconheçam os sinais de alarme precoce, de forma a não pôr em perigo a vida da criança(10).
O estudo da mortalidade e da morbidade hospitalar mostra que algumas crianças com menos de cinco anos que faleceram devido a uma IRA não tiveram contacto com o sistema de saúde ou, então, o contacto só se deu quando a gravidade do quadro já punha em risco a possibilidade de um tratamento bem sucedido(11). Além disso, pesquisas realizadas na comunidade, mostraram variações no que tange a percepção dos pais quanto à gravidade dos episódios de IRA em seus filhos e que uma proporção variável deles não utilizava os sinais de alarme precoce como um critério para definir a necessidade de levar a criança a um serviço de saúde(12).
Dessa forma, a baixa proporção de casos de IRA levada a um serviço de saúde observada em alguns países, pode estar associada a uma alta incidência de casos graves e, inclusive, a uma elevada ocorrência de mortes por essa causa.
Além da percepção da gravidade do quadro, o acesso aos serviços de saúde determina, em grande parte, a conduta dos pais para buscar assistência. Comparando as cifras encontradas nas pesquisas, verifica-se que nos países com menos acesso à atenção à saúde, a proporção de procura pela atenção também é menor.
Outro aspecto relacionado com a qualidade do atendimento às doenças respiratórias na infância diz respeito ao uso de medicamentos por parte da população(13). Os levantamentos feitos nos domicílios mostram que uma proporção significativa das famílias declarou ter utilizado remédios para tosse e para resfriado, durante as duas últimas semanas, para tratar casos de IRA em seus filhos com menos de cinco anos. Não se indica o uso desses medicamentos por não serem úteis para a cura da doença e alguns, inclusive, podem sei prejudiciais.
O uso de medicamentos por parte da família não se limita apenas a remédios para a tosse e o resfriado, uma vez que a prática de auto-administração de antibióticos está cada vez mais difundida. Estudos realizados em relação à demanda de antibióticos nas farmácias(14) mostram que uma grande proporção dessa demanda é para o tratamento de doenças respiratórias de crianças com menos de cinco anos de idade. Embora a maioria dos antibióticos utilizados nesses casos seja derivada da penicilina, observa-se, também o emprego de outros antibióticos de segunda e de terceira escolha.
Alguns aspectos do atendimento às IRA nos serviços de saúde
Se bem seja verdade que quando os casos de IRA chegam aos serviços de saúde, muitas vezes o atendimento dado não é o mais eficiente, se levada em consideração a relação entre os recursos disponíveis, tanto materiais como humanos, e o resultado final.
Os critérios utilizados para a avaliação dos casos não se baseiam, necessariamente, na melhor relação entre a sensibilidade e a especificidade dos sinais e sintomas utilizados. Conseqüentemente, investem-se muitos recursos em testes complementares, tais como radiografias de tórax ou exames de laboratório, ou em medicamentos para o tratamento, que em nada contribuem ou que tálvez não sejam estritamente necessários para determinar e levar a cabo o tratamento(15). Pelo fato de os recursos disponíveis serem limitados, isso sobrecarrega o sistema de saúde e a economia familiar, sem resultar em beneficio concreto para resolver o episódio da doença.
Outros estudos já demonstraram que muitas crianças com menos de cinco anos de idade, levadas para consulta devido a uma infecção respiratória aguda, são submetidas a radiografias de tórax que não fornecem elementos para determinar qual o tratamento a ser dispensado. Em certos casos estas radiografias nem sequer serão utilizadas como parte da avaliação e permanecem no setor de radiografias dos hospitais de referência.
Da mesma maneira, vários, estudos já demonstraram haver uma grande proporção de casos de IRA tratados desnecessariamente com antibióticos com base nos achados da avaliação clínica do caso(16).
Em alguns estudos observou-se que a proporção de casos de IRA tratados com antibióticos foi de 40% ou mais em crianças com menos de um ano de idade e de 60% no grupo de um a quatro anos. De acordo com as classificações ou os diagnósticos desses casos estimouse que em ambos os grupos etários não mais de 20% deveria ter recebido tratamento com antibióticos.
Mesmo naqueles casos em que o antibiótico era necessário, também se observou uma escolha pouco eficiente do medicamento a ser usado, como também indicações inadequadas com respeito à dose, freqüência e duração do uso dos antibióticos.
Algumas outras conseqüências: uso de antibióticos e resistência bacteriana
o uso desnecessário de antibióticos para o tratamento não representa somente um problema associado com os custos da assistência aos casos de IRA em crianças com menos de cinco anos. A utilização irracional e inadequada dos antibióticos já foi reconhecida como um dos fatores que contribuem para a crescente resistência das bactérias a esses medicamentos(17) . Esse fenômeno requer a continuada síntese de novos antibióticos que possam vencer a resistência apresentada pelas bactérias a antibióticos que antes eram eficazes para seu controle. Porém, como esses novos antibióticos também passam a ser utilizados de modo inadequado e irracional, o problema, longe de ser resolvido, continua a se agravar.
Apesar de nos países da América Latina sejam limitadas as informações sobre a resistência das bactérias aos antibióticos, houve, nos últimos anos um aumento na quantidade de estudos para lidar com esse problema(18). Mediante a instituição de um sistema de vigilância em vários países do continente, a OPAS/ OMS pôde determinar que aproximadamente 9% das linhagens isoladas de Streptococcus pneumoniae em países das Américas apresentaram resistência à penicilina, acrescentando-se a esta cifra outros 18% com resistência intermediária a este antibiótico.
A prevalência estimada da resistência ao S. pneumoniae à penicilina chegou a ser tão alta quanto 24%, em São Paulo, e tão baixa quanto 6%, na Colômbia. Os resultados obtidos de uma compilação de informações de outros estudos mostraram valores ainda mais altos em quase todos os países.
Além da resistência à penicilina, as linhagens de S. pneumoniae estudadas em alguns países como, por exemplo, na Argentina, também apresentam grande resistência ao cotrimoxazol e a algumas cefalosporinas (cefuroxima e cefotaxima).
O controle das IRA na infância
O reconhecimento de todos os aspectos mencionados acima foi a base para que o controle das IRA na infância fosse considerado como de alta prioridade para se melhorar as condições de saúde das crianças com menos de cinco anos de idade nos países em desenvolvimento. Junto com as doenças diarréicas e a desnutrição, as quais na maioria das vezes estão associadas com uma maior freqüencia e gravidade dos episódios, já na década de 60 as IRA foram reconhecidas como um dos principais problemas de saúde pública nos países. Isto serviu de base para o estudo e a elaboração de diferentes estratégias para a prevenção e o tratamento dessas doenças com o fim de reduzir a carga que representavam nas taxas de mortalidade e de morbidade na infância e para garantir que os episódios recebessem a atenção apropriada.
No final da década de 70 e início da de 80 foi possível dispor de estratégias visando a padronização dos critérios de avaliação e de tratamento das IRA, as quais foram concentradas na estratégia de Manejo Padrão de Casos de IRA (MPC/IRA) proposta pela OPAS/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde/ Organização Mundial de Saúde) e implementada nos países em desenvolvimento durante a década de 80 e início da de 90(19).
O MPC/IRA provou ser uma estratégia útil para melhorar a qualidade do atendimento dos casos nos serviços de saúde e, por meio dessa melhora, para reduzir a incidência de complicações e de mortalidade, especialmente por pneumonia, que é a principal causa de morte por IRA entre crianças com menos de cinco anos.
O emprego do MPC/IRA nos serviços de saúde ficou associado, por exemplo, com uma redução progressiva de receitas médicas de antibióticos, especialmente para o tratamento de episódios de resfriado comum, faringite não estreptocócica e de broquite. Em alguns serviços de saúde a proporção dos casos de IRA tratados com antibióticos passou de mais de 60% para menos de 30%; essa queda deveu-se a uma brusca redução no uso de antibióticos para o tratamento do resfriado comum, da bronquite e da faringite não estreptocócica.
Também em alguns países documentou-se a redução no uso da radiografia de tórax como ferramenta de diagnóstico, a partir da aplicação do MPC/IRA, que recomenda o uso mais seletivo dessa técnica com base na avaliação da freqüência respiratória. A proporção de casos dé IRA estudados com radiografia de tórax desceu de 55% para 28% em alguns hospitais após a aplicação do MPC/IRA como padrão para o atendimento dos casos na consulta ambulatorial externa e nos berçários de emergência.
A aplicação dos critérios contidos no MPC/IRA também apresentou resultados quanto à freqüência de complicações da pneumonia, tais como derrame pleural. A partir da aplicação da estratégia em todos os serviços de saúde de uma área do Estado de Zulia, Venezuela, a freqüência dessa complicação entre os casos hospitalizados por pneumonia sofreu uma redução progressiva, fato este associado à maior rapidez no diagnóstico e no tratamento da pneumonia com antibióticos. Observou-se também, como conseqüência, uma redução na taxa de mortalidade entre os casos de pneumonia hospitalizados, o que na realidade se repercutiu na mortalidade total por esta causa entre as crianças com menos de cinco anos.
No entanto, a estratégia de MPC/IRA, bem como outras estratégias para o controle de doenças e de problemas específicos de saúde, só eram aplicadas, na prática, àqueles casos que se enquadravam nos critérios de admissão para que o pessoal de saúde pudesse determinar a necessidade de sua utilização; neste caso, tosse ou dificuldade de respirar(20). Isto ocasionava uma quantidade variável de oportunidades perdidas para a detecção e o tratamento eficaz de casos de IRA naquelas crianças que não tinham sido levadas ao serviço de saúde especificamente por essa razão. Mesmo no caso de crianças que compareciam para o controle das imunizações ou para o controle do crescimento, o pessoal de saúde deixava de avaliá-las quanto à presença de sinais de doença respiratória, e isso impedia a detecção precoce e o tratamento imediato de muitos casos.
Perspectivas para acelerar o alcance do controle das IRA na infância
Com base nos problemas acima enumerados, e levando em consideração as estratégias e as intervenções específicas já existentes para o controle das doenças da infância, a OPAS/OMS e o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) começaram a criar uma nova estratégia visando integrar todas as intervenções em uma única investida. A estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância AIDPI, constitui, assim, um enfoque único que dá as orientações para a avaliação, classificação e tratamento das doenças e problemas de saúde que afetam a infância com maior freqüência nos países em desenvolvimento e que, além disso, inclui componentes de prevenção e de promoção da saúde infantil(21).
Concentrando a atenção mais na condição de saúde da criança do que no motivo da consulta, a aplicação da estratégia evita que se percam as oportunidades de detecção e de tratamento de doenças ou de problemas de saúde que podem passar despercebidos pelo pessoal de saúde por não serem o motivo principal de preocupação na ocasião da consulta. Além do mais, incorporando a aplicação sistemática de intervenções de prevenção e de promoção da saúde, evitam-se também as oportunidades perdidas de reduzir a incidência de doenças e de melhorar os conhecimentos e as práticas dos pais com respeito ao cuidado da saúde infantil.
Esses conhecimentos e práticas, quando aplicados pelos pais no cuidado da criança, também lhes permite detectar precocemente os sinais de alarme de doenças para levar a criança à consulta, e lhes dão informações concretas para agir da maneira adequada em relação coma alimentação da criança e seu cuidado, melhorando, assim, sua capacidade para a solução de problemas, bem como sua capacidade para identificar os sinais que devem motivar uma visita imediata ao serviço de saúde.
O MPC/IRA é um dos componentes mais importantes da estratégia de AIDPI, já que as IRA representam a principal causa de doenças na infância. Além do mais, os aspectos técnicos da estratégia de AIDPI para o controle das IRA são os mesmos que aqueles que já haviam sido incluídos no MPC/IRA, e que demonstraram sua eficácia para a redução da mortalidade e da morbidade grave e para melhorar a qualidade do atendimento.
É por este motivo que se espera que a aplicação da estratégia de AIDPI contribua, em grande parte, para a continuação dos sucessos já obtidos pelo emprego da estratégia de MPC/IRA. Espera-se, igualmente, que a AIDPI fortaleça esses sucessos ao permitir que mais crianças possam gozar dos beneficios do manejo adequado das IRA ao consultarem os serviços de saúde por outras doenças, ou mesmo para o controle de saúde nos serviços de primeiro nível de assistência, bem como em seus lares.
Contribuições do controle das IRA para iniciativa "Crianças Sadias: a Meta de 2002"
Levando em consideração o potencial da estratégia de AIDPI para a detecção precoce e para o tratamento eficaz das doenças que mais freqüentemente afetam a saúde das crianças com menos de cinco anos de idade, a OPAS/OMS lançou no final de 1999 a iniciativa "Crianças Sadias: a Meta de 2002", que se propõe a evitar 100.000 mortes de crianças com menos de cinco anos nos países das Américas entre 1998 e 2002, dando acesso universal à estratégia.
A iniciativa visa acelerar o processo da implementação da estratégia de AIDPI nos países, orientando os esforços para conseguir com que os grupos mais vulneráveis da população, em especial, tenham acesso a seus beneficios.
Pelo fato de as IRA serem uma das principais causas de mortalidade devido às doenças que são o objeto da estratégia de AIDPI, a contribuição desta para seu controle e para a realização da Meta 2002 é de importância fundamental já que entre 40% e 50% das mortes a serem evitadas devem-se à pneumonia, a principal causa de mortalidade por IRA entre as crianças de zero a cinco anos.
Espera-se que a aplicação da estratégia de AIDPI contribua para melhorar a identificação dos sinais de alarme por parte dos pais e para fomentar a consulta precoce, especialmente naquelas situações em que o quadro respiratório requer tratamento por parte do pessoal de saúde. Ao melhorar as práticas do pessoal de saúde do primeiro nível, a estratégia de AIDPI contribuirá para que estes detectem rapidamente aqueles casos que necessitem de tratamento hospitalar, assim como os casos que necessitem de um antibiótico para deter a evolução do quadro. Dessa maneira, se reduzirão as mortes que estão realmente associadas com a falta de tratamento ou com o tratamento tardio.
Além disso, como a estratégia de AIDPI contribui para melhorar a condição geral da saúde das crianças com menos de cinco anos, estas estarão em melhores condições para reagir aos frequentes episódios de IRA, o que diminuirá a incidência de episódios graves, com o conseqüente impacto no número de óbitos por esta causa.
Dessa maneira, poder-se-á avançar progressivamente para o alcance de melhores condições de saúde para a infância, promovendo um crescimento e desenvolvimento saudável para as gerações futuras.
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20. Organización Panamerican de la Salud. Organización Mundile de la Salud. Acciones de salud matemoinfantil a nivel local: según las metas de la Cumbre Mundial en favor de la infancia. OPS/OMS; 1996.
21. Organización Panamericana de la Salud. Organización Mundiale de la Salud. Atención integrada a las enfermedades prevalentes de la infancia (AIEPI). Curso clínico OPS/OMS; 1996.
Recebido em 21/02/2002. Aprovado em 24/05/2002.