Introdução
A longevidade é uma das maiores conquistas da população mundial, embora essa conquista aconteça de forma distinta, conforme as diferentes nações e contextos socioeconômicos.1 Nos países de alta renda, o aumento da proporção de idosos na população ocorreu de forma gradual, acompanhando as melhorias das condições gerais de vida. Já nos países de renda média e baixa, esse aumento vem ocorrendo de forma acelerada, representando um desafio para as políticas sociais e de saúde vigentes.2
Entre as implicações que o processo de envelhecimento acarreta, destaca-se a maior participação de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) em um cenário de maior longevidade, devido às melhores condições de saúde, desencadeando mudanças no perfil epidemiológico. O crescimento do número de idosos com incapacidade funcional é uma das consequências dessa mudança, dificultando a adaptação do indivíduo no ambiente social e resultando em maior vulnerabilidade física e mental.3
Incapacidade funcional consiste na dificuldade em desempenhar atividades cotidianas em algum domínio da vida, em função de um problema de saúde.4 Associada a fatores multidimensionais, a incapacidade funcional pode ser mensurada sob a ótica de dois domínios: a realização de atividades básicas da vida diária (ABVD), ou seja, tarefas ligadas ao autocuidado, como alimentar-se e banhar-se; e a realização das atividades instrumentais da vida diária (AIVD), relacionadas à independência do indivíduo na sociedade, como, por exemplo, fazer compras e utilizar meio de transporte.5
No Brasil, a prevalência de incapacidade entre idosos pode variar de 6,9 a 47%, segundo a população, a faixa etária considerada e os instrumentos de avaliação utilizados.6-9 Estudo pautado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2003 revela que os principais fatores associados à incapacidade em idosos são o sexo feminino, maior idade, presença de doenças crônicas, autoavaliação ruim de saúde, baixa renda e baixa escolaridade.6
A perda da capacidade funcional traz implicações para o idoso, a família e a comunidade. Além de aumentar o risco de morte, ela gera maior chance de hospitalização e de gastos para o Sistema Único de Saúde (SUS) e para as famílias. Por isso, é fundamental avaliar a incapacidade funcional em idosos e seus fatores associados, para eleger intervenções apropriadas, com o intuito de auxiliar na promoção da qualidade de vida e na (re) organização de estratégias com foco nos indivíduos e na população.10
O presente estudo teve como objetivo estimar a prevalência e os fatores associados à incapacidade funcional para ABVD e AIVD em idosos residentes na área urbana do município de Bagé, estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Métodos
Estudo transversal de base populacional, com dados coletados de julho a novembro de 2008, na área urbana e de abrangência dos serviços de atenção básica à saúde no município de Bagé-RS, em uma amostra de idosos: indivíduos com 60 anos ou mais de idade. Em 2008, o município gaúcho tinha aproximadamente 122.461 habitantes, dos quais 14.792 (12%) idosos, residentes no perímetro urbano em sua maioria: 82%.
O tamanho de amostra foi calculado para um estudo maior, objetivando avaliar a ocorrência de atendimento domiciliar segundo o modelo de atenção básica à saúde.16 Considerando-se 10% de perdas e recusas, e um efeito de delineamento de 1,3, o estudo teve 80% de poder para detectar riscos relativos de 1,5 e exposições que afetavam, como mínimo, 4% da população.
A coleta de dados do estudo maior foi realizada respeitando as 20 unidades básicas de saúde (UBS) que o município dispunha no momento: 15 unidades da Estratégia Saúde da Família (ESF) e 5 UBS no modelo tradicional. A ESF apresentava uma cobertura de 51% da população urbana, enquanto o modelo tradicional alcançava 49%. Assim, a população do estudo correspondeu ao total da população urbana de idosos do município.
Para localização da amostra, as UBS foram divididas em microáreas, com identificação numérica de cada quadra, sorteando-se, aleatoriamente, o ponto inicial de coleta de dados e cada uma das quadras. Para garantir que todos os domicílios tivessem a mesma probabilidade de compor a amostra, foi empregado o sistema de seleção de uma a cada cinco residências encontradas. Todos os moradores com 60 anos ou mais de idade residentes nos domicílios selecionados foram convidados a participar da pesquisa. As entrevistas não realizadas após três tentativas de visitas, em dias e horários diferentes, foram consideradas perdas; e foram registradas como recusas aquelas em que os idosos não aceitaram participar.
Sendo assim, foram incluídos no estudo idosos - 60 anos ou mais de idade - moradores em domicílios particulares na zona urbana de Bagé-RS, na data de referência da pesquisa; foram excluídos os indivíduos que, no momento da entrevista, encontravam-se em viagem, privados de liberdade por decisão judicial ou residindo em instituições de longa permanência. No caso de pessoas sem condições físicas ou mentais para responder o questionário, este foi aplicado ao cuidador principal.
A variável dependente ‘incapacidade funcional’ foi operacionalizada para caracterizar, de modo independente, os domínios das atividades básicas e instrumentais da vida diária. Para a caracterização das ABVD (tomar banho, vestir-se, alimentar-se, usar o vaso sanitário e fazer as transferências cama-cadeira), utilizou-se o índice de Katz,11 e para as AIVD (utilizar o telefone, ir a lugares distantes, fazer compras, preparar refeições, realizar tarefas domésticas, controlar o dinheiro, tomar medicamentos e lidar com objetos pequenos), a escala de Lawton e Brody.12 A seleção desses dois instrumentos teve por base sua vasta utilização em inquéritos13,14 anteriores sobre a incapacidade funcional em idosos, além de serem validados e reconhecidos pelo Ministério da Saúde.15
Para cada atividade avaliada em cada domínio, foram ofertadas três opções de respostas: não recebe ajuda, recebe ajuda parcial ou recebe ajuda total. A incapacidade funcional foi definida pela necessidade de ajuda parcial ou total para ao menos uma atividade básica e pelo menos uma atividade instrumental da vida diária.
As variáveis independentes incluídas foram:
- sexo (feminino; masculino);
- idade (em anos completos: 60 a 64; 65 a 69; 70 a 74; 75 ou mais);
- morar só (sim; não);
- raça/cor da pele autorreferida (branca; preta; parda, indígena e amarela);
- situação conjugal (casado ou com companheiro; viúvo; solteiro ou separado);
- escolaridade (em anos completos: sem escolaridade formal; 1 a 7; 8 ou mais);
- classificação econômica, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa -ABEP (A/B; C; D/E);
- uso de tabaco (ex-fumante; fumante; nunca fumou);
- uso de álcool nos últimos 30 dias (sim; não);
- comportamento sedentário - assistir a TV mais de 3 horas por dia (sim; não);
- autoavaliação de saúde (ótima/boa; regular; ruim/péssima);
- sentimento com relação à vida (satisfeito; insatisfeito);
- Comparado com outras pessoas de sua idade, sua saúde está: melhor, igual, pior?;
- história de queda no último ano (sim; não);
- história de fraturas no último ano (sim; não);
- diagnóstico médico de hipertensão arterial sistêmica (sim; não);
- diagnóstico de diabetes mellitus (sim; não);
- diagnóstico médico de acidente vascular encefálico (sim; não);
- diagnóstico médico de problema cardíaco (sim; não);
- diagnóstico médico de reumatismo, artrite ou artrose (sim; não);
- diagnóstico médico de câncer (sim; não);
- deficit cognitivo (miniexame mental: até 22/23) (sim; não);
- Utilização de serviço de urgência/emergência nos últimos três meses (sim; não).
- Atendimento domiciliar nos últimos três meses (sim; não).
- Consulta médica nos últimos três meses (sim; não).
- Hospitalização nos últimos 12 meses (sim; não).
As análises foram conduzidas pelo programa Stata® versão 12.1. Foram realizadas análises independentes para caracterizar a incapacidade funcional para ABVD e AIVD, não sendo apresentada uma variável que combinasse ambos domínios. Empregou-se a estatística descritiva no cálculo das prevalências e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Na análise bruta, foram empregados testes de qui-quadrado para heterogeneidade ou tendência linear. A análise ajustada serviu ao objetivo de avaliar a associação de cada domínio da incapacidade funcional com as variáveis independentes, controlando-se os possíveis fatores de confusão. As variáveis de exposição foram organizadas de acordo com o seguinte modelo hierárquico:
1° nível - Características demográficas e socioeconômicas
2° nível - Características comportamentais
3° nível - Condição de saúde e morbidade
4° nível - Utilização de serviços de saúde
Aplicou-se seleção para trás (backwards), por níveis hierárquicos. Empregou-se a regressão de Poisson com ajuste robusto da variância. Foram calculadas as razões de prevalência e respectivos IC95%, e mensurados os valores p do teste de Wald de heterogeneidade e tendência linear. Associações com valor p<0,05 foram consideradas estatisticamente significativas.
A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas: Parecer no 15/08. Os princípios éticos foram resguardados, a partir da assinatura pelos participantes do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e da garantia de seu anonimato absoluto.
Resultados
As análises incluíram os 1.593 idosos entrevistados; perdas representaram 4,0% (n=76) e recusas 3,0% (n=44). A amostra foi constituída, predominantemente, por mulheres (63,0%), indivíduos na idade de 70 anos ou mais (51,4%) e de raça/cor da pele branca (78,6%); 51,2% da amostra corresponderam a idosos casados ou vivendo com companheiro, 33,8% viúvos e 17,5% residindo sós. A maioria (54,6%) referiu ter de 1 a 7 anos de estudo e 23,6% não tinham escolaridade; 38,4% pertenciam à classe C e 34,0% à classe D/E. Com relação às variáveis comportamentais, 39,6% dos idosos relataram ter parado de fumar, 15,3% eram fumantes, 16% haviam consumido álcool nos últimos 30 dias e 59,3% admitiram assistir a televisão mais de 3 horas diárias. Quanto à autoavaliação de saúde, 34,1% dos idosos referiram-na regular, 94,3% afirmaram estar satisfeitos com a vida e 44,6% dos entrevistados consideravam sua saúde igual à das demais pessoas em geral.
No que concerne às doenças, 4,0% dos idosos relataram ter sofrido algum tipo de fratura, e 28,0% quedas no último ano. Mais da metade dos entrevistados (55,3%) possuía diagnóstico médico de hipertensão arterial sistêmica, 15,1% de diabetes mellitus e 27,2% de reumatismo, artrite ou artrose. Entre os idosos entrevistados, 9,8% relataram ter sofrido acidente vascular encefálico, 29,6% algum problema cardíaco e 4,9% diagnóstico de câncer; 34,1% possuíam deficit cognitivo. Por fim, sobre a utilização dos serviços de saúde, 17,7% dos entrevistados disseram ter-se hospitalizado nos últimos 12 meses, 12,8% relataram ter-se submetido a consulta de emergência e 54,5% a consulta médica; e 6,8% dos idosos afirmaram ter recebido algum tipo de atendimento domiciliar nos três meses anteriores à entrevista.
A prevalência de incapacidade funcional para as ABVD foi de 10,6% (IC95%: 9,1;12,1), e para as AIVD de 34,2% (IC95%: 31,9;36,6). A Tabela 1 descreve a situação de dependência para cada atividade básica e instrumental da vida diária. Entre as atividades básicas, a maior independência foi para se alimentar (96,5%), seguida de realizar transferências cama-cadeira (94,8%). A necessidade de ajuda parcial para tomar banho foi referida por 3,9% dos idosos, e por 3,7% para realizar as transferências cama-cadeira. Quanto à necessidade de ajuda total, a maior dependência encontrada foi para se vestir (7,0%) e se banhar (5,5%). Quanto às atividades instrumentais, os idosos referiram maior independência para lidar com objetos pequenos (86,7%) e administrar a ingestão de remédios (86,6%), enquanto 11,6% referiram necessidade de ajuda parcial para arrumar a casa e 9,7% para fazer compras. A necessidade de ajuda total foi mais frequente para usar o telefone (11,0%) e fazer compras (10,3%).
As Tabelas 2 e 3 apresentam as análises bruta e ajustada da incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais, conforme as variáveis independentes. Os fatores que se mantiveram associados a incapacidade funcional para atividades básicas, na análise ajustada, foram: idade de 75 anos ou mais (RP=3,55; IC95%: 2,23;5,66), em comparação aos idosos com 60 a 64 anos; e situação conjugal de viúvo (RP=1,52; IC95%: 1,12;2,06), em comparação aos casados ou com companheiro. A associação com a escolaridade apresentou tendência linear, sendo a prevalência de incapacidade para ABVD maior entre os idosos com menor escolaridade. Idosos que consumiram bebida alcoólica nos últimos 30 dias tiveram maior prevalência de incapacidade para ABVD (RP=3,06; IC95%: 1,37;6,83). Idosos satisfeitos com a vida tiveram menor prevalência de incapacidade para ABVD (RP=0,51; IC95%: 0,33;0,78). A prevalência de incapacidade para atividades básicas foi maior entre indivíduos com diagnóstico de acidente vascular encefálico (RP=2,72; IC95%: 1,91;3,87) e com rastreio positivo para deficit cognitivo (RP=3,99; IC95%: 2,50;6,37). Hospitalização nos últimos 12 meses (RP=1,73; IC95%: 1,26;2,40) e atendimento domiciliar nos últimos três meses (RP=2,50; IC95%: 1,62;3,86) estiveram associados a maior ocorrência de incapacidade para ABVD (Tabela 2).
a) Valor p calculado pelo teste de Wald de heterogeneidade
b) Valor p calculado pelo teste de Wald de tendência linear
c) RP: razão de prevalência
d) IC95%: intervalo de confiança de 95%
Nota: Ajustado para 1° nível - Características sociodemográficas -, 2° nível - Características comportamentais - 3° nível - Condição de saúde e morbidade - e 4° nível - Utilização de serviços de saúde. As variáveis sexo; morar só; raça/cor da pele; classificação econômica; tabagismo; comportamento sedentário; autoavaliação de saúde; sentimento com relação à vida; saúde comparado com outras pessoas; queda; fraturas; hipertensão arterial sistêmica; diabetes mellitus; problema cardíaco; reumatismo, artrite ou artrose; câncer; uso de serviço de urgência/emergência; e consulta médica foram suprimidas da tabela pois não apresentaram associação estatisticamente significativa com o desfecho.
a) Valor p calculado pelo teste de Wald de heterogeneidade
b) Valor p calculado pelo teste de Wald de tendência linear
c) RP: razão de prevalência
d) IC95%: intervalo de confiança de 95%
Nota: Ajustado para 1° nível - Características sociodemográficas -, 2° nível - Características comportamentais - 3° nível - Condição de saúde e morbidade - e 4° nível - Utilização de serviços de saúde.As variáveis sexo; morar só; situação conjugal; classificação econômica; comportamento sedentário; sentimento com relação à vida; saúde comparado com outras pessoas; queda; fraturas; hipertensão arterial sistêmica; problema cardíaco; reumatismo, artrite ou artrose; câncer; uso de serviço de urgência/emergência; e consulta médica foram suprimidas da tabela pois não apresentaram associação estatisticamente significativa com o desfecho.
Comportamento semelhante foi observado para as AIVD - com exceção das variáveis ‘estado civil’, ‘sentimento com relação à vida’ e ‘condição de saúde’ -, na comparação entre os que apresentaram e os que não apresentaram associação estatisticamente significativa com as AIVD. Por sua vez, algumas variáveis estiveram associadas à incapacidade para AIVD e não para ABVD. Idosos de raça/cor da pele parda/indígena/amarela tiveram maior prevalência de incapacidade para AIVD (RP=1,32 - IC95%: 1,12;1,56) do que aqueles que referiram raça/cor da pele branca. Ex-fumantes apresentaram maior prevalência de incapacidade para AIVD (RP=1,22 - IC95%: 1,06;1,40) do que fumantes atuais, e idosos com diabetes tiveram mais ocorrência de incapacidade para AIVD (RP=1,33 - IC95%: 1,12;1,58). Morar sozinho foi estatisticamente associado a menor ocorrência de incapacidade para ABVD e AIVD (Tabela 3).
Discussão
Os resultados da pesquisa reforçam a condição multidimensional da incapacidade funcional, que se associa a características demográficas, socioeconômicas, comportamentais, de situação de saúde e de utilização dos serviços de saúde pelos idosos. A maioria dos entrevistados foi considerada independente para realizar as atividades básicas e instrumentais da vida diária. Contudo, uma expressiva proporção apresentou dificuldade ou incapacidade para desempenhar algumas atividades, principalmente no domínio instrumental.
Acredita-se que a presença de maiores limitações na execução das atividades instrumentais ocorra devido ao impacto que menores níveis de comprometimento motor, sensitivo e cognitivo geram na execução dessas funções; diferentemente das atividades básicas, que exigem menor integridade dos sistemas para sua execução, razão porque a incapacidade de realizá-las costuma estar vinculada a grandes limitações.14
À semelhança do presente estudo, pesquisa que investigou idosos do município de Pelotas-RS, entre 2007 e 2008, encontrou maiores prevalências de incapacidade funcional para as atividades de ‘tomar banho’, ‘vestir-se’ e ‘fazer compras’.17 As evidências sugerem que as dificuldades na realização de atividades, básicas ou instrumentais, decorrem do processo fisiológico de envelhecimento, que compromete funções cognitivas (deficit de atenção, raciocínio e memória), motoras (diminuição da força física, limitações da mobilidade e do equilíbrio) e sensitivas (diminuição da visão, tato, propriocepção, audição, paladar e olfato).14
Nesse contexto, aumenta a relevância de estratégias possíveis de minimizar a dependência do idoso e ampliar sua funcionalidade, por meio de redução de barreiras arquitetônicas, melhoria da iluminação e da disposição dos móveis da casa, e da utilização de mecanismos adaptativos como, por exemplo, órteses (bengalas, muletas, andador, cadeira de rodas, aparelho auditivo e óculos).14
Segundo o presente estudo, idosos com 75 anos ou mais apresentaram maior probabilidade de incapacidade funcional para atividades básicas e instrumentais, à semelhança dos achados de inquéritos nacionais18,6 e internacionais.19,20 O declínio funcional compromete 6% das funções biológicas em idosos entre 60 e 64 anos, alcançando cerca de 50% da capacidade fisiológica a partir dos 75 anos.20
Com relação à raça/cor da pele, idosos pardos/indígenas/amarelos apresentaram 32% mais incapacidade funcional para atividades instrumentais quando comparados àqueles de raça/cor da pele branca. Ao avaliar a escolaridade, observou-se que quanto menor o tempo de estudo, maior a associação com incapacidade funcional, tanto para atividades básicas como para atividades instrumentais, coincidindo com achados de estudos realizados no país.7,8 Essas associações podem estar relacionadas às condições socioeconômicas desses idosos, tendo em vista que no Brasil, a raça/cor da pele e a escolaridade estão diretamente relacionadas ao nível socioeconômico e, consequentemente, às condições de vida, habitação, trabalho, alimentação e lazer, e estilos de vida.7,8
Idosos viúvos tiveram maior prevalência de incapacidade funcional para as atividades básicas, concordando com os resultados de uma pesquisa de base populacional realizada na macrorregião Sudeste do Brasil, sobre o impacto negativo da perda do companheiro no cotidiano do idoso.21 Seus autores destacam, ademais, as evidências de diminuição dos vínculos afetivos e da rede de apoio, e os decorrentes danos à saúde do indivíduo, com consequências negativas para sua capacidade funcional.21
À semelhança do observado em outros trabalhos,21,9 morar só mostrou-se associado a menor prevalência de incapacidade funcional básica e instrumental. Essa condição revela maior independência e autonomia do idoso no desempenho de atividades diárias, provavelmente pela manutenção das condições físicas e cognitivas necessárias a essas demandas.22 Cabe salientar a possibilidade de esse resultado apresentar viés de causalidade reversa, podendo os idosos que moram sozinhos serem justamente aqueles com menor comprometimento das ABVD e AIVD.
No que se refere às características comportamentais, a probabilidade de idosos ex-fumantes apresentarem incapacidade funcional para atividades instrumentais foi 22% maior do que entre aqueles que nunca fumaram. Uma hipótese para tal associação é de que, normalmente, o abandono do vício de fumar é motivado pela piora na condição de saúde, e esta pode levar ao declínio funcional.23 Idosos que consumiram bebida alcoólica apresentaram mais incapacidade nas funções básicas e instrumentais. O álcool, uma droga depressora do sistema nervoso central, afeta diferentes funções cerebrais como a cognição, coordenação psicomotora, capacidade visuoespacial e habilidades perceptomotoras, podendo alterar o estado de saúde e reduzir a capacidade funcional.24
Estudos relatam que a pior autoavaliação de saúde está associada ao maior risco de morbidade e mortalidade, sendo a melhor condição de saúde um preditor do envelhecimento saudável.3,7,21 Autoavaliações pessimistas da saúde, geralmente, decorrem da presença de morbidade e limitações na realização de atividades cotidianas; no presente estudo, entretanto, não se observou sua associação com o aumento da incapacidade funcional. Ademais, estar satisfeito com a vida esteve associado a menor ocorrência de incapacidade nas atividades básicas.
Entre as doenças investigadas, os achados mostraram que ter diabetes mellitus aumenta em 33% o risco de incapacidade para as atividades instrumentais. A presença de acidente vascular encefálico e/ou deficit cognitivo também apresentou associação significativa com a incapacidade funcional, em ambos domínios.
A diabetes pode desencadear diversas complicações como, por exemplo, alterações vasculares, perda de visão, insuficiência renal e acidente vascular encefálico, levando ao declínio cognitivo, amputações, deficiência física, quedas e fraturas, ameaçando a perda da independência do indivíduo.25 Por sua vez, o acidente vascular encefálico é uma das doenças mais limitantes: em curto período de tempo, suas sequelas podem reduzir drasticamente a independência dos idosos.3 O deficit cognitivo implica perturbação na orientação espaço-temporal, dificuldade de atenção e de memória, tornando a atividade social e intelectual do idoso limitada e restringindo sua funcionalidade.26
A hipertensão, assim como a diabetes e o acidente vascular encefálico, é uma doença comprometedora do sistema vascular e apresenta altas taxas de mortalidade.27 Embora a hipertensão arterial sistêmica seja bastante prevalente (55,3%) entre os idosos pesquisados, não se encontrou associação da doença com a incapacidade funcional para nenhum dos domínios investigados. À semelhança do que ocorre no Brasil, investimentos em políticas públicas voltadas ao manejo de pacientes hipertensos, garantindo condições para o diagnóstico precoce, facilidades no acesso ao tratamento medicamentoso e incentivo a hábitos de vida mais saudáveis, reduzem as consequências negativas da doença para a saúde e retardam a perda de funcionalidade.27
Conforme achados prévios,28 os resultados desta pesquisa indicam que idosos hospitalizados pelo menos uma vez no último ano apresentaram uma probabilidade cerca de 70% maior de incapacidade para atividades básicas, e 30% maior para atividades instrumentais. Da mesma forma, receber atendimento domiciliar nos últimos três meses mostrou-se fortemente associado com a incapacidade funcional nos dois domínios investigados. A literatura indica que a internação hospitalar gera perdas nas capacidades vitais, e que a utilização de atendimento domiciliar está associada com a dificuldade de locomoção até o serviço de saúde.28
Cabe destacar que a utilização de serviços de saúde é um importante marcador de piores condições de saúde do indivíduo. Nesse contexto, pesquisa revela que no Brasil, a prevalência de internações públicas anuais aumenta conforme a idade dos idosos, sendo de 8,3% na faixa etária de 60 a 69 anos, 10% de 70 a 79 e 11,9% de 80 anos ou mais.O achado sugere que o avanço na idade se faz acompanhar de um declínio na saúde e na capacidade funcional dos idosos, provocando aumento da demanda por serviços de saúde.29
Os resultados deste estudo permitiram conhecer a proporção de idosos com comprometimento da capacidade funcional para as atividades básicas e instrumentais, e seus fatores associados. Entre as variáveis investigadas, ressalta-se a importância do investimento em ações de promoção da saúde voltadas às características comportamentais, de situação de saúde e de utilização de serviços. Estas são passíveis de mudanças e afetam diretamente a capacidade funcional dos idosos. Os dados apresentados também servem de subsídio para iniciativas de investigação sobre a capacidade funcional, no cotidiano da prática clínica dos profissionais da saúde, e possibilitam estimar a demanda de apoio necessário, e sua resposta na oferta de cuidados domiciliares. Estes poderão contemplar intervenções direcionadas e pontuais, mediante ações que proporcionem um envelhecimento saudável, independência, autonomia, qualidade de vida e redução da mortalidade entre idosos. Outrossim, essas intervenções estarão refletidas na redução dos custos dos serviços de saúde.
Por fim, é importante destacar a necessidade da realização de estudos de incidência, visando melhor compreender o processo de incapacidade funcional nos idosos, o que permitirá a elaboração de estratégias para redução de danos ainda mais efetivas.