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Revista Paraense de Medicina

versão impressa ISSN 0101-5907

Rev. Para. Med. v.21 n.2 Belém jun. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Doença de chagas aguda grave autócne da Amazônia brasileira1

 

Serious acute chagas disease authoctonous from brazilian Amazon

 

 

Ana Yecê das Neves PintoI; Janice Rodrigues FariasII; Aiannia Silva MarçalII; Aline Libonati GalúcioII; Raquel Ribeiro CostiII; Vera da Costa ValenteI; Sebastião Aldo da Silva ValenteI

IPesquisadores - Laboratório de Doença de Chagas - Seção de Parasitologia do Instituto Evandro Chagas/ Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS)
IIUniversidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Analisar o quadro clínico-laboratorial de casos de Doença de Chagas aguda autóctone da Amazônia brasileira avaliados sob regime hospitalar, enfatizando a síndrome febril e sinais potenciais de comprometimento cardíaco futuro.
MÉTODO: Estudo transversal de casos de Doença de Chagas aguda, internados no Hospital Universitário João de Barros Barreto, de janeiro de 1990 a outubro de 2003.
RESULTADOS: Em 20 casos estudados encontramos febre em 95% deles, sendo metade do tipo recorrente, dispnéia (75%), astenia (65%), edema de membros inferiores (65%) e cefaléia (60%). As principais alterações eletrocardiográficas foram: taquicardia sinusal, alterações difusas da repolarização ventricular e complexo QRS de baixa voltagem. Observou-se derrame pericárdico em 35% dos ecocardiogramas realizados.
CONCLUSÕES: A elevada freqüência da síndrome febril na doença de Chagas aguda expressa a importância do correto diagnóstico diferencial com as demais endemias febris da Amazônia. As alterações eletrocardiográficas e ecocardiográficas encontradas podem sugerir forma clínica de transição para cronicidade, além de indicar gravidade.

Descritores: Doença de Chagas, aguda, miocardite chagásica.


SUMMARY

OBJECTIVE: To analyze clinical and laboratorial findings of authoctononus acute Chagas disease from Brazilian Amazon, evaluated under hospital regimen, emphasizing feverish syndrome observations and potential signs of future cardiac commitment.
METHOD: Transversal study of acute Chagas disease in patients from University Hospital João de Barros Barreto, within jan 1990 to at 2003.
RESULTS: In a total of 20 studied cases we found predominant symptoms: fever (95%), dyspnea (75%), asthenia (65%), edema of lower members (65%) and headache (60%). Main abnormalities found in electrocardiograms were: sinusal tachycardia, diffuse ventricular repolarization abnormalities and low voltage of QRS. We demonstrated 35% with pericardial effusion show in echocardiograms.
CONCLUSIONS: Raised frequency of feverish syndrome in acute Chagas disease shows the importance of the correct distinguishing diagnosis with others febrile endemic diseases occurred in Amazon. The electrocardiographics and echocardiographics abnormalities found could suggest clinical form of transition for chronicity, besides expressing gravity.

Key-words: Acute Chagas disease, Amazon, acute myocarditis.


 

 

INTRODUÇÃO

Descrita por Carlos Chagas em 1909, a tripanossomíase americana ou doença de Chagas (DC) passou a constituir problema como doença humana na Amazônia, a partir de 1969 e com maior ênfase, a partir de 1996 1, 2, 3. Nessa região a doença possui perfil clínico-epidemiológico peculiar: baixa endemicidade, ciclo enzoótico predominante, raros registros de triatomíneos domiciliados, relatos de pequenos surtos familiares de provável transmissão oral, sinais de porta de entrada raríssimos e apresentação clínica de um síndrome febril prolongado, além de infecções assintomáticas relacionadas a contatos eventuais entre triatomíneos e humanos 2, 4, 5, 6.

A DC aguda se apresenta, conforme descrição de área endêmica, como doença de sinais e sintomas pouco evidentes, podendo, entretanto, evoluir gravemente 3, 7, 8. Pode ainda se apresentar como síndrome febril inespecífico. A febre geralmente não ultrapassa 39oC e tem elevações vespertinas, sofrendo defervescência em lise. É patente em muitos casos a dissociação esfigmo-térmica: pulso entre 100-150 bpm e temperatura axilar não compatível (37oC). A presença de febre de intensidade variável, adenomegalia, hepatoesplenomegalia, inflamação do miocárdio, da meninge e/ou do cérebro, caracteriza um quadro grave de DC, que pode evoluir para o óbito1, 7.

O comprometimento cardíaco em fase aguda é, em geral, pouco expressivo, exceto em crianças, por vezes transitório e inclui taquicardia, bulhas cardíacas normo ou hipofonéticas e sopro sistólico funcional.

Para o diagnóstico da fase aguda são utilizados métodos diretos e indiretos de demonstração do parasito. O exame microscópico direto do sangue fresco anticoagulado ou do creme leucocitário é o exame indicado nesta fase. As provas sorológicas (métodos indiretos) utilizam diversas técnicas para detecção de anticorpos. Deve-se atentar para a possibilidade de reações cruzadas produzindo resultados falso-positivos, principalmente, em locais de maior prevalência de leishmanioses, sífilis, toxoplasmose, mononucleose, paracoccidiodomicose e/ou outras doenças nas quais sejam produzidos auto-anticorpos 9,. 10, 12.

A região amazônica brasileira, até então considerada não endêmica, vem apresentando índices preocupantes de ocorrência média de 20 a 30 casos agudos anuais, com taxas de letalidade variando de 4 e 5% 6, 10, 13. Os estudos observacionais de seguimento clínico são importantes e objetivam alertar a comunidade médica para o diagnóstico de suspeição mais precocemente. Além disso, conhecendo os indicativos de doença severa, o infectologista ou clínico poderá manejar de forma adequada as complicações tardias ou os casos com potencial evolução para fase crônica.

 

OBJETIVO

Análise clínico-laboratorial de pacientes internados em hospital de referência, com doença de Chagas aguda e autóctone da Amazônia brasileira.

 

MÉTODO

Estudo transversal de 20 casos de DC aguda autóctones da Amazônia brasileira, internados no Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), período de janeiro de 1990 a outubro de 2003. Para inclusão, dois critérios foram utilizados: (1) um exame parasitológico positivo para pesquisa de T.cruzi ou (2) um exame sorológico positivo para T. cruzi associado a, pelo menos, um dos seguintes sinais ou sintomas: febre prolongada, edema de membros inferiores ou face e/ou miocardite.

A pesquisa de prontuários foi realizada através do preenchimento de um formulário específico e analisadas as seguintes variáveis: idade, procedência, se pertencente a surto ou não, principais sinais e sintomas registrados e alterações eletrocardiográficas e ecocardiográficas. Para análise dos dados, utilizou-se o programa Epi- Info, versão 6.04b. Trabalho aprovado pelo Comitê de Ética do IEC/SVC sob protocolo no 0004/2004.

 

RESULTADOS

Os pacientes eram procedentes dos municípios Abaetetuba, Acará, Ananindeua, Cametá, Oeiras do Pará (Pará) e Macapá (AP). A metade era do sexo feminino, com idades variando entre 13 e 85 anos. Tiveram diagnósticos firmados por exames parasitológicos e sorológicos (Tabelas I e II).

 

 

 

 

Não houve referência a sinais de porta de entrada. Entre os sinais e sintomas mais freqüentes, a febre foi mais evidente, tendo se apresentado em 95% dos casos e duração prolongada (Tabelas III e IV). Em 50% dos casos a febre foi relatada como sendo recorrente. Em 35% dos casos foi intermitente, em 5% foi contínua e em outros 5%, não foi identificado o padrão febril.

 

 

 

 

O comprometimento cardíaco foi evidente em 95% dos avaliados, sendo a hipofonese de bulhas cardíacas relacionada a derrame pericárdico, o principal achado de exame físico cardiológico (Tabela V).

 

 

Entre pacientes submetidos a exames eletrocardiográficos e/ou ecocardiográficos 53,3% (8/15) demonstraram sinais de comprometimento cardíaco difuso do tipo miopericardite expressado pela presença de derrame pericárdico (Quadro I).

 

 

Todos os pacientes foram submetidos ao tratamento com benzonidazol, entretanto, na vigência do início do tratamento, 3 pacientes (15%) evoluíram para o óbito como conseqüência direta de comprometimento cardíaco grave.

 

DISCUSSÃO

Dados do Instituto Evandro Chagas, do período entre 1968 a 2000, registram 205 casos de doença de Chagas na Amazônia Brasileira, sendo 178 (86,8%) em fase aguda, entre os quais nove óbitos 13, 14. Dentre estes, os casos graves eram, em sua maioria, referenciados ao HUJBB.

Entre indivíduos avaliados, 80% estavam relacionados a surtos familiares de ocorrência esporádica, refletindo o perfil epidemiológico amazônico da doença, no qual há casos agudos envolvendo familiares e/ou pessoas regionalmente próximas prevalentemente 6.

Desses pacientes, 95% manifestaram febre na história da doença em concordância com relatos anteriores na Amazônia. Observou-se em geral febre de duração média de 22 dias, com duração máxima de 58 dias em um doente. A curva febril do tipo recorrente foi a mais freqüente, predominando no período vespertino-noturno. Apesar de o estudo não ter registrado nenhum caso de febre remitente, é possível observá-la em pacientes chagásicos agudos, conforme relatos de área endêmica. Com exceção da adenomegalia que ocorreu raramente e a dor abdominal presente em pouco mais da metade dos pacientes, os outros sinais ou sintomas são frequentemente descritos em área endêmica 15. O edema de membros inferiores, a dispnéia e a hepatomegalia foram importantes em relação à freqüência.

O acometimento cardíaco foi semelhante aos relatos anteriores ocorridos em surto familiar no município de Abaetetuba-PA, no qual o comprometimento cardíaco ocorreu com freqüência, mas, só foi evidente devido à investigação eletrocardiográfica e ecocardiográfica, já que as queixas clínicas não eram importantes 6.

O comprometimento cardíaco na doença de Chagas se expressa por miocardite aguda, com dispnéia aos pequenos e médios esforços, taquicardia, edema de membros inferiores e hepatomegalia 1, 6 À ausculta cardíaca foram identificadas taquicardia, bulhas cardíacas hipofonéticas e sopro sistólico. Houve predomínio de hipofonese de bulhas (40%), taquicardia (40%) e arritmia (30%), notando-se, portanto, maior gravidade de sinais relacionados ao comprometimento miocárdico e pericárdico. No estudo de Abaetetuba estes sinais não foram tão importantes, justificadamente pelo fato daqueles serem pacientes avaliados em nível ambulatorial 6.

A relação entre a radiografia simples de tórax e o ecocardiograma demonstrou associação entre aumento de área cardíaca e derrame em três dos oito pacientes que apresentavam derrame pericárdico (37,5%). Portanto, apenas derrames pericárdicos de moderado volume foram demonstrados na radiologia do tórax. Isso sugere que este exame não expressa o comprometimento cardíaco em doentes em fase aguda. Portanto, o ecocardiograma se mostra como essencial na avaliação de casos agudos, especialmente se consideradas a eficácia da avaliação clínica relacionada à miopericardite aguda e a avaliação dos riscos potenciais do comprometimento cardíaco futuro em doentes seguidos em estudos longitudinais 12. O valor da radiologia torácica está relacionado essencialmente ao custo e a facilidade com que populações carentes podem ser submetidas ao exame.

O eletrocardiograma demonstrou alterações como ADRV e complexo QRS de baixa voltagem, os quais traduzem miocardite difusa como soe acontecer em descrições de área endêmica e também em descrições anteriores na Amazônia 6.

Houve elevado índice de letalidade na casuística (15%), justificado pelo viés da observação feita em nível hospitalar. A média de idade entre os casos fatais foi de 62 anos, diferentemente do que é observado na literatura do passado, onde o óbito foi registrado principalmente em crianças, sobretudo antes dos três anos de idade, variando de 2% a 10% 1, 3, 15. A Amazônia já registrou anteriormente letalidade maior em idosos em um surto familiar descrito em 2003 no município de Igarapé Miri, no qual entre 12 acometidos pela doença dois (16%) faleceram por complicações digestivas, ambos com mais de 70 anos de idade 16. Deve-se notar, entretanto, a casuística atualmente analisada ser formada apenas por adultos e o fato de crianças e idosos serem incomparáveis em vários aspectos.

Por ora, não foi possível estabelecer correlação de gravidade entre o comprometimento cardíaco agudo e a evolução dos pacientes. São poucas as descrições de área endêmica sobre óbitos em doença aguda, entretanto, a miocardiopatia associada à falência cardíaca e a meningoencefalite constituem as principais causas de óbito relatadas 3, 11.

As arritmias podem produzir poucos sintomas. Quando há manifestações, estas são variáveis, desde palpitações até lipotímias, as quais podem ser a expressão de arritmias graves com potencial evolução para a morte súbita. Na casuística estudada, os óbitos incluíram um caso de morte súbita após 10 semanas de doença e distúrbio arrítmico severo. O segundo óbito decorreu de cardiopatia chagásica, insuficiência renal aguda e sepse. No terceiro caso fatal, o exame físico demonstrou hipofonese de bulhas, arritmias, taquicardia e cianose de extremidades, evidenciando clinicamente o comprometimento cardíaco. Neste paciente, o registro de óbito descreve como causa principal da morte o acidente vascular encefálico. Teoricamente, sugere-se a ocorrência de fenômeno tromboembólico conseqüente à arritmia severa determinada pela miocardite aguda somada à predisposição a doença aterosclerótica neste paciente idoso.

Sintomas gastrintestinais estavam presentes em percentuais menores, porém com freqüência semelhante aos casos ocorridos em Igarapé-Miri no Pará, onde dois pacientes manifestaram icterícia pela primeira vez relacionada a casos agudos de doença de Chagas e dois outros evoluíram com comprometimento gastrointestinal, prevalecendo sobre o comprometimento cardíaco, levando a dois óbitos 16.

 

CONCLUSÕES

Síndrome febril prolongado acompanhado de comprometimento cardíaco agudo foram as evidências clínicas marcantes na casuística estudada. A alta freqüência do síndrome febril na DC aguda reforça a importância do correto diagnóstico diferencial com outras endemias prevalentes da região que tenham manifestação febril. Os demais sintomas encontrados foram consoantes com os descritos na literatura para a fase aguda. Exceção deve ser feita à adenomegalia, frequentemente descrita em área endêmica e rara na casuística amazônica no relato atual e em relatos anteriores.

O comprometimento cardíaco foi demonstrado em 95% dos pacientes. As anormalidades eletrocardiográficas importantes foram alterações difusas de repolarização ventricular e taquicardia sinusal. Os distúrbios de condução do tipo bloqueio de ramo direito, esquerdo e átrio-ventricular foram temporários com reversão rápida a normalidade. O comprometimento miopericárdico foi demonstrado em 53,3% daqueles submetidos ao ecocardiograma.

A letalidade foi elevada em idosos e relacionada ao comprometimento cardíaco.

Os autores sugerem que o eletrocardiograma e o ecocardiograma, independente das queixas cardíacas devem ser introduzidos em todos os protocolos de pesquisa clínica para doença de Chagas, em conformidade com as atuais perspectivas de estudos longitudinais em pessoas infectadas agudamente por Trypanosomas na Amazônia.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Ana Yecê das Neves Pinto
Instituto Evandro Chagas / Secretaria de Vigilância em Saúde
BR 316 Km 7 s/n - Levilândia
CEP 66090-000.
Ananindeua/PA
(91) 32142150 / 32142151/ 32142043
ayece@iec.pa.gov.br

Recebido em 03.01.2007
Aprovado em 07.03.2007

 

 

1Trabalho realizado no Hospital Universitário João de Barros Barreto e Instituto Evandro Chagas/ Secretaria de Vigilância em Saúde.