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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.12 n.2 Brasília jun. 2003

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742003000200002 

REPUBLICAÇÃO

 

Mudanças nos padrões de morbimortalidade da população brasileira: os desafios para um novo século*

 

Changes in the pattern of morbidity and mortality of the brazilian population: challenges for a new century

 

 

Eduardo Hage CarmoI; Maurício Lima BarretoII; Jarbas Barbosa da Silva Jr.I

ISecretaria de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde
IIIInstituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, são analisadas as tendências na morbidade e na mortalidade da população brasileira priorizando-se as intensas transformações ocorridas no século XX. Foram utilizados dados dos sistemas nacionais de informação sobre mortalidade e internações hospitalares, de notificação de doenças transmissíveis e de diversos programas de controle do Ministério da Saúde. Dentre as tendências observadas, destacam-se a redução da mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias e o aumento das causas crônico-degenerativas e agravos relacionados aos acidentes e violência. Essas modificações não significaram a superação das doenças transmissíveis enquanto problema relevante na população brasileira. A análise das tendências na morbidade por esse grupo de doenças, evidencia três padrões distintos e que podem ser bem caracterizados: doenças transmissíveis com tendência declinante, representadas pelas doenças para as quais se dispõe de instrumentos eficazes de prevenção e controle, como as imunopreveníveis; doenças transmissíveis com quadro de persistência, destacando-se as hepatites B e C, a tuberculose, as leishmanioses, a esquistossomose, a malária, entre outras; e doenças transmissíveis emergentes e reemergentes, com destaque para aids, dengue e hantavirose. Essas tendências apresentam-se em um contexto de extrema complexidade e desigualdade social, requerendo abordagens analíticas apropriadas para que possamos melhor entendê-lo – abordagens que levem à proposição e adoção de políticas de saúde que mantenham as conquistas alcançadas nos últimos anos, à ampliação na efetividade das ações de promoção, prevenção e recuperação, e que ajudem a superar as desigualdades na produção do atual padrão de morbidade e mortalidade. Dessa forma, estaremos prontos para enfrentar os novos desafios que se colocam na agenda da saúde pública do país.

Palavras-chave: padrões de morbi-mortalidade; transição epidemiológica; tendências históricas.


SUMMARY

In this paper, the morbidity and mortality trends of the Brazilian population are analyzed prioritizing the intense transformations that occurred during the 20th century. Data from the national information systems for mortality, hospitalization, notifiable infectious diseases surveillance and, from specific control programs of the Ministry of Health was used. A decrease in the mortality for infectious and parasitic diseases and, an increase of chronic-degenerative diseases, accidents and violence-related health events were among the most important observed trends. Despite these changes infectious disease continue to be a relevant health problem for the Brazilian population. The morbidity trends analysis for this group of diseases depicts three distinct patterns: transmissible diseases with a decreasing trend, represented by those with effective prevention and control tools, such as vaccination; transmissible diseases with a persistent pattern, such as hepatitis B and C, tuberculosis, leishmaniosis, schistosomiasis and malaria, among others; and, emerging and reemerging diseases, such as aids, dengue and hantavirus. These trends are present in the context of extreme complexity and social inequality. Appropriate analytical approaches for a better understaing need to be developed making possible the proposition and adoption of health politicies that aim to maintain the conquests of previous years, to extend the effectiveness of health actions towards promotion, prevention and care. It must include efforts to reduce social and health inequalities responsible for the production pattern of morbidity and mortality. In this way the health system will be prepared to confront the new challenges of the country's public health agenda.

Key Words: morbidity and mortality patterns; epidemiological transition; historical trends.


 

 

Introdução

No século XX, o Brasil experimentou intensas transformações na sua estrutura populacional e padrão de morbi-mortalidade. A partir da segunda metade do século, a constante queda da taxa de natalidade, mais acentuada que a verificada nas taxas de mortalidade, tem provocado uma diminuição nas taxas de crescimento populacional.1 Paralelamente, tem-se verificado um aumento da expectativa de vida ao nascer, que passa de 45,9 anos em 1950 para 68,5 anos em 2000, refletindo o processo de envelhecimento da população, com aumentos contínuos e significativos na proporção de indivíduos com idade superior a 60 anos.

Para entendermos as modificações na estrutura demográfica, faz-se necessária uma análise das recentes tendências no padrão de morbimortalidade. Uma das mais importantes tendências diz respeito à redução nas taxas de mortalidade infantil (TMI), intensificada a partir da década de 60, quando apresentava uma média nacional de 117,0/1.000 nascidos vivos, decrescendo para 50,2/1.000 nascidos vivos na década de 80 (Figura 1). Na análise das informações para a década de 90, verifica-se que houve uma redução nacional média de 40,1% (de 49,4/1.000 nascidos vivos em 1990, para 29,6/1.000 nascidos vivos em 2000), tendo essa redução ocorrido em diferentes intensidades, nas diversas macrorregiões (Figura 2). As tendências para os dois componentes da taxa de mortalidade infantil (neonatal e pós-neonatal) evidenciam que essa redução foi mais acentuada para a mortalidade infantil pós-neonatal. Esse componente associa-se, mais fortemente, com fatores relacionados ao ambiente, concentrando maior proporção de óbitos por doenças infecciosas, particularmente as infecções intestinais. Entretanto, a mortalidade neonatal relaciona-se, principalmente, com fatores ligados à assistência pré e pós-natal.

 

 

 

 

Tendências na mortalidade por grupos de causas

Outra importante característica nos padrões epidemiológicos do país, com evidentes reflexos na estrutura demográfica, diz respeito às modificações na composição da mortalidade por grupos de causas. Assim, as doenças infecciosas e parasitárias (DIP), que representavam 45,7% do total de óbitos ocorridos no país em 1930, representaram apenas 5,9% dos óbitos com causas definidas, no ano de 1999, comparação possível a partir da análise dos registros de óbitos para as capitais do país. Enquanto isto, as Doenças Cardiovasculares (DCV), seguindo uma tendência inversa, aumentaram sua participação de 11,8% para 31,3% do total dos óbitos ocorridos no mesmo período (Figura 3). Analisando a evolução recente das taxas padronizadas de mortalidade (/100.000 habitantes) para os principais grupos de causas definidas (Figura 4), observa-se que as DCV apresentavam uma taxa de 146,4 em 1999, seguidas pelas causas externas e pelas neoplasias, de 70,2 e 66,4, respectivamente. Ao analisarmos as tendências nas taxas de mortalidade, cabe ressaltar o fato de que, para o ano de 1991, observa-se uma redução importante em todos os grupos de causas, os quais, nos anos seguintes, retornam aos níveis esperados de acordo com a tendência observada para toda a série histórica. Essa distorção, provavelmente, deve-se a possíveis problemas operacionais no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/CENEPI/FUNASA/MS)para o ano em questão. Contudo, trata-se de uma explicação que ainda carece de confirmação.

 

 

 

 

Enquanto as DCV apresentam uma tendência de redução nas taxas padronizadas de mortalidade, as neoplasias e as causas externas, interrompem, a partir do final da década de 80, o seu movimento ascendente, tendendo à estabilidade. As doenças respiratórias, que, em décadas anteriores, não tinham uma participação expressiva na composição da mortalidade, apresentaram tendência à estabilidade na última década, figurando como a quarta causa de óbito na população total. A mortalidade pelas doenças infecciosas e parasitárias persiste na tendência descendente iniciada em décadas anteriores, tendo apresentado taxa de 28,0 óbitos por 100.000 habitantes, em 1999. Por fim, cabe ressaltar que, ao se analisarem os indicadores de mortalidade, verificam-se alguns problemas relacionados à sua qualidade, destacando-se a elevada proporção de óbitos por causas mal definidas que, como visto na Figura 4, colocou-se como segundo "grupo de causa" no conjunto da mortalidade.

 

Tendências na morbidade por grupos de causas

Existe maior disponibilidade de dados referentes à morbidade hospitalar, que refletem, em parte, a ocorrência das formas clínicas mais severas das doenças. Quanto aos dados de morbidade de base não hospitalar, existe uma maior disponibilidade para as Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP), em especial para as doenças de notificação obrigatória. Como veremos a seguir, as tendências nos indicadores de morbidade apresentam semelhanças – mas também importantes diferenças –, quando comparadas com as tendências observadas nos indicadores de mortalidade.

Utilizando-se a base de dados do Sistema de Informação Hospitalar (SIH) do SUS, analisaram-se as tendências da participação relativa das hospitalizações por grupos de doenças que tiveram destaque como causa de mortalidade, em relação ao total de hospitalizações no país. As doenças cardiovasculares, a primeira causa de mortalidade, representaram a segunda causa de internações. É interessante notar que as doenças cardiovasculares têm apresentado uma tendência lenta, porém constante, de redução da sua participação proporcional no total de internações (Figura 5), com um pequeno incremento nos últimos três anos. As neoplasias, com uma participação média anual de 3% do total das internações, apresentaram tendência estável no período.

 

 

Quanto à proporção de internações por doenças infecciosas em relação ao total de internações no país, não se observa uma tendência de redução na mesma intensidade que a verificada para a mortalidade. Nos últimos 15 anos, para o país como um todo, as doenças classificadas no capítulo das DIPs têm apresentado valores próximos a 10% do total de internações, sendo estes valores superiores nas Regiões Norte e Nordeste. Na composição das causas de internações por DIP, para o ano de 2001, destacam-se as doenças infecciosas intestinais, que representaram 59,6% do total de internações, no país; e 69,5%, na Região Nordeste.

Para as doenças respiratórias e as causas externas, também é observada tendência à estabilidade, com poucas oscilações em toda a série analisada. Enquanto as doenças respiratórias são responsáveis por aproximadamente 16% das internações – metade das quais são representadas pelas pneumonias –, as causas externas contribuem com uma participação próxima a 5,5% do total de internações. Vale ressaltar que, ao considerar todos os grupos de causas de internações, incluindo aqueles que não foram analisados na discussão sobre mortalidade, verificamos que os motivos relacionados à gravidez, parto e puerpério respondem pela maior proporção das internações (23,9% em 2001).

Alguns contrastes emergem na compatibilização das informações nas categorias de morbidade ou mortalidade, com relação à ordem de freqüência na participação dos diversos grupos de causas. Tal quadro justifica-se pelo fato de que a ocorrência do óbito é uma expressão bem definida da gravidade da doença, enquanto a hospitalização não segue, necessariamente, essa ordem de determinação. Como exemplo, tem-se a grande proporção de internações pelo grupo de causas relacionado à gravidez, parto e puerpério que, com raras exceções, não configuram, no seu conjunto, qualquer situação de gravidade. Mas, aqui, devemos chamar a atenção para a questão da mortalidade materna, a qual, apesar da aparente baixa magnitude, apresenta, no Brasil, taxas muito altas quando comparadas às de outros países, refletindo deficiências na assistência pré e pós-natal.2 Por outro lado, alguns agravos podem evoluir com quadros severos; contudo, na medida em que tenham baixa letalidade ou sejam potencialmente reversíveis mediante ações por parte dos serviços de assistência à saúde, apresentam baixa mortalidade. Esse fenômeno acontece, por exemplo, com referência às doenças respiratórias, explicando as diferenças observadas, na ordem de freqüência, entre os indicadores de morbidade e de mortalidade.

 

Tendências das doenças infecciosas

Apesar da redução significativa da participação desse grupo de doenças no perfil da mortalidade do nosso país, ainda há um impacto importante sobre a morbidade, como visto nos indicadores de morbidade hospitalar, principalmente por aquelas doenças para as quais não se dispõe de mecanismos eficazes de prevenção e controle. Ainda assim, as alterações no quadro de morbimortalidade, com a perda de importância relativa das doenças transmissíveis, principalmente no último quarto do século XX, criaram, na opinião pública, uma falsa expectativa de que todo esse grupo de doenças estaria próximo à extinção. Esse quadro não é verdadeiro para o Brasil, nem mesmo para os países desenvolvidos, como demonstrado pelos movimentos de emergência de novas doenças transmissíveis, como a aids; de ressurgimento, em novas condições, de doenças "antigas", como a cólera ou a dengue; de persistência de endemias importantes como a tuberculose; e de ocorrência de surtos inusitados de doenças como a Febre do Oeste do Nilo nos Estados Unidos.

No tocante à sua ocorrência no período compreendido entre as duas últimas décadas, a situação das doenças transmissíveis no Brasil apresenta um quadro complexo, que pode ser resumido em três grandes tendências: doenças transmissíveis com tendência declinante; doenças transmissíveis com quadro de persistência; e doenças transmissíveis emergentes e reemergentes.3

Doenças transmissíveis com tendência declinante

Em um grande número de doenças transmissíveis, para as quais dispõe-se de instrumentos eficazes de prevenção e controle, o Brasil tem colecionado êxitos importantes. Esse grupo de doenças encontra-se em franco declínio, com reduções drásticas nas taxas de incidência. A varíola foi erradicada em 1973 e a poliomielite em 1989. O sarampo encontra-se com a transmissão interrompida desde o final de 2000. O tétano neonatal apresenta taxa de incidência muito abaixo do patamar estabelecido para considerá-lo eliminado enquanto problema de Saúde Pública (1/1.000 nascidos vivos). A redução na incidência e concentração dos casos também permite prever uma próxima eliminação da raiva humana transmitida por animais domésticos.

Ainda dentro do grupo de doenças transmissíveis com tendência declinante, estão: a) a difteria, a coqueluche e o tétano acidental, que têm em comum o fato de serem imunopreveníveis; b) a doença de Chagas e a hanseníase, ambas endêmicas há várias décadas em nosso país; c) a febre tifóide, associada a condições sanitárias precárias; d) e a oncocercose, a filariose e a peste, todas com áreas de ocorrência restritas.

Exemplificando o impacto da redução produzida na incidência de doenças imunopreveníveis, principalmente para aquele grupo em que as medidas de controle implicaram um maior impacto (sarampo, pólio, tétano acidental e neonatal, coqueluche, difteria), em 1980, foram registrados 153.128 casos para o conjunto dessas doenças, número que se reduziu para apenas 3.124 casos, 20 anos depois. Ainda mais relevante foi o impacto sobre o número de óbitos por essas mesmas doenças, tendo-se observado a redução de 5.495 para 277 óbitos, no mesmo período. Análise similar poderia ser feita para as demais doenças desse grupo, que também apresentaram reduções na incidência, na mortalidade e na ocorrência de seqüelas, com impactos significativos na qualidade de vida.

Doenças transmissíveis com quadro de persistência

Algumas doenças transmissíveis apresentam quadro de persistência, ou de redução, em período ainda recente, configurando uma agenda inconclusa nessa área. Para essas doenças, é necessário o fortalecimento de novas estratégias, recentemente adotadas, que propõem uma maior integração entre as áreas de prevenção e controle e a rede assistencial, já que um importante foco da ação nesse conjunto de doenças está voltado para o diagnóstico e tratamento das pessoas doentes, visando à interrupção da cadeia de transmissão.

É importante, também, enfatizar a necessidade de ações multissetoriais para a prevenção e controle desse grupo de doenças, já que grande parte das razões para a manutenção da situação de endemicidade residem na persistência dos seus fatores determinantes, externos às ações típicas do setor Saúde: urbanização acelerada sem adequada infra-estrutura urbana, alterações do meio ambiente, desmatamento, ampliação de fronteiras agrícolas, processos migratórios, grandes obras de infra-estrutura (rodovias e hidroelétricas) etc.

Nesse grupo de doenças, destacam-se as hepatites virais – especialmente as hepatites B e C – e a tuberculose, em função das altas prevalências alcançadas, da ampla distribuição geográfica e do potencial evolutivo para formas graves que podem levar ao óbito. Devem-se destacar, no entanto, os resultados favoráveis que têm sido alcançados na redução da mortalidade pela tuberculose, com a disponibilidade de tratamento específico de alta eficácia. A implantação universal da vacinação contra a hepatite B, inclusive para adolescentes, no final dos anos 90, também deve produzir, a médio prazo, impactos positivos na prevenção das formas crônicas da doença.

Ainda que apresente uma distribuição geográfica mais restrita às áreas que oferecem condições ambientais adequadas para a transmissão, a leptospirose também assume relevância para a Saúde Pública, em função do grande número de casos que ocorrem nos meses mais chuvosos, bem como pela sua alta letalidade.

As meningites também se inserem nesse grupo de doenças, destacando-se as infecções causadas pelos meningococos B e C, que apresentam níveis importantes de transmissão e taxas médias de letalidade acima de 10%. Por outro lado, tem-se observado significativa redução na ocorrência da meningite causada por H. influenzae tipo B, possivelmente em conseqüência da vacinação de menores de um ano, a partir de 1999, com um produto de comprovada eficácia.

Ainda nesse grupo, além da manutenção de elevadas prevalências, tem sido observada expansão na área de ocorrência para as leishmanioses (visceral e tegumentar) e a esquistossomose, em geral associada às modificações ambientais provocadas pelo homem, aos deslocamentos populacionais originados de áreas endêmicas e à insuficiente infra-estrutura na rede de água e esgoto – ou na disponibilidade de outras formas de acesso a esses serviços.

A malária, que, até recentemente, apresentava níveis de incidência persistentemente elevados na Região Amazônica – onde se concentram mais de 99% dos casos registrados no país –, passou a apresentar, a partir de 1999, reduções acentuadas nessas taxas (acima de 40%, em média), estimando-se que, em 2002, sejam detectados menos de 300 mil casos, patamar que não era atingido desde o início dos anos 80. O Plano de Intensificação das Ações de Controle da Malária, lançado em julho de 2000, além de garantir a ampliação do acesso ao diagnóstico e tratamento – por intermédio da descentralização e da integração com as ações de atenção básica –, e um melhor equaciona-mento das ações seletivas de controle vetorial, possibilitou a implementação de importantes ações extra-setoriais, a partir de estabelecimento de normas específicas voltadas para a instalação de assentamentos rurais e de projetos de desenvolvimento.

A febre amarela, após a eliminação do ciclo urbano, em 1942, vem apresentando ciclos epidêmicos de transmissão silvestre, como ocorrido em 2000 (Goiás) e 2001 (Minas Gerais). Entretanto, apesar da ampliação da área de transmissão para Estados e Municípios situados fora da área endêmica (Região Amazônica), tem sido observada redução na incidência a partir do ano 2000 e até o presente momento. A possibilidade de reintrodução do vírus amarílico no ambiente urbano, pela ampla dispersão do Aedes aegypti, tem motivado uma intensa atividade de vacinação, que resultou em mais de 60 milhões de doses aplicadas entre 1998 e 2002. Na medida em que foram identificados eventos adversos graves associados a essa vacina,4 a estratégia inicial, de vacinação universal, teve que ser ajustada para uma cobertura mais focalizada, em toda a área de circulação natural do vírus amarílico e também na área de transição.

Doenças transmissíveis emergentes e reemergentes

Um terceiro grupo de doenças expressa, em nosso país, o fenômeno mundial de emergência e reemergência de doenças transmissíveis. Doenças emergentes são as que surgiram, ou foram identificadas, nas últimas duas décadas; ou, ainda, as que assumiram uma nova situação, passando de doenças raras e restritas para constituírem problemas de Saúde Pública. Reemergentes, por sua vez, são aquelas que ressurgiram, enquanto problema de Saúde Pública, após terem sido controladas no passado.

Desde o início da década de 80, algumas doenças infecciosas passaram a ser registradas ou foram reintroduzidas no país, destacando-se a aids (1980), o dengue (1982), a cólera (1991) e a hantavirose (1993), e, dentre estas, somente a cólera apresentou redução significativa na última década. A rápida disseminação da aids no país, por sua vez, tem-se refletido na ocorrência de uma série de outras doenças infecciosas, particularmente a tuberculose.

A partir da detecção da aids no Brasil, observou-se um crescimento acelerado da doença até 1997, ano em que foram registrados 23.545 casos novos, com um coeficiente de incidência de 14,8 casos/100.000 hab. A partir de então, seguiu-se uma diminuição na velocidade de crescimento da epidemia, com uma redução da incidência. No período de 1995 a 1999, observou-se redução de 50% na taxa de letalidade em relação aos primeiros anos do início da epidemia, quando esta taxa era de 100%. A disponibilidade de novas drogas tem propiciado o aumento na sobrevida para os portadores da infecção pelo HIV.

A cólera experimentou seu pico epidêmico em 1993, com 60.340 casos. Apesar do ambiente favorável para a disseminação e persistência dessa doença, dada a insatisfatória condição sanitária de parte da população, os esforços do sistema de saúde conseguiram reduzir drasticamente sua incidência. Em 1998 e 1999, a seca que ocorreu na Região Nordeste, onde se instalou uma severa crise de abastecimento de água, inclusive nas capitais, favoreceu a possibilidade de recrudescimento da doença, o que exigiu uma intensificação das ações de prevenção e de vigilância epidemiológica nessa região. A cólera passou a manifestar-se sob a forma de surtos, principalmente nas pequenas localidades do Nordeste, com maior dificuldade de acesso à água tratada e deficiência de esgotamento sanitário. Eventualmente, podem outras formas de transmissão ser associadas com surtos, como o ocorrido no porto de Paranaguá-PR, relacionado com o consumo de marisco.

No ano 2000, a cólera apresentou redução importante, tanto no número de casos como na área geográfica em que se manifestava. Foram registrados 734 casos, ocorridos na sua quase totalidade em apenas dois Estados da Região Nordeste (Pernambuco e Alagoas). Já no ano de 2001, ocorreram, em todo o país, apenas sete casos da doença, igualmente concentrados na Região Nordeste. Os dados dos últimos dois anos asseguram a situação de controle da cólera e, mantida essa tendência, a doença passará a integrar o grupo das enfermidades transmissíveis com tendência declinante ou mesmo, brevemente, eliminadas.

A dengue tem sido objeto de uma das maiores campanhas de Saúde Pública realizadas no país. O mosquito transmissor da doença, o Aedes aegypti, que havia sido erradicado em vários países do continente americano nas décadas de 50 e 60, retorna na década de 70, por falhas na vigilância epidemiológica e pelas mudanças sociais e ambientais propiciadas pela urbanização acelerada dessa época.

Atualmente, o mosquito transmissor é encontrado numa larga faixa do continente americano, que se estende desde o Uruguai até o sul dos Estados Unidos, com registro de surtos importantes de dengue em vários países como Venezuela, Cuba, Brasil, El Salvador e, recentemente, Paraguai.

As dificuldades para a eliminação de um mosquito domiciliado, que se multiplica nos vários recipientes que podem armazenar água, particularmente aqueles encontrados nos lixos das cidades, como em garrafas, latas e pneus, ou no interior dos domicílios, como nos pratinhos dos vasos de plantas, têm exigido um esforço substancial do setor Saúde. Entretanto, esse trabalho necessita ser articulado com outras políticas públicas, como a limpeza urbana, além de uma maior conscientização e mobilização social sobre a necessidade das comunidades manterem seu ambiente livre do mosquito. Esse último elemento, a mudança de hábitos, tem sido apontado, mais recentemente, como um dos mais efetivos na prevenção da infestação do mosquito.

Nos últimos três anos, vem sendo registrado um aumento no número de casos, alcançando cerca de 700 mil ocorrências em 2002. Entre outros fatores que pressionam a incidência da dengue, destaca-se a introdução recente de um novo sorotipo, o DEN 3, para o qual a susceptibilidade é praticamente universal. A circulação seqüencial de mais de um sorotipo propiciou um aumento na incidência de febre hemorrágica da dengue, com conseqüente incremento na mortalidade por essa doença.

Os primeiros casos de hantaviroses, no Brasil foram detectados em 1993, em São Paulo, e a doença tem sido registrada com maior frequência nas Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A implantação da sua vigilância epidemiológica, o desenvolvimento da capacidade laboratorial para realizar diagnóstico, a divulgação das medidas adequadas de tratamento para reduzir a letalidade e o conhecimento da situação de circulação dos hantavírus nos roedores silvestres brasileiros possibilitaram o aumento na capacidade da sua detecção, gerando um quadro mais nítido da realidade epidemiológica das hantaviroses em nosso país, assim como permitiram a adoção de medidas adequadas de prevenção e controle.

 

O desafio da desigualdade

Os indicadores de morbimortalidade da população brasileira apresentados acima permitem uma comparação com outros países de níveis socioeconômicos semelhantes. Tem sido fartamente documentada a situação paradoxal do Brasil, que apresenta indicadores econômicos em níveis incompatíveis aos dos seus indicadores sociais, incluindo-se os de saúde, como, por exemplo, taxa de mortalidade infantil e expectativa de vida ao nascer.5,6 Ainda que se observe tendência de melhoria para alguns indicadores de saúde no país, a reduzida velocidade dessas tendências propicia a persistência – ou mesmo ampliação – das desigualdades.7

A insuficiente melhoria em alguns indicadores globais de saúde no Brasil pode ser melhor visualizada na comparação com alguns países da América Latina. Assim, segundo as estimativas do Banco Mundial, para 2000 (www.worldbank.og), o México apresentou uma expectativa de vida ao nascer 4,5 anos superior à do Brasil, a Argentina 5,4 anos, o Uruguai 5,9 anos e o Chile 7,1 anos. No período de 1970 a 2000, houve redução das Taxas de Mortalidade Infantil (TMI) para todos esses países, bem como na grande maioria dos países do globo. Entretanto, enquanto essa taxa, para o Brasil, era de 29,6 óbitos por 1.000 nascidos vivos em 2000, Argentina (17,4), Uruguai (13,8) e Chile (10,1) apresentavam taxas inferiores. Somente o México, entre os países analisados nessa comparação, apresentou taxa semelhante (29,2). Estudos também mostram que a expectativa de vida no Brasil é menor do que em países com rendas per capita menores ou similares ao nosso país. China e Sri Lanka, por exemplo, com renda per capita em torno de 1/5 da renda per capita brasileira, apresentam expectativas de vida ao nascer significativamente maiores.

No contexto nacional, a existência de desigualdades inter-regionais pode ser melhor apreendida pelas diferenças entre os indicadores de mortalidade. Enquanto nas Regiões Sul e Sudeste, em 1980, as DIPs já representavam a quinta causa de óbito, esse grupo representava, na Região Nordeste a segunda causa de óbito naquele ano e, somente em anos recentes, assume a mesma posição já verificada para as demais regiões (excluindo-se os sinais e sintomas mal definidos). As doenças cardiovasculares, por sua vez, representavam a primeira causa de óbito para todas as regiões, já em 1980. Entretanto, em 1999, esse grupo de causas era responsável por taxa de mortalidade padronizada na Região Sudeste, 83,2% e 77,0% superior às taxas registradas nas Regiões Nordeste e Norte, respectivamente.

As desigualdades entre as regiões também podem ser visualizadas nos indicadores relacionados à composição da morbidade. Assim, considerando-se a composição de grupos de causas da morbidade hospitalar, entre os mesmos grupos analisados para a mortalidade, verifica-se que as doenças cardiovasculares representaram a segunda causa de internações nas Regiões Sul e Sudeste em 2001, em seguida às doenças respiratórias. Nessas duas regiões, naquele mesmo ano, as DIPs representaram a terceira e quarta causas de internações, respectivamente. Na Região Nordeste, as DIPs ainda representaram a segunda causa de internações em 2001, enquanto as doenças cardiovasculares representaram a terceira causa.

A análise histórica dos indicadores globais de saúde também evidencia o quadro de desigualdades entre as regiões do país. Na década de 30, a Região Sudeste apresentava TMI de 153, a Região Sul de 127 e a Região Nordeste de 168. Portanto, a Região Nordeste apresentava taxas 10% superiores à Região Sudeste e 32% superiores à Região Sul. Para o ano de 99, o Nordeste apresentava TMI 154% maior do que a registrada na Região Sudeste e 205% maior do que a taxa da Região Sul. Apesar de uma melhoria absoluta ter sido observada em todas as regiões, o agravamento das diferenças relativas mostra que as soluções em busca do cumprimento das potencialidades biológicas está-se dando com diferentes intensidades, provocando uma ampliação das desigualdades.8 Deve-se destacar que, na última década, ocorreu uma maior redução relativa na taxa de mortalidade infantil para a Região Nordeste, que apresentava o valor mais elevado. Quanto à expectativa de vida ao nascer, verificou-se tendência de maiores ganhos, entre 1991 e 1999, nos Estados que apresentavam os menores valores no início do período.9

Outros indicadores de morbidade, de base não hospitalar, também revelam as desigualdades interregionais. Assim, as maiores taxas de incidência ou prevalência para cólera (até o ano de 2001, quando foram registrados os últimos casos), esquistossomose, doença de Chagas e leishmanioses têm sido registradas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Há, em todo o mundo, evidências de que a estratificação da população de acordo com seus níveis socioeconômicos define, também, estratos diferenciados nos níveis de saúde. Países desenvolvidos ou em desenvolvimento, com diferentes patamares nos níveis de saúde das suas populações e com diferentes padrões epidemiológicos, assemelham-se no tocante à existência desses gradientes. A freqüência de qualquer doença, com raras exceções, aumenta com a redução do nível social e econômico dos grupos sociais. É consistente o fato de que, entre países com níveis econômicos similares, aqueles com maiores níveis de desigualdade social apresentam níveis mais baixos de saúde. Por exemplo, entre o grupo de países desenvolvidos, os Estados Unidos, apesar de ser o mais rico desse restrito grupo, é o que apresenta maiores desigualdades sociais, gerando diferenciais nos indicadores de saúde entre distintos grupos populacionais.10 Organismos internacionais (Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde) vêm reconhecendo que, sem reduções significativas nas iniqüidades sociais, será impossível alcançar melhoras mais substanciais no quadro global de saúde da população, pois observa-se que melhorias modestas no padrão das desigualdades têm fortes efeitos nos níveis de saúde. No Brasil, essa questão assume grande importância e ganha nuances especiais. Por exemplo, em 1999, 50% dos óbitos infantis concentraram-se nos 30% dos nascidos vivos que residem nos estados com as maiores taxas de pobreza,9 bem como a TMI estimada em 1996 para os 20% dos brasileiros mais pobres foi três vezes maior que a estimada para os 20% de maior poder aquisitivo (www.worldbank.org). A concentração da riqueza e dos bens gera imensas distâncias também entre as suas regiões ou entre seus espaços intra-urbanos. No interior das cidades brasileiras, são igualmente observados diferenciais nas taxas de mortalidade infantil, bem como na mortalidade pela maioria das doenças, entre as zonas mais pobres relacionadas com as zonas mais ricas das cidades. Iniqüidades quanto aos gêneros e aos grupos étnicos agravam tal situação.

 

O desafio da complexidade

Vimos que entre as principais causas de óbito e internamentos em nossa população estão as doenças crônico-degenerativas, os acidentes e as diversas formas de violência. Entretanto, já se observam tendências recentes de redução da mortalidade por algumas causas específicas de doenças cardiovasculares, suficiente para redução das taxas nesse grupo de causa. No grupo das doenças infecciosas, além da redução na mortalidade, observa-se também diminuição significativa na morbidade por um conjunto importante de doenças.

Em outra direção, temos visto que o reaparecimento, nas duas décadas passadas, de problemas como a cólera e a dengue, além de expor as frágeis estruturas ambientais urbanas em nosso país, as quais tornam as populações vulneráveis a doenças que pareciam superadas, amplia a já alta carga de doenças da população. Esses fatores agregam-se ao surgimento de novas doenças ou de novas formas de manifestação das doenças na população – aumento na severidade por surgimento de novas cepas patogênicas, ampliação da resistência aos antimicrobianos –, bem como à persistência de problemas como a desnutrição e doenças endêmicas como a tuberculose. Essa situação implica a manutenção de estruturas de cuidado dispendiosas que competem por recursos escassos, os quais poderiam, em caso da não-existência desses problemas, vir a ser utilizados na solução de problemas de saúde de maior magnitude, para os quais existem menores possibilidades de prevenção a curto prazo, como as doenças crônicas não transmissíveis.

Um quadro bem paradigmático dessa superposição de padrões ocorre com relação aos problemas nutricionais – reduções na prevalência da desnutrição proteico-calórica estão sendo acompanhadas pelo crescimento da obesidade e da anemia.11 Também deve-se destacar que, em geral, o tratamento das 'doenças da modernidade' requer mais recursos tecnológicos e, como conseqüência, implica maiores custos para o sistema de saúde. A violência, por exemplo, ao lado das mortes e incapacidades que causa à nossa população produtiva, impõe pesadas sobrecargas aos sistemas de saúde e previdenciário.12

A falta de solução para alguns problemas estruturais e básicos, a manutenção de condições e modo de vida inadequados, a insuficiência nos mecanismos que regulam os danos ao meio ambiente, ocasionam que os riscos aos quais está exposta a nossa população se superponham, ao invés de se sucederem. Assim, se de um lado temos a manutenção dos problemas urbanos caracterizados por marcantes deficiências em áreas como saneamento ambiental, habitação e transporte, temos também o surgimento da poluição ambiental de origem química (industrial, inseticidas etc.), os riscos ocupacionais, o aumento dos fatores estressores gerados pela ‘modernização’ das relações sociais, as mudanças comportamentais, o desemprego estrutural e crescente e a ampliação das desigualdades intraurbanas. Ademais, o fato de o envelhecimento da população ocorrer em condições que associam múltiplos riscos, amplifica as chances de ocorrência de várias doenças, aumentando a carga mórbida e reduzindo a qualidade de vida de um grupo populacional.

Existem, cada vez mais, relatos sobre fatores que se dão no plano internacional e seus efeitos deletérios sobre a Saúde. A chamada globalização está relacionada com questões tão aparentemente diversas como o aumento das desigualdades entre as nações, a intensificação do comércio internacional – especialmente de produtos alimentícios –, o narcotráfico e o contrabando de armas e cigarros, ou o aumento da temperatura global ocasionado pela crescente poluição atmosférica, exemplos de ‘novos riscos globais’ com efeito na deterioração das condições de saúde. Essa superposição de fatores ambientais e sociais ‘velhos’ e ‘novos’ é que torna possível algumas doenças infecciosas tradicionais serem mantidas e propicia a emergência ou a reemergência de outras tantas, em paralelo ao aumento das doenças crônicas e das violências. Tomemos o exemplo do desemprego: além da privação a que sujeita os indivíduos e suas famílias, gerando efeitos no estado nutricional de adultos e crianças e aumento do risco de exposição a doenças infecciosas, provoca aumento na ocorrência das doenças psiquiátricas e cardiovasculares.

Tendo em vista a impossibilidade de uma atuação, a curto prazo, em alguns riscos gerados pelos processos globais, faz-se urgente a superação de algumas categorias de risco tradicionalmente vinculadas à ocorrência de doenças, cuja superação pode ser alcançada em função de decisões políticas mais limitadas. Por exemplo, a completa resolução das desigualdades no acesso aos serviços de saúde e do déficit no suprimento de água e no esgotamento sanitário em muitos centros urbanos. Já é amplamente conhecido o efeito positivo da melhoria das condições de saneamento, não somente na diminuição de uma série de doenças infecciosas responsáveis por importantes demandas no sistema de saúde, como também na proteção diante do ressurgimento de outros problemas. Não por acaso, em locais com alto padrão de saneamento, não houve o ressurgimento da cólera na década de 90.

 

Os desafios para as políticas de saúde

A superposição de problemas de saúde implica a manutenção de uma carga de magnitude semelhante, de morbidade e mortalidade na população, ao longo dos anos. A redução dessa carga, dentro dos limites biológicos estabelecidos, representa um desafio para a definição de políticas de saúde.

Os benefícios alcançados para a população, em conseqüência de redução da mortalidade para as doenças infecciosas, da morbidade por algumas patologias desse grupo de causa, como também da mortalidade para as doenças cardiovasculares, não somente devem ser mantidos como necessitam ser ampliados para outras causas de adoecimento e morte da população. Esses resultados positivos indicam que existe tecnologia suficiente para melhoria dos padrões de morbidade e mortalidade, cujos efeitos são muito mais intensos e duradouros em contextos socioeconômico e ambiental favoráveis.13 A constatação supera a proposição inicial no contexto da aplicação do termo “transição epidemiológica”, para explicação das grandes mudanças nos padrões epidemiológicos dos países desenvolvidos e dos demais países da America Latina.14,15

Por outro lado, mais do que representar uma utopia, não se deve reforçar a ilusão, disseminada subliminarmente, de que é possível viver em um mundo sem doenças – incluindo as transmissíveis –, o que implicaria, em última análise, um mundo com seres humanos imortais. Ao menos com o conhecimento atual que se dispõe sobre as potencialidades biológicas e as tecnologias disponíveis, este não constitui o cenário das presentes gerações.

As modificações internas na composição das causas de morbidade e de mortalidade têm gerado melhorias significativas dos indicadores de saúde do país. O processo de envelhecimento da população também representa um avanço na plena utilização do potencial biológico. Entretanto, na medida em que a ocorrência de doenças tem-se caracterizado por superposição de suas causas e riscos, um efeito que pode ser observado é a manutenção ou mesmo incremento nas causas de incapacidades. Nesse aspecto, o desafio para as políticas de saúde, integradas às demais políticas sociais, é agregar ao aumento da longevidade humana a qualidade de vida.

Vimos, também, que os benefícios na melhoria de indicadores de saúde não são alcançados de forma homogênea, por todos os grupos populacionais, o que contribui para a manutenção de carga persistente de morbidade, mesmo referindo-se a problemas em que reduções sejam observadas, fazendo com que essa mesma carga não se reduza abaixo de determinados patamares. Ainda que as políticas de saúde tenham possibilidade de ampliação dos benefícios para grupos populacionais excluídos desse processo, a articulação com outras políticas públicas adquire relevância impar na redução das causas e riscos. Sem essa articulação, serão mantidas as desigualdades nos padrões epidemiológicos atuais. Tais políticas e ações, devem ser, necessariamente, dirigidas para os determinantes das doenças, visando ao enfrentamento da complexidade da sua produção.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem a Carlos Antonio de S. T. Santos (ISC/UFBA e UEFS) pelos cálculos das taxas padronizadas de mortalidade.

 

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Endereço para correspondência:
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*Publicado anteriormente em: Finkelman, J, organizador. Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; Organização Pan-Americana de Saúde; 2002.
Reprodução autorizada pelos editores.