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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.15 n.2 Brasília jun. 2006
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742006000200007
Utilização dos leitos hospitalares sob gestão pública em Município de médio porte da Região Sul do Brasil, 1998-2002
Use of hospital beds under public administration in a medium-size Municipality in the Southern Region of Brazil, 1998-2002
Maria da Penha M. SapataI; Darli Antônio SoaresII; Regina Kazue Tanno de SouzaIII
ISecretaria Municipal de Saúde de Maringá, Prefeitura do Município de Maringá-PR
IIDepartamento de Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina, Londrina-PR
IIIDepartamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR
RESUMO
O estudo procura analisar o perfil de internações nos leitos hospitalares sob gestão pública, entre 1998 e 2002, e relacioná-lo às mudanças implantadas no sistema municipal de saúde de Maringá, cidade localizada no Estado do Paraná, sul do Brasil, cuja rede hospitalar é, predominantemente, privada, com déficit de leitos disponíveis para o Sistema Único de Saúde (SUS), fato agravado pela quase metade desses leitos ser destinada à área de Psiquiatria. Entre os principais resultados, observaram-se baixas taxas de internações pelo SUS e, no início do período estudado, elevada evasão para internação em outros Municípios por lesões, envenenamentos e outras causas externas (65,9%), doenças do aparelho respiratório (56,2%), gravidez, parto e puerpério (44,1%) e doenças do aparelho circulatório (34%). Porém, observou-se notória redução de internações em 2002. A ocorrência de internações em Maringá foi sempre crescente, tanto entre os residentes quanto entre os não residentes. Concluiu-se que os leitos hospitalares são insuficientes para o atendimento da clientela do SUS, indicando a necessidade de expansão dessa oferta para adequá-la às necessidades de atenção hospitalar da população do Município, bem como da referenciada por outras cidades.
Palavras-chave: Sistema Único de Saúde (SUS); internação hospitalar; gestão em saúde.
SUMMARY
In the present study, the authors analyzed the profile of admissions to hospitals under public administration between 1998 and 2002, and correlated this with changes implemented in the municipal health system of Maringá, a town located in Paraná State, southern Brazil. This hospital network is predominantly private, with deficits in beds available through the National Unified Health System (SUS), a condition aggravated by having almost half of these beds dedicated to the area of Psychiatry. The major findings included low SUS hospitalization rates; and elevated rates of unauthorized transfers to hospitals in other municipalities at the beginning of the period, due to lesions, poisonings and other external causes (65.9%), diseases of the respiratory tract (56.2%), pregnancy, delivery and puerperium (44.1%), and diseases of the circulatory system (34%). However, a marked reduction in these hospitalizations was observed in 2002. The frequency of hospitalizations in Maringá increased among both residents and non-residents. In conclusion, the number of hospital beds is insufficient to attend SUS patients, indicating the need for expansion to guarantee hospital care for the municipality's population, and for patients referred from other towns.
Key words: National Unified Health System (SUS); hospitalization; health administration.
Introdução
A partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil avançou na consagração de novos direitos sociais, com modificação de alguns pilares básicos do sistema anterior de proteção social, e na conquista de direitos básicos e universais de cidadania.1 Por garantia da Carta Magna, a saúde passa a ser direito de todos e dever do Estado, com os princípios da universalidade de acesso, da integralidade da assistência, da eqüidade de oferta e da descentralização político-administrativa com direção única em cada esfera de governo e controle social.2
Tais garantias, associadas às mudanças em curso na estrutura demográfica e epidemiológica, com alterações nos quadros de mortalidade, morbidade, fecundidade e migração, têm exigido adequações permanentes na organização da assistência à saúde, principalmente no que se refere à tradução das necessidades em oferta de serviços, para assegurar a eqüidade. Essas mudanças, ao mesmo tempo em que promovem aumento da expectativa de vida e redução dos níveis de mortalidade, paradoxalmente, levam ao aumento da morbidade, inclusive a hospitalar. Conseqüentemente, no contexto da organização do sistema de saúde, as internações hospitalares e, especificamente, a garantia de seu acesso a todos os usuários que delas necessitam têm-se apresentado como o maior desafio para a gestão da Saúde local, por representarem parcela considerável dos investimentos da área.
Na atualidade, estima-se que de 7 a 9% da população, anualmente, têm necessidade de internação hospitalar. A média nacional de autorizações de internação hospitalar (AIH) pagas em relação à população geral, em 1999, foi de 7,58%;3 todavia, a demanda por esses serviços não se traduz, necessariamente, em sua utilização. A atenção hospitalar, por corresponder a uma assistência altamente seletiva, tanto técnica quanto economicamente, e por necessitar de recursos terapêuticos e/ou diagnósticos adicionais,4 apresenta, historicamente, oferta insuficiente e demanda reprimida.
O setor público, cujo atendimento hospitalar é realizado pelas organizações públicas governamentais e pelas entidades privadas vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), mediante o estabelecimento de contratos e convênios, é responsável por cerca de 70% das internações hospitalares no País.5 Conforme Yazlle Rocha e Simões,6 a participação desse setor no total de internações tem se reduzido nos últimos anos, especialmente motivada pelo crescimento do sistema de saúde suplementar; em seu estudo, esses autores citam o exemplo do Município de Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, onde, entre 1986 e 1996, a participação do setor público passou de 76% para 51,7%.
Diante do cenário de crise que se apresenta atualmente, de expansão da abrangência do sistema suplementar e das transformações em curso, principalmente relacionadas ao controle e fiscalização dos contratos discriminatórios, não se pode ignorar a possibilidade de (re) inclusão da clientela não-SUS nesse sistema e sua utilização de leitos hospitalares sob gestão pública.
O presente estudo objetivou analisar a capacidade instalada hospitalar e o perfil de utilização desses leitos por residentes de Maringá e de outras localidades, por elas referenciados. O período de estudo, a partir de maio de 1998, refere-se ao momento em que o Município assume a gestão plena do sistema municipal de saúde e passa a se responsabilizar pela totalidade das ações e serviços, de tal forma a garantir o atendimento integral de sua própria população e, de forma indissociável no SUS, contribuir para a evolução da Saúde nos planos estadual e nacional.
Metodologia
O estudo considerou o Município de Maringá, fundado em 1947 e situado na Macrorregião Noroeste do Estado do Paraná, a 425 quilômetros da sua capital, Curitiba.7 Sua localização privilegiada no sistema viário regional fez com que assumisse a posição de cidade-pólo e, ao mesmo tempo, enfrentasse os problemas típicos da “metropolização”, como crescimento disperso em áreas limítrofes e formação, em torno delas, das chamadas cidades-dormitórios, onde os reflexos da economia e a geração de empregos são mais lentos.8
A estimativa da população do Município para o ano de 2003 é de 303.550 habitantes.9 Sua base produtiva sempre foi o setor primário, que se diversificou a partir da década de 1970, com o plantio da soja e trigo na região, e se apresenta como o terceiro fator gerador de empregos. O setor secundário absorve 25% da população economicamente ativa (PEA). Na industrialização local, caracterizada por forte dependência da produção agrícola regional, predomina a produção de gêneros alimentícios e têxteis. O setor terciário é a principal fonte geradora de empregos e, nesse sentido, atende à população local e regional de forma satisfatória.10 O valor do rendimento nominal médio/mês das pessoas responsáveis pelos domicílios permanentes foi de R$ 872,95 para o ano 2000.11
Quanto à organização da assistência ambulatorial e hospitalar em 2002, o Município contava com 20 unidades básicas de saúde, uma unidade de pronto-atendimento 24 horas, uma unidade mista com plantão de 12 horas, um centro integrado de saúde mental, um centro de atenção psicossocial (álcool e drogas), além de vários serviços ambulatoriais contratados para prestar atendimento de média e alta complexidade, alguns deles de referência para a Macrorregião Noroeste do Estado. A assistência hospitalar é prestada por dez hospitais – dois públicos (um municipal e um estadual), sete de iniciativa privada e um filantrópico – que ofertam 1.128 leitos, 65,6% deles pelo SUS.
De acordo com os critérios de regionalização propostos pela NOAS-SUS 2002, Maringá é pólo para os 29 Municípios da 15a Regional de Saúde e seus 644.502 habitantes.9 Os serviços de cirurgia cardíaca, oncologia, psiquiatria, gastroplastia, UTI neonatal e atendimento a gestação de alto risco também são referência para 116 Municípios, onde vivem 1.615.875 pessoas.9
Para fins deste estudo, os dados da capacidade hospitalar relativos ao período de 1998 a 2001 foram coletados a partir das fichas de cadastro hospitalar (FCH); para levantamento do ano de 2002, foram consultadas as fichas de cadastro de estabelecimentos de saúde (FCES), que substituíram as FCH e vêm sendo utilizadas no cadastro de todos os estabelecimentos de saúde existentes no País. As FCES contêm dados sobre o número de leitos, profissionais, nível de complexidade e vínculo das unidades desses estabelecimentos com o SUS.
O perfil das internações foi definido a partir da análise dos dados extraídos do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS), reunidos a partir das autorizações de internação hospitalar (AIH). As AIH são transferidas pelos hospitais à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), mensalmente, em meio magnético. A SMS, por sua vez, dispõe essas informações do SIH-SUS aos Municípios, em disco compacto (CD-ROM). A tabulação foi realizada pelo programa Tabwin versão 2.2, do Ministério da Saúde, também disponível aos Municípios no site do Departamento de Informática do SUS (Datasus). Especificamente para o ano de 2002, as internações realizadas no Hospital Municipal basearam-se no próprio relatório do estabelecimento; apesar de seus leitos serem, eminentemente, de natureza pública e integrarem a rede SUS, os dados sobre as internações ali realizadas ainda não faziam parte do SIH-SUS, haja vista o processo de credenciamento do estabelecimento ainda se encontrar, naquele momento, em curso.
Considerações éticas
O presente estudo foi submetido, ainda em fase de projeto, à apreciação e obteve o parecer favorável – Parecer no 078/2002 – do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, da Universidade Estadual de Maringá-PR.
Resultados
Entre 1998 e 2002, a rede hospitalar passou de oito para dez unidades – nove gerais e uma especializada em psiquiatria. Quanto ao número de leitos, a expansão foi de 10,6%, passando de 1.008 para 1.128. Observa-se, entretanto, diminuição no quantitativo dos leitos de dois hospitais privados, seu incremento no hospital estadual (universitário), no hospital filantrópico e em dois outros, ambos privados, além da abertura, no ano de 2001, de um hospital especializado no tratamento do câncer; e, em 2002, do início das atividades do Hospital Municipal, público. Houve, também, aumento de 15,3% no número de leitos sob gestão pública. A comparação dos dados da Tabela 1 permite verificar que os hospitais G e H não dispõem leitos para o sistema público de saúde.
A rede pública conta com 740 leitos – 364 (49,2%) de psiquiatria e 376 gerais – para atendimento dos residentes em Maringá e região. Entre 1998 e 2002, o número de internações nesses leitos passou de 15.681 para 22.600, correspondendo a um aumento nessa oferta da ordem de 44,1%.
A taxa de internação hospitalar de residentes em Maringá, nos leitos sob gestão pública, foi inferior a 7% (Tabela 2); em 1998, essa taxa foi de 5,7% e, em 2002, de 6,0%. Maiores valores foram observados em 1999 (6,8%) e em 2000 (6,4%). Entre essas internações, predominaram as do sexo masculino (excluídas, portanto, as internações por gravidez, parto e puerpério), que responderam por 53,7% dos eventos. Os maiores diferenciais entre sexos foram observados para os transtornos mentais e comportamentais, cuja razão masculino/feminino foi de 3,7/1; e para lesões, envenenamentos e outras causas externas, cuja razão foi de 2,3/1. Para as doenças do aparelho geniturinário e neoplasias, contudo, o número de internações do sexo masculino foi inferior ao do sexo feminino – respectivamente, razões de 1/2,1 e 1/1,8.
No qüinqüênio analisado, igualmente, distintas taxas de internação foram observadas por faixa etária, bem como por causas. Verificou-se, ainda, diminuição das taxas a partir de 2000, nas faixas etárias de menores de 1 ano, 1 a 4 e 5 a 14 anos de idade. Os maiores valores foram observados nas idades extremas: as taxas em menores de 1 ano variaram de 26,0%, em 1999, para 15,6% em 2002; e entre os maiores de 65 anos, os índices situaram-se em torno de 20%. Quanto às causas de internações (Tabela 3), as doenças respiratórias figuraram como as principais, seguidas pelas doenças do aparelho circulatório, gravidez, parto e puerpério, doenças do aparelho digestivo e causas externas. Ademais, foi notório o crescimento na participação das internações por neoplasias a partir de 2000; se em 1998, essas causas ainda representavam 2,8% das internações, seu percentual nesse conjunto cresceu, progressivamente, de 3,7% em 2000 para 8,2% em 2002.
A Figura 1 apresenta a proporção de internações de residentes fora do Município (evasão). Note-se que a evasão de residentes para internação em outros Municípios foi decrescente no período, passando de 44,6% para 16,3%. A diminuição da evasão foi mais evidente para gravidez, parto e puerpério: em 1998, 44,1% das mulheres que se internaram por essa causa evadiram para outros Municípios em busca de leitos hospitalares – esse percentual foi de apenas 2,0% em 2002. Para as doenças do aparelho respiratório, em 1998, mais da metade das internações de residentes ocorreram fora de Maringá (56,2%); em 2002, todavia, essa proporção foi de apenas 12,1%. Merecem destaque, outrossim, as doenças do aparelho circulatório, cuja evasão em 1999 e 2000 foi superior a 34% – em 2002, de 18,2%. As internações decorrentes de lesões, envenenamentos e outras causas externas, apesar do declínio da evasão (de 65,9% para 51,7%), mantiveram-se acima dos 50%.
Quanto ao comportamento das internações de residentes noutros Municípios, em Maringá (invasão), nos cinco anos estudados (Tabela 4), verificou-se tendência crescente, em termos absolutos: de 6.710 em 1998 para 7.524 em 2002. A participação relativa no conjunto das internações ocorridas em Maringá, entretanto, viu-se reduzida de 42,8% para 33,3%. Os transtornos mentais e comportamentais responderam, em média, por 35,1% das internações desse grupo e mantiveram igual quantidade, em termos absolutos, durante o período. As neoplasias, de 172 internações em 2000, passaram para 1.559 em 2002; corres-ponderam a 3,2% e 20,7% do total de internações, respectivamente, para 1998 e 2002. Sobre as demais causas, à exceção de gravidez, parto e puerpério em 1998, as variações – quando ocorreram – foram em menor intensidade.
Discussão
Os resultados obtidos quanto às internações nos leitos públicos poderiam ser discutidos à luz de três aspectos, referentes a fontes de dados, dificuldades de acesso para utilização dos leitos públicos e desafios para os Municípios de médio porte em gestão plena da saúde, no sentido da universalização da assistência hospitalar e do cumprimento do seu papel regional.
Sobre os dados do SIH-SUS, em termos gerais, são considerados satisfatórios, tanto em seu aspecto quantitativo quanto qualitativo. Diferentemente de outros sistemas oficiais de informação disponíveis na Saúde, sua cobertura e seu grau de confiabilidade são bastante elevados,12 haja vista tratar-se de um sistema operacional desenvolvido para fins de avaliação e controle da produção hospitalar e cujo principal objetivo é o de organizar o processamento de remuneração das internações hospitalares. Pelas variáveis que contempla, o SIH-SUS tem constituído instrumento de vigilância epidemiológica dos agravos prevalentes na população e de gestão de sistemas de saúde; é bastante provável que, no presente estudo, também reflita a situação de acesso e utilização dos leitos públicos.
No Município de Maringá, a população SUS-dependente, possivelmente, assemelha-se aos 70% citados por Mendes,5 pois os dados do Sistema de Informações da Atenção Básica (Siab-SUS) mostram que, em 2003, 25,16% dos residentes nas áreas cobertas pelas equipes atuantes no Programa Saúde da Família (PSF) utilizavam planos privados alternativos. Com base nesse percentual e nos parâmetros da Portaria MS/GM no 1.101, de 13 de junho de 2002,3 e na comparação dos resultados com os leitos disponíveis pelo SUS em 2002, é notória a deficiência de leitos em quase todas as áreas, apesar dos 1.128 existentes. Tal fato deve-se à constituição privada predominante da rede hospitalar, que atua na lógica da produção de serviços com vistas à rentabilidade; por isso, entre os 740 leitos disponíveis, 364 (49,2%) são destinados às internações psiquiátricas. Conforme Meneghell e colaboradores,13 a oferta de serviços obedece às leis de mercado e tende a alocá-los de acordo com a capa-cidade de pagamento, o que prejudica, especialmente, os mais desfavorecidos.
A reduzida oferta de leitos e o fato de sua maioria pertencer a instituições privadas intensificam o fenômeno, denominado por Yazlle Rocha e Simões6 como Divisão de Tarefas entre Instituições Privadas e Públicas. Essa situação dificulta ainda mais o acesso às internações em razão da seletividade negativa exercida pelas instituições privadas, que destinam aos hospitais públicos os casos não rentáveis, financeiramente. A incidência da falta de leitos na clínica médica e na pediatria deve-se, provavelmente, ao desinteresse no atendimento a uma clientela cujo valor ressarcido, de acordo com a tabela SIH-SUS, especialmente para clínica médica e internação de pessoas portadoras de problemas crônicos e de alta dependência,14 muitas vezes é baixo, do ponto de vista dessa rentabilidade. Em contrapartida, verifica-se alta disponibilidade de leitos de psiquiatria, com capacidade instalada 177% superior à necessária para atendimento dos residentes em Maringá, segundo essa mesma lógica.
A oferta de leitos em unidades de terapia intensiva (UTI) apresenta-se acima da necessidade estimada para a população residente em Maringá. A taxa de ocupação desses leitos, contudo, é bastante elevada; provavelmente, ela decorre do alto custo dos tratamentos aí instituídos, nem sempre cobertos, na sua integralidade, pelos planos privados. Nessas condições, o setor público acaba por contribuir para a viabilização do primeiro tratamento e assume, freqüentemente, a continuidade da terapêutica iniciada. Acresce-se, ainda, o fato de Maringá ser Município de referência regional e absorver, ademais, as necessidades dos vários Municípios de pequeno porte que, em sua maioria, não contam com serviços de alta complexidade, especialmente de cuidados prolongados.
Vale destacar que o aumento do número de leitos (15,3%) disponíveis pelo SUS ocorreu após 2000 – apesar de sua redução em dois hospitais, conseqüente à reorganização dos cadastros de leitos de todos as instituições e em atendimento à Deliberação no 026/99, da Comissão Intergestores Bipartite do Paraná (CIB). Essa deliberação, que estabelecia critérios e requisitos para análise e avaliação de solicitações de credenciamento e/ou manutenção de serviços de alta complexidade, obrigava os hospitais com esses serviços a disporem, como mínimo, 50 leitos para o SUS e, desse total, ao menos 40% para as especialidades básicas. Outrossim, todos os leitos deveriam ser controlados pela Central de Leitos, Internamentos e Consulta (CLIC), órgão criado pela Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (SES/PR) em 1995, com o propósito de evitar a diminuição de oferta de leitos de média e baixa complexidade para as especialidades básicas – pediatria, clínica médica, cirurgia e ginecologia/obstetrícia –, bem como de leitos de UTI nos hospitais de médio e grande porte.15
Apesar do estabelecimento do prazo de 180 dias para adequação dos hospitais do Paraná, somente em 2000, com a criação da Gerência de Auditoria, Controle e Avaliação (Gaca), da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), tornou-se possível a regulação de acordo com as normativas do Sistema Nacional de Auditoria (SNA) do Ministério da Saúde. Até 1999, os leitos eram gerenciados pela CLIC, mediante sistema informatizado de fluxo de internações hospitalares,16 com o objetivo de controlar a ocupação de leitos vinculados ao SUS nos hospitais da 15a Regional de Saúde.
A partir da gestão plena em Maringá, as mudanças introduzidas na atenção hospitalar atestam, favoravelmente, a redução da taxa de internação hospitalar pelo SUS da população residente no Município. Ao se considerar que a demanda, parcialmente traduzida em utilização, é expressão do acesso e conseqüente oferta de serviços, taxas de morbidade tenderiam ao aumento em situações de expansão de oferta. Esse fato não se observou em Maringá, apesar do incremento de 36% no número absoluto de internações, e indica, de certa forma, diminuição do risco de internação. Há que se ressaltar que a incorporação tecnológica favoreceu a diminuição de tempo de internações para algumas patologias; além disso, o Ministério da Saúde alterou vários códigos de procedimentos, que a AIH utilizava outrora, transferindo-os para o nível de ambulatório, especialmente na área de oftalmologia e pequenas cirurgias.
Embora os dados da participação do sistema suplementar não estejam disponíveis, é provável que a redução observada nas taxas, nos anos analisados, não se atribuam à migração de usuários para essa modalidade de financiamento. Vários fatores, especialmente relacionados à gestão do sistema de saúde em Maringá, podem ter contribuído para essa redução. Essa interpretação é corroborada pelo perfil predominante de homens, pela diminuição das taxas em menores de 14 anos e pelo atendimento de doenças dos aparelhos respiratório e circulatório, bem como pelo aumento da importância das neoplasias no conjunto das internações.
A queda na taxas de internações de crianças e por doenças dos aparelhos respiratório e circulatório podem ser conseqüência, portanto, da melhoria do acesso às intervenções em unidades ambulatoriais, sejam de nível básico ou especializado, com destaque para a implantação, em 2000, da estratégia da Saúde da Família e a expansão da oferta de serviços ambulatoriais especializados. Ressalte-se que a implantação de 57 equipes do PSF significou a ampliação de, aproximadamente, 30% do quadro de pessoal vinculado à SMS, a que se acrescentou um incremento da ordem de 36,37% na oferta de consultas especializadas via serviços próprios e compra de serviços, a partir de 2002.
Por outro lado, o aumento da taxa de internação por neoplasias é conseqüência do credenciamento do Hospital do Câncer como Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) em 2001, como parte da política de reorganização das referências para tratamento da doença em todo o Estado. Se, até então, muitos casos de neoplasias eram tratados em qualquer hospital e não constavam nos registros do SIH-SUS como procedimento oncológico, a reorganização favoreceu o pagamento diferenciado aos hospitais credenciados na qualidade de Cacon e a melhoria do registro de casos dessa patologia.
Além disso, o aumento do número de internações de residentes no próprio Município e a diminuição – bastante expressiva – da evasão entre 1998 e 2002 fortalecem a hipótese da redução da necessidade de internação. Em termos absolutos, o número de internações de residentes passou de 16.187 para 18.017, sendo que, em 2002, 83,6% delas ocorreram no próprio Município. Diferentemente da situação observada em 1998, quando esse percentual havia sido de 55,4%.
A reorganização pode ser percebida, particularmente, nas internações de gestantes, cuja reversão acontece a partir do ano 2000 e coincide com a auditoria do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná sobre a gestão plena do Município. Naquela oportunidade, falhas detectadas na gestão hospitalar obrigaram a reorganização do componente de auditoria, controle e avaliação da administração municipal, além de outros itens, para favorecer a utilização de leitos próprios de Maringá. Porém, a redução da evasão de mulheres em busca de leitos em outros Municípios, notória a partir de 2000, ocorreu após efetivação de convênio com o hospital filantrópico e pagamento de adicional por atendimento realizado a gestantes. A implementação, em 2002, do Programa Nacional de Humanização do Parto e Nascimento do Ministério da Saúde, que definiu um hospital de referência para aquelas mulheres que realizassem o pré-natal na rede pública, também contribuiu para a diminuição dessa evasão.
Ainda assim, gravidez, parto e puerpério não figuraram como primeira causa de internação pelo SUS em Maringá, conforme observado em outras localidades. A primeira explicação pode estar relacionada à diminuição da taxa de fecundidade nos últimos anos; a segunda, à utilização de leitos “particulares”. Provavelmente, a insegurança das gestantes, que não têm garantia da realização do parto no SUS pelo profissional que a acompanhou durante o pré-natal, leva-as, muitas vezes, a recorrer aos hospitais que efetuam “pacotes” com custo mais baixo, talvez com o intuito de realizar a laqueadura e a utilização de leitos “particulares”. As internações por essa causa observadas no SIH-SUS em 2002 representam menos da metade dos nascimentos vivos identificados pelo Sistema de Informações de Nascidos Vivos (Sinasc) para o mesmo ano, que foi de 4.203 crianças. Serafim,17 em estudo de caso-controle sobre a mortalidade neonatal de residentes entre crianças nascidas em Maringá no período de 1997 a 2000, observou que 47,5% das mulheres-mães de crianças que faleceram no período neonatal, realizaram parto pelo SUS; para as crianças sobreviventes, esse percentual foi de apenas 31,25%. Essa situação é bastante distinta da observada no Município em 1989, quando mais de 80% dos partos foram cobertos pelo sistema oficial.18
As medidas adotadas também devem ter causado impacto na redução da evasão por doenças dos aparelhos respiratório e circulatório; além disso, a partir de 2002, a ativação de 15 leitos clínicos de atendimento aos adultos no Hospital Municipal contribuiu, provavelmente, para facilitar o acesso às internações no próprio Município.
Para as internações decorrentes de lesões, envenenamentos e outras causas externas, mais da metade delas realizam-se em outros Municípios, apesar de ter-se verificado um declínio – discreto – na evasão desse grupo. Como a dificuldade em obter atendimento ortopédico de necessidade pelo SUS ainda persiste em Maringá, a repressão dessa demanda provoca a busca por atendimento em outros Municípios, quase sempre em hospitais de localidades próximas e de pequeno porte – como Mandaguari, que, há anos, efetua tratamento dos casos de ortopedia oriundos de Maringá.
A diminuição das internações de residentes ocorreu, principalmente, nos Municípios pequenos, possível reflexo da melhora do acesso aos serviços de baixa complexidade em Maringá; o que não se verificou para a capital do Estado, referência no tratamento oncológico de crianças, no atendimento de grandes queimaduras, em cirurgia cardíaca infantil e outras especialidades.
A tendência crescente do número de internações de residentes em Maringá foi acompanhada, embora em menor proporção, por internações de residentes em outros Municípios. Assim, é previsível que a invasão se caracterize, predominantemente, por residentes em Municípios integrantes da região metropolitana, as “cidades-dormitórios” de parcela importante da população que, embora aí resida, trabalha em Maringá. Eis um fenômeno bastante comum na vida da maioria das metrópoles brasileiras.
Associada à oferta de serviços, a participação relativa de internações de residentes em outros Municípios ocorre, principalmente, para atendimento especializado, como internações por neoplasias e transtornos mentais e comportamentais. O aumento das internações por neoplasias, que, em termos absolutos, foi da ordem de 223% (conforme já mencionado), explica-se pela reestruturação da referência de tratamento no Hospital do Câncer e pela criação do Cacon.
No caso dos transtornos mentais, o Município, em consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde19 e com a participação efetiva dos Conselhos e outras formas de organização popular, desenvolve políticas voltadas à desospitalização e ao fortalecimento da rede extra-hospitalar, mediante a descentralização das ações, da capacitação de profissionais da rede básica, da redução da oferta de leitos psiquiátricos (inicialmente, em 20%), além da implantação do Centro de Atenção Psicossocial-álcool e drogas (CAPS-ad) em 2002; e, mais recentemente (2003), do serviço de emergência psiquiátrica do Hospital Municipal, porta de entrada para as internações na área. Apesar das ações de controle de porta de entrada e de alternativas de tratamento dos portadores de transtornos mentais, o fator agravante maior ainda se encontra na quantidade de leitos disponíveis, muitas vezes utilizados indiscriminadamente.
Quanto às demais causas, a manutenção das internações de residentes em outros Municípios, possivelmente, também decorra da falta de oferta de leitos e de serviços de média e alta complexidade. A participação das internações de baixa complexidade, outro aspecto de grande relevância na gestão do sistema municipal, não foi objeto de alcance do presente estudo. Apesar do reconhecimento pela Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS), os Municípios-pólos de médio porte, condição de centenas no País, não têm suas intervenções demarcadas pelos seus limites geográficos; pequenos Municípios circunvizinhos, muitos deles hipertrofiados pela ocupação desordenada de espaços urbanos, carecem de infra-estrutura básica, inclusive de atenção à saúde da sua comunidade. A invasão de Municípios próximos para utilização de seus serviços de baixa complexidade é, possivelmente, reflexo da dificuldade de acesso a esses serviços no próprio local de moradia e constitui um importante componente a ser considerado na gestão de leitos hospitalares por Municípios de médio porte, principalmente quando a pactuação de recursos disponíveis não contempla tais dimensões.
O presente estudo possibilitou a análise da utilização dos leitos hospitalares públicos e as dificuldades que se apresentam na conflitiva tentativa de implementar sistema de saúde universal e gratuito em uma sociedade como a brasileira. Em Maringá, Município de médio porte da Região Sul do Brasil, as tensões intensificam-se por se tratar de uma localidade cuja grande maioria de leitos encontra-se fora das instituições públicas. O dimensionamento da expressão dos leitos hospitalares sob gestão pública no atendimento às reais necessidades da população residente, bem como da referenciada, não foi de alcance deste estudo. Para que se lhe dê continuidade, deve-se esclarecer a participação do sistema suplementar nesse nível de atenção. A participação expressiva dessa modalidade de autofinanciamento é reveladora das fragilidades no sistema e somente com o conhecimento da cobertura efetiva do serviço público será possível gerir planos que promovam a eqüidade e a integralidade como princípios, na prestação da atenção hospitalar.
Referências bibliográficas
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