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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.2 Brasília jun. 2008
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000200002
ARTIGO ORIGINAL
Avaliação da efetividade das estratégias de controle da leishmaniose visceral na cidade de Teresina, Estado do Piauí, Brasil: resultados do inquérito inicial – 2004*
Assessment of the effectiveness of control strategies for visceral leishmaniasis in the city of Teresina, State of Piauí, Brazil: baseline survey results – 2004
Guilherme L. WerneckI; Teresinha de Jesus Cardoso Farias PereiraII; Geovani Cardoso FariasII; Fernando Oliveira da SilvaII; Francisco Cardoso ChavesII; Marcus Vinícius GouvêaIII; Carlos Henrique N. CostaIV; Fernando Aécio de Amorim CarvalhoV
IInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IIInstituto de Doenças Tropicais Natan Portella, Teresina-PI, Brasil
IIIInstituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IVInstituto de Doenças Tropicais Natan Portella, Teresina-PI, Brasil. Departamento de Saúde Comunitária, Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI, Brasil
VDepartamento de Bioquímica e Farmacologia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI, Brasil
RESUMO
Este artigo apresenta e discute as implicações dos resultados do inquérito inicial de um estudo de intervenção comunitária para avaliar a efetividade de medidas de controle para a leishmaniose visceral. O estudo foi realizado em dez localidades da cidade de Teresina, Estado do Piauí, Brasil. As localidades foram subdivididas em quadras, quatro delas selecionadas e alocadas aleatoriamente para diferentes intervenções a serem implementadas após o inquérito inicial. No inquérito inicial, realizado no primeiro semestre de 2004, os participantes (n=1.105) responderam a um questionário e tiveram avaliada sua reação ao teste de intradermorreação com antígeno de Montenegro (IDRM). A prevalência global de infecção foi de 36,7% – com tendência a aumentar com a idade –, significativamente mais alta nos homens. A prevalência variou de 24,0 a 47,0% entre localidades. O processo de randomização mostrou-se relativamente satisfatório para variáveis sociodemográficas; houve, entretanto, diferenças significativas na prevalência de positividade na IDRM entre áreas de intervenção. A não-comparabilidade das áreas, no que diz respeito às taxas basais de transmissão, elemento fundamental para inferência causal em doenças infecciosas, pode afetar a validade do estudo de intervenção.
Palavras-chave: leishmaniose visceral; epidemiologia; inquéritos de morbidade.
SUMMARY
This report presents and discusses the implications of the baseline survey results of a community intervention trial to assess the effectiveness of control measures against visceral leishmaniasis. The study was carried out in ten neighborhoods of the City of Teresina, State of Piauí, Brazil. Each neighborhood was divided into blocks, four of them selected and randomly allocated to different types of interventions to be implemented after the baseline survey. During the first semester of 2004, the participants (n=1,105) answered a baseline survey questionnaire and had their responses to the Montenegro skin test (MST) evaluated. Prevalence of infection was estimated as 36.7% – tended to increase with age –, higher among males. Prevalence varied from 24.0 to 47.0% between neighborhoods. Although randomization worked satisfactorily for socio-demographic variables, significant differences in the prevalence of positivity in the MST between areas under two different kinds of interventions were found. These differences might affect the validity of the intervention trial, since areas may not be comparable regarding the rates of transmission, a major condition for causal inference in infectious diseases..
Key words: visceral leishmaniasis; epidemiology; morbidity surveys.
Introdução
A leishmaniose visceral (LV) apresenta-se como uma doença emergente em diferentes partes do mundo, incluindo a América Latina, onde mais de 90% dos casos ocorrem no Brasil.1-4 Transformações ambientais associadas a movimentos migratórios e ao processo de urbanização podem explicar, em parte, porque a LV, restrita às áreas rurais do país até a década de 1970, a partir de então, passou a ocorrer de forma endêmica e epidêmica em grandes cidades do Nordeste brasileiro e, subseqüentemente, disseminou-se para outras macrorregiões do país.5-8 De 1984 a 2002, foram 48.455 casos notificados de LV no Brasil, 66% deles nos Estados da Bahia, Ceará, Maranhão e Piauí.8 Na década de 1990, aproximadamente 90% dos casos notificados de LV ocorriam na Região Nordeste. Com a paulatina expansão da doença para outras Regiões, de 2000 a 2002, mais de 25% dos casos no Brasil ocorreram fora da Região Nordeste.8 Nos últimos dez anos, a transmissão autóctone da leishmaniose visceral foi registrada em mais de 1.600 Municípios brasileiros, distribuídos por 19 das 27 unidades federadas, com incidência média de aproximados dois casos por 100.000 habitantes e letalidade em torno de 5%.
A população do Município de Teresina, capital do Estado do Piauí e local escolhido para desenvolver o presente estudo, sede da primeira grande epidemia de LV em meio urbano no Brasil, cresceu mais de 400% entre 1960 e 1990, principalmente em conseqüência de deslocamentos populacionais provocados por consecutivas secas no interior daquele Estado.5 Em 1990, mais de 50% da população de Teresina-PI era originária de outras regiões do Piauí ou de outros Estados brasileiros.9 A ocupação rápida e desordenada da periferia da cidade expôs sua população a extensas áreas cobertas por florestas tropicais e densa vegetação, locais prováveis de reprodução selvagem do parasito responsável pela doença (Leishmania chagasi). À medida que comunidades humanas se expandem para áreas recentemente desflorestadas, entram em contato direto com os locais naturais de reprodução do vetor da doença, o flebotomíneo Lutzomyia longipalpis, e com reservatórios selvagens, particularmente a raposa.
Esse processo de urbanização caótico resultou em condições precárias de vida e destruição ambiental, fatores que também teriam influenciado a emergência da doença no meio urbano, já que L. longipalpis se adapta facilmente às condições peridomésticas de áreas depauperadas, explorando o acúmulo de matéria orgânica gerada por animais domésticos e más condições sanitárias.10,11 Também as raposas, quando a destruição do seu habitat natural implicou reorganização de sua cadeia alimentar, passaram a ser vistas com relativa freqüência nas periferias da cidade, revirando o lixo urbano em busca de alimento. Estudo caso-controle realizado nessa área mostrou que cerca de 2% da população refere ter visto uma ou mais raposas na redondeza de sua habitação nos 12 meses anteriores à entrevista; e que o risco de ocorrência de leishmaniose visceral é cerca de cinco vezes maior em indivíduos que relatam a presença de raposas no peridomicílio.12
O cão, considerado o reservatório doméstico do protozoário, desempenha o papel de fonte de infecção imediata para o homem. Cães abandonados, ao vagar pela periferia da cidade, entrariam em contato direto com reservatórios selvagens da doença e, rapidamente, adquiririam a infecção. Ao retornarem para o interior da cidade, esses animais serviriam de amplificadores da infecção para outros cães e humanos. Nesse contexto, a presença de um grande número de pessoas não imunes, reservatórios infectados e vetores em abundância, configurariam as condições básicas para a ocorrência de casos autóctones da doença.
Fundamentado nessa concepção, o Programa de Controle da Leishmaniose Visceral, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, baseou sua estratégia de controle da doença em três medidas. 1) detecção e tratamento de casos humanos, de caráter eminentemente curativo; 2) controle dos reservatórios domésticos; e 3) controle de vetores.3,13
A base teórica que sustenta a utilização do controle vetorial e de reservatórios como estratégias de intervenção sobre a LV é a conjectura de que a incidência de infecção em humanos está diretamente relacionada ao número de cães infectantes e à capacidade da população de flebotomíneos de transmitir infecção do cão para o homem.14,15 Tanto o controle vetorial quanto a eliminação de cães, em teoria, podem ser consideradas como medidas efetivas. O uso de inseticidas, por exemplo, diminui o tempo médio de vida do vetor, um dos mais importantes determinantes da transmissão;10 e a eliminação de cães infectantes, por sua vez, diminui a expectativa de vida da população canina e, conseqüentemente, o número de reprodução básico (Ro) da infecção em cães. O Ro é o número médio de infecções secundárias produzidas quando um cão infectado é introduzido em uma população totalmente susceptível.16 Ainda que a teoria dê sustentação ao uso dessas estratégias, na praxis, a persistência da transmissão em certas áreas do país e a crescente disseminação da doença para regiões outrora indenes indica que tais medidas de controle não se têm mostrado efetivas, tampouco sustentáveis como se esperava, devendo-se salientar, entretanto, que essa conclusão tem sofrido contestação.17,18
Uma razão fundamental para a falta de efetividade dessas estratégias está na ausência de um sistema de vigilância permanente, com utilização extensiva de recursos humanos e financeiros. Ao menos outros sete fatores podem contribuir para o não-alcance da eliminação de cães infectantes: 1) os cães que nem sempre parecem doentes nos primeiros estágios da infecção; 2) os animais assintomáticos, que podem ser igualmente infectantes para os vetores; 3) outros reservatórios a servir de fonte de infecção; 4) a condição de sensibilidade inadequada dos testes diagnósticos comumente utilizados para detecção de cães infectantes; 5) os cães eliminados quase que imediatamente substituídos por uma nova população passível de adquirir infecção rapidamente, em áreas altamente endêmicas; 6) grande espaço de tempo entre o diagnóstico e a remoção do cão infectado; e 7) os altos níveis de infecção e infectividade canina.3,13,14,19
Estudos teóricos baseados em modelos matemáticos de transmissão da infecção por L. chagasi para humanos mostraram que a eliminação de cães tem pior desempenho quando comparada com outras estratégias de controle, como o uso de inseticidas, vacinação dos cães e melhoria das condições nutricionais das crianças.14 Estudos enfocando a estratégia de eliminação canina têm oferecido resultados conflitantes, ao menos quando ela é adotada separadamente do controle vetorial.17,20,21 Por sua vez, experiências têm demonstrado a efetividade do controle vetorial em diversas situações.5,22,23 É preciso destacar, contudo, que são poucos os estudos brasileiros especificamente delineados para avaliar, conjuntamente, a efetividade do controle vetorial e da eliminação canina na redução da incidência de infecção humana. Ademais, do ponto de vista metodológico, seria importante superar algumas limitações comuns a esses estudos, quais sejam, o uso de poucas áreas de comparação e a variabilidade nas taxas de transmissão basal da infecção, o que leva a uma inerente falta de comparabilidade entre as áreas.
Nesse sentido, estes autores propuseram um estudo de intervenção comunitária para avaliar a efetividade do controle vetorial e da eliminação de cães infectados na incidência de infecção por L. chagasi em uma cidade submetida a intensa força de transmissão. Consideraram-se diferentes cenários epidemiológicos intra-urbanos, capazes de amplificar ou reduzir o impacto dessas intervenções. Este relatório apresenta os resultados de inquérito de linha de base dessa investigação e discute as implicações de interpretação dos resultados do estudo de avaliação da efetividade das intervenções.
Metodologia
Em 1980, o Município de Teresina-PI foi o local de ocorrência da primeira epidemia urbana de leishmaniose visceral no Brasil.5 A incidência caiu após 1985. Uma nova epidemia, contudo, somando mais de 1.200 casos, ocorreu entre 1993 e 1995 (Figura 1). Nessa segunda e última epidemia, mais de 90% dos casos necessitaram hospitalização e cerca de 5% foram a óbito, a despeito dos corretos procedimentos terapêuticos. Entre 1996 e 1998, a doença permaneceu no Município de forma endêmica, com cerca de 20-40 casos anuais. Mais recentemente, a partir de 1998, têm-se observado um incremento gradual de sua incidência, que se encontra estabilizada em um patamar próximo aos 20 casos/100.000 habitantes/ano.
Trata-se de um estudo seccional para determinar as características basais participantes de um ensaio randomizado de intervenção comunitária entre moradores da cidade de Teresina-PI, Brasil.
Dez localidades situadas em sete dos 105 bairros da cidade de Teresina-PI foram escolhidas para participar do estudo (Figura 2). Com o auxílio de imagens de sensoriamento remoto (cena do tipo Landsat 5 Thematic Mapper do ano 2000) e sistemas de informação geográfica, os bairros foram selecionados intencionalmente, de forma a cobrir variados contextos urbanos (por exemplo: nível de urbanização e proximidade com áreas periféricas) e diferentes padrões de transmissão (incidência de doença na década de 1990, variando de média para muito alta). A partir de mapas topográficos, cada uma dessas localidades foi subdividida em quadras contendo, em média, 25 domicílios. Dentro de cada uma das localidades, quatro quadras foram selecionadas aleatoriamente. Do total de 40 quadras incluídas, em cada uma delas, uma pessoa por domicílio também foi selecionada aleatoriamente, para participar do estudo. Na eventualidade de ausência ou recusa de parte do indivíduo sorteado, optou-se por substituí-lo pelo morador mais jovem.
Para o ensaio randomizado de intervenção comunitária, em cada uma das dez localidades, as quadras foram alocadas para quatro tipos de intervenções: 1) controle vetorial com uso de inseticidas com efeito residual no domicílio e anexos (Área A); 2) monitoramento da infecção canina com posterior eliminação dos cães soropositivos (Área C); 3) combinação das duas intervenções (Área B); e 4) ausência de intervenção (Área D).
Estimou-se um tamanho amostral de 1.100 pessoas, aproximadamente, para o inquérito de linha de base. Isso porque o estudo de intervenção necessitaria do acompanhamento de dois grupos de aproximadas 400 pessoas com IDRM negativo para uma incidência de infecção em 18 meses, medida pela conversão da IDRM, de 30% nos que não receberam intervenção e de 20% nos que receberam intervenção, um nível de confiança de 95% e um poder de 80%, considerando-se um efeito de desenho de 1,3, já que a amostragem foi realizada por conglomerados.24 Esse tamanho amostral é superior ao necessário para estimar uma prevalência em torno de 35%, com um nível de confiança de 95% e erro absoluto de 4%, considerando-se um efeito de desenho de 1,3 (n=710).
Residentes dos bairros selecionados foram visitados em seus domicílios e responderam a um questionário sobre condições de vida e saúde, exposição a fatores de risco para infecção por L. chagasi, história pessoal ou familiar de LV, entre outras questões. Nessas visitas, todos os indivíduos selecionados foram submetidos ao teste intradérmico de leishmanina com 0,1 ml do antígeno Mayrink – IDRM.25 Após 48/72 horas, eles foram revisitados para avaliação da reação intradérmica. A positividade foi definida como reação >5mm X 5mm. As variáveis utilizadas para estratificação das estimativas de prevalência de positividade para a IDRM foram: 'Sexo';'Idade'; 'Local de moradia'; e 'Área de intervenção'.
Distribuições de freqüência das variáveis estudadas foram consideradas para avaliar possíveis diferenças no perfil sociodemográfico da população segundo bairro de moradia e tipo de área de intervenção (controle vetorial; remoção de cães infectados; combinação das duas intervenções; e ausência de intervenção). Heterogeneidades na distribuição das prevalências de positividade para a IDRM foram avaliadas pelo teste de qui-quadrado, adotando-se um nível de significância estatística de 5% (p-valor<0,05).
Considerações éticas
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NESC/UFRJ), mediante parecer emitido em 6 de novembro de 2001.
Resultados
O inquérito de base foi realizado nas dez localidades selecionadas para o estudo, durante o primeiro semestre de 2004. A equipe permaneceu cerca de duas semanas em cada área. Foram entrevistados 1.106 indivíduos, dos quais 1.105 tiveram resultados válidos para a IDRM. A prevalência global de positividade para a IDRM foi de 36,7%. A prevalência aumentou com a idade, monotonicamente (p-valor de tendência linear <0,001) e foi significativamente mais alta entre os homens (43,3% versus 33,4%, p=0,001).
A Tabela 1 apresenta o perfil sociodemográfico dos participantes e a prevalência de positividade na intradermorreação, de acordo com a localidade estudada. O perfil demográfico dos participantes apresentou substancial variação entre as localidades. O Parque Mão Santa apresentou a menor proporção de participantes do sexo feminino (53,0%), enquanto nas localidades da Esplanada, Porto Alegre e Nova Teresina, esse percentual ficou em torno dos 75,0%. A localidade de Itararé II apresentou a maior proporção de participantes acima de 40 anos de idade (33,0%), enquanto a maior participação de menores de 19 anos foi observada na localidade do Parque Mão Santa (33,1%). A escolaridade do chefe da família também apresentou grande variação geográfica: os maiores percentuais de participantes com escolaridade abaixo da 4a série do 1o Grau foram encontrados na localidade do Gurupi e na de Santa Bárbara (ao redor de 35,0%); e o menor, na localidade de Porto Alegre (7,9%). Itararé II apresentou maior proporção de participantes habitando residências com cinco ou mais moradores (61,2%); na localidade de Angelim, essa proporção foi a menor (25,0%).
No que tange ao resultado da intradermorreação, percebe-se que, para a maioria das localidades, os percentuais de participantes com história anterior de infecção por Leishmania chagasi variou em torno da média (36,9%). Duas localidades, no entanto, destoam desse padrão: Renascença, que tem como base um conjunto habitacional criado em 1986, logo após a primeira grande epidemia de LV na cidade, apresentou a maior prevalência (46,6%); a menor prevalência (23,8%) foi observada em Nova Teresina, área de ocupação relativamente recente.
A Tabela 2 apresenta as características sociodemográficas dos participantes do estudo e a prevalência de positividade na intradermorreação de Montenegro segundo áreas de intervenção. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre as áreas, no que concerne às variáveis sociodemográficas; houve, porém, diferença entre as áreas A e C quanto à prevalência de positividade para a intradermorreação.
A Tabela 3 apresenta as prevalências de positividade para a intradermorreação de Montenegro segundo áreas de intervenção e localidade. Observa-se grande variação nas prevalências de positividade, mesmo dentro de cada uma das localidades, devendo-se, entretanto, atentar para que essas estimativas estão sujeitas a grande variabilidade amostral, haja vista estarem baseadas em um número pequeno de observações (média de 27,7 indivíduos – amplitude de 11 a 37).
Discussão
O inquérito de base apontou algumas importantes questões a serem consideradas na interpretação dos futuros resultados do estudo de intervenção. Primeiramente, o fato de a estimativa de positividade na IDRM (36,9%) ter sido superior ao valor usado para o cálculo de tamanho amostral (30,0%) implica possibilidade de perda de poder estatístico para detectar eventuais efeitos das intervenções. Em segundo lugar, ainda que o processo de randomização tenha operado de forma relativamente satisfatória para as variáveis sociodemográficas, foram encontradas diferenças significativas entre duas das quatro áreas de intervenção, quanto à prevalência de positividade na IDRM. As diferenças nas prevalências de positividade na intradermorreação podem afetar a validade do estudo, no caso de altas prevalências também corresponderem a altas taxas atuais de transmissão. Nesse caso, as áreas não seriam comparáveis no que diz respeito às taxas basais de transmissão da infecção, elemento fundamental para inferência causal em doenças infecciosas.26 Essas diferenças, por sua vez, podem indicar apenas heterogeneidades sociodemográficas relacionadas risco de infecção (por exemplo: idade; aglomeração; condições materiais de vida), possíveis de serem ajustadas na análise, embora, aparentemente, as áreas não mostrem diferenças substanciais em termos dessas variáveis. Ainda há a possibilidade de as taxas atuais de transmissão nessas áreas serem comparáveis de fato, caso em que o passado de exposição, este sim, seria diferente. Nesse caso, como o estudo intervenção baseia-se no acompanhamento daqueles com intradermorreação negativa, a comparabilidade estaria assegurada. Infelizmente, resultados de exames sorológicos não estão disponíveis para contribuir à sustentação desta última hipótese. De qualquer forma, há modelos multivariados que podem ser usados para corrigir potenciais variações entre as áreas de intervenção.
A prevalência elevada de infecção detectada pela IDRM deve ser observada com cautela. A utilização do thimerosal como preservante pode induzir a existência de um grande número de resultados falsos-positivos.27 O problema fundamental para o estudo de intervenção, porém, não está na ocorrência de falsos-positivos na linha de base e sim na prevenção da inclusão de indivíduos falsos-negativos – problema passível de ser minimizado com o uso do teste cutâneo, de alta sensibilidade.28 A avaliação das efetividades das intervenções tendo por base a incidência de infecção mensurada pela IDRM, todavia, poderá ser questionada sobre essas mesmas bases, em função do poder sensibilizante já demonstrado por esse teste.29 De qualquer forma, não parece haver evidência de que esses problemas induzam a erros não diferenciais, sugerindo que as efetividades que venham a ser levantadas pelo estudo de fundo possam estar subestimadas, inclusive.
A grande variabilidade da positividade ao teste intradérmico, de acordo com a localidade e a área de intervenção, também merece um comentário. Ainda que se considerem as mais comuns explicações para essa variabilidade, como o pequeno tamanho amostral e as potenciais heterogeneidades sociodemográficas, é plausível que essas diferenças decorram, ao menos em parte, da própria dinâmica de transmissão da infecção por Leishmania chagasi em Teresina-PI. De fato, estudos anteriores mostraram grande heterogeneidade espacial na ocorrência da leishmaniose visceral na região.30,31 Até que ponto essa variabilidade espacial terá contribuído positivamente, ao prover informações sobre a avaliação de intervenções em cenários com diferentes níveis de transmissão, ou negativamente, ao provocar mais uma fonte de falta de comparabilidade entre as áreas de intervenção, eis uma questão de difícil resposta.
Dever-se-ão considerar todos os problemas assinalados, quando da interpretação dos resultados do estudo de intervenção comunitário. O presente artigo buscou, além de fornecer dados de potencial relevância para a compreensão da situação epidemiológica da transmissão da leishmaniose visceral em Teresina-PI, apresentar de forma prática, a partir de dados empíricos, alguns dos principais desafios metodológicos para a garantia da validade de estudos de intervenção em doenças infecciosas.
Agradecimentos
Estes autores agradecem a colaboração inestimável de Vânia Maria Alves de Carvalho, Augusto César Evelim Rodrigues, Eridan Soares Coutinho Monteiro e Fernando Luis Oliveira, médicos veterinários da Gerência de Zoonoses (GEZOON) da Fundação Municipal de Saúde de Teresina-PI, sem a qual este trabalho não seria possível. Esta pesquisa foi financiada com recursos do Cenepi/Funasa, atual Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde – Edital de convocação No 2/Linha temática No 005: Avaliação das medidas de controle da leishmaniose visceral – e contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia – Processos: 503649/2005-8; 505983/2003-6; e 308133/2004-8.
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Endereço para correspondência:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Departamento de Epidemiologia,
Instituto de Medicina Social,
Rua São Francisco Xavier, 524, Bloco D, 7o andar,
Maracanã, Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
CEP: 20559-900
E-mail:gwerneck@nesc.ufrj.br
Recebido em 01/06/2007
Aprovado em 04/12/2007
*Pesquisa financiada com recursos do Centro Nacional de Epidemiologia da Fundação Nacional de Saúde, atual Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde